O Mundo Moderno e o Reino de Pã
a vida espiritual quando tudo fica obscuro
O Sagrado é, por definição, da ordem do inexprimível — a experiência do Numinoso antecede e estimula a tentativa de nomear. Ainda assim, o Nome não transforma o Numinoso nalgo previsível, transparente. Poética, a linguagem da fé procura condensar o Todo no Nome, na Metáfora. E por Todo, não digo “Tudo”, mas aquele fundamento sobre o qual toda a realidade se assenta e que pode se manifestar em todo e em qualquer lugar por hierofania. Uma vez que reside na ordem do inexprimível, o divino, em última instância, só pode fazer-se conhecer por Revelação, pelo que anuncia de si mesmo. Esse anúncio virá por manifestações de presença dentro do mundo, interferindo na natureza e na história, mas, sobretudo, por meio de porta-vozes, que em inúmeros casos passam a ouvi-lo após intensas experiências de conversão numinosa — Moisés na Sarça, os discípulos na Transfiguração, Paulo indo à Damasco. Esses porta-vozes inspirados, portanto, de alguma maneira entraram no Sagrado e foram transformados, donde passaram a expressar pela própria estranheza de sua vida o Mistério que preserva a sua autoridade profética.
A qualidade de Mistério é inseparável do Numinoso e é necessário que o Sagrado seja guarnecido de profanidades e trivialidades para que sua qualidade de religação não se perca. Por isso que o mundo natural, o não nomeado, a massa caótica e imprevisível dos ermos é espaço sempre propício para a emergência hierofânica, para a circulação demoníaca, angelical e também para a teofania. A Cidade se levanta e se amuralha para se proteger do Caos, estabelecendo a Ordem desde seu cerne, o Templo. No Templo habita a divindade da Cultura, olimpiana, cercada de todo um ordenamento litúrgico e de uma elaborada economia religiosa. Ainda assim, mesmo no centro da Cidade, o Templo precisa se proteger do profano e do trivial, do excessivamente cultural, e estar aberto no “teto” para a descida do divino. Por isso, o Templo, pois Sagrado, deverá ser rodeado de tabu, de regras e de restrições. No Templo de Salomão, o Santíssimo, onde estava o trono do Deus Invisível, era inacessível mesmo ao olhar de qualquer pessoa, exceto ao do sumo-sacerdote, muito esporadicamente. O interior do Templo seguidamente ficava impregnado de fumaças e de incensos, e nenhum trabalho para sustento humano se deveria fazer em seu terreno e no seu tempo sagrados. O Templo era, pois uma área de fronteira, um espaço quente entre a Terra e o Céu. Similarmente, nos espaços entre as fronteiras das cidades, nos ermos, nos lugares ainda não reclamados por alguma divindade citadina, a emergência do sobrenatural era intensa — daí a necessidade de portais e de outras barreiras quando se estava para entrar nas terras de uma cidade.
As montanhas, as florestas e os pântanos, contudo, não assumidos pelo deus da Cidade, foram feitos espaço de exílio para os deuses relegados, demoníacos, embora não tenham deixado de ser “pontos quentes” para a fulguração da divindade que também está no Templo — só que ali, sem a ordem ritual, o indivíduo fica nu, desprotegido, entregue ao seu arbítrio. A Luz excessiva é, para os olhos, Escuridão, e entre o Todo e o Nada não existem diferenças fáceis de discernir. O Criador, o Deus de Israel, pode aparecer Terrível na Montanha Flamejante e entre os raios do Sinai e Festivo na colocação da Arca dentro do Templo.
Quando não há Templo, reinam os demônios
Um dos problemas em nosso mundo contemporâneo, onde já não há mais tempo e nem espaço sagrados, é a carência de Mistério para resguardar o Sagrado. O Caos, o Ermo dominado por uma força difusa, impessoal, que mantém o chão firme e o córrego em movimento, está agora coincidindo com a própria Cidade — de alguma forma, quando nada é Sagrado, tudo terá de ser, de algum modo, Sagrado. E onde não há Mistério, contraste, tudo começa a ficar obscuro. Não havendo Templo para dominá-lo, o Sagrado não poderá jamais assumir um aspecto diurno, de ordem e de expiação. Na medida em que os estados perdem poder e toda a materialidade da Potestas é dissolvida, imergimos num cenário de domínio difuso, indefinível, imprevisível, vigilante, sempre sutil e penetrante. Esse terror de estarmos sempre na fronteira é facilmente caracterizável em termos noturnos. Quando não há Templo, reinam os demônios e ficamos perdidos nos bosques negros de Pã, cercados de pesadelos. Somos, enfim, prisioneiros de um poder que sentimos não ser legítimo, pois não é apolíneo e nem propiciatório, mas do qual não podemos fugir. Eis o que é o mundo de Pã e de seu povo: Pandemia.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 29 de setembro de 2021.