O Mal
Reflexões breves
Na “soteriologia” platônica, se pudermos dizê-lo assim, a Caverna exerce uma contraforça, “Anthelkein” (Voegelin — Evangelho e Cultura), que “puxa” o homem para baixo, sempre em um sentido descensional. Platão reconhece na condição humana, a no próprio mundo visível, uma realidade de Queda — o homem recai do conhecimento das Formas, no Hiperurânio, e o que ele tem diante de si, no reino terrestrial, é apenas uma sombra de seu lugar de origem. Pelo motivo, todavia, de ter tido uma origem no Céu e de ainda portar uma impressão sutil daquilo que conhecera lá — a maior parte esquecido -, é “puxado” também para o Alto, “Helkein”. Podemos chamar a Anthelkein de Eros Pandêmio e a Helkien de Eros Urânio, tornando mais fácil a compreensão de a “matéria pesada” tender sempre a descer, enquanto a “matéria leve” tender sempre a subir. Sempre foi intuitiva a associação analógica da “matéria pesada” com o corpo e a associação analógica da “matéria leve” com o espírito, desdobrada, esclarecida e enriquecida, aquela, na ideia da Carne, o lócus do Pecado e da Morte, operativos pela Anima, ou alma — que anima o corpo -, enquanto o espírito, Pneuma, está apagado — donde a incapacidade de o homem caído elevar-se, já que não possui de si a força necessária para efetivamente “olhar” para Cima.
Nesta linha é que Jansenius (Discurso da Reforma do Homem Interior) observará na natureza, ou na Criação, uma tendência que é sempre descendente:
Disto provém que tudo aquilo que nasce da terra vai juntar-se à terra, de onde foi tirado, que todos os rios voltam para o mar de onde saíram e que tudo aquilo que é composto dos elementos retorna para estes mesmos elementos. […] através dela [desta lei] vemos algumas marcas e alguns traços da corrupção das coisas pela qual elas perdem suas primeiras qualidades e saem de seu estado natural.
É disto que provém este grande peso que arrasta todas as criaturas à destruição de seu ser e que as faria cair no abismo de seu nada se não fossem sustentadas pela palavra que sustenta todo o universo.
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Desta ordem inelutável, vê-se como o corpo físico tende ao pó, ao retorno de cada um de seus elementos à Máter — da mesma maneira, o nosso espírito quer se elevar, porque o espírito do homem foi soprado diretamente por Deus, não sendo composto de pó. Daí se dizer haver uma “centelha divina” no coração do homem, razão da divinização humana dos relativos e sensíveis, da idolatria, na sua busca ignorante pelo Absoluto — antes, é claro, de sua reabilitação espiritual pela operação do Divino, o Espírito Santo, que é o Espírito de Cristo, o Logos.
… é impossível que algo degenere e afunde eternamente, uma vez que o Mal é também a decadência e a dissolução, ou o desfazimento…
No Céu não haverá marca da Morte, nem Pecado, porque qualquer “filamento genético” do Mal carrega consigo o imperativo descensional — a Vida Eterna é impossível com a existência do Mal, já que é impossível que algo degenere e afunde eternamente, uma vez que o Mal é também a decadência e a dissolução, ou o desfazimento (ele, pois, não é em si, não possui substância). A redução cronológica da vida humana após a Queda foi, nesse sentido, um ato do Amor Divino, para que o homem não degenere indefinidamente e em nível satânico (Gn 3:22) — porque o Senhor, que é Quem dá a existência, não Se comprometeu em sustentar pela força da Sua Palavra uma decadência hominal de envergadura virtualmente ilimitada.
Pela força da Sua Palavra, isto sim, delimitou o horizonte da história da humanidade caída, após o qual a Velha Criação, tendo os efeitos do Mal parcialmente limitados pela Sua Graça, chegando a um fundo de maldade, será desfeita por inteiro, uma vez salvos em Cristo aqueles que O conheceram (Gn 3:15). Estes estarão com Deus na Eternidade, em Corpo Espiritual, ou Corpo Glorioso da Ressurreição, de uma materialidade divinal, mais densa e mais real do que a matéria sublunar da vigente Criação, a qual será, em vista da Nova, uma fantasmagoria, um mero vulto, um vácuo — o mesmo que nada, cindida pela imperfeição, Não-Ser, e perecível, de dentro para fora e pela sua lógica insubstancial, até parecer sequer ter existido, não deixando rastro de si, bastando o Senhor parar de sustentá-la na Sua Vontade. Isto será num átimo.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 23 de outubro de 2024.