O Mar de Vidro e a Imago Dei
Notas em antropologia cristã
No seu argumento a respeito da Imago Dei, Emil Brunner (Dogmática 2), partindo daquilo que o apóstolo Paulo diz em 2 Coríntios 3:18 (“… todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor”), afirma que a nossa verdadeira humanidade é idêntica à resposta positiva que possamos dar ao chamado do Senhor, entrando em conformidade com o “propósito de Deus na Criação” (p. 103). É a atitude do homem para com Deus que determina o seu ingresso, ou não, no propósito do Criador, e se ele, pela fé, receberá d’Ele o amor — se assim for, o homem será correto, mas se não for desse modo, ele todo é errado. Quando o homem, assumindo, de sua forma substancial, que é espiritiva e livre, uma atitude responsável e favorável ao chamado divino, e for inundado do amor de Deus, terá refletida nele, pela fé em Cristo, a Imago Dei.
Brunner fala de “reflexo” mais de uma vez em sua elucubração. A Imagem Divina é restaurada no homem quando ele “mais uma vez recebe a Palavra de Deus primeva do amor” (p. 103), e essa “restauração” não é diversa de uma “reflexão” da Imagem Divina no homem, que a perdeu na Queda. A ideia do reflexo da Imagem de Deus no homem me remeteu ao Zohar: o Verbo de Deus vai se erguendo, erguendo a Sua imagem como o Sol nascente no horizonte do Oceano Primordial, e conforme diferentes aspectos de Sua imagem se revelam, diferentes aspectos da Criação são realizados, até que, quando a Imagem se revela de todo, como o Sol no zênite, está concluída a Obra, porque a Imagem está por inteiro refletida no Mar. Então Ele dá o sobro da vida ao reflexo de Sua Imagem, e assim é feito o Homem, é feito Adão, que é sombra ou reflexo da Imagem Divina. Esse Adão de proporções cósmicas, como já vimos em Barker, é símbolo do domínio sumo sacerdotal do Homem enquanto Imagem de Deus dentro da Criação.
Análoga a esse Mito cosmogônico é a formulação simbólica de Apocalipse 4:6, que descreve o Mar de Vidro, “semelhante a cristal”, que está ao redor do Trono de Deus. Como demonstra Edward Edinger (O Arquétipo do Apocalipse), a visão do apóstolo João da Corte Celeste é a de uma espécie de lócus prototípico ou arquetípico celestial daquilo que existia entre os homens, no Templo de Salomão, e isso também vale para o Mar de Vidro, cujo correspondente é o Mar de Bronze, utilizado para purificações rituais. Esse Mar de Bronze é um representação da Fonte de Água Viva, um símbolo do Oceano Primordial, que se entendia estar selado pela Pedra Angular abaixo do Templo. Enquanto Fonte da Vida, correspondia diretamente ao Mar de Vidro que rodeia o Trono de Deus, conforme se vê na seguinte passagem de um apócrifo de João encontrado em Nague Hamadi:
Pois é ele que olha a si mesmo em sua luz envolvente, chamado de a fonte da água viva. — Cit. Edinger, p. 82
Seria, então, a Visão de Deus entre os homens o reflexo imanente da Imagem Divina Transcendente, lançada no Mar de Vidro
A interpretação que se dá dessa passagem é notável: o Senhor lança a Sua Imagem na Água Viva, no Mar de Vidro, e essa Sua Imagem lançada no Mar é refletida no Mundo dos homens de diversas maneiras, em diversas obras, mas, sobretudo, em teofanias. Seria, então, a Visão de Deus entre os homens o reflexo imanente da Imagem Divina Transcendente, lançada no Mar de Vidro. Dessa maneira, as Visões de Deus, do Cristo Glorificado, são Visões do Trono, um rasgamento do Véu que abre a visão ao Trono no Aravot, no qual Cristo está assentado à destra de Deus Pai. Assim pode ser vista a Transfiguração e assim podem ser pensadas as cristofanias a Estêvão e Paulo.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 23 de Agosto de 2023.