O Natal em Cristo no Ícone Cósmico
Uma narrativa imaginativa
No Um Dia Eterno, o Ruách de Deus desceu sobre o Oceano, guiando o Trono Régio no meio dos Mares. Disformidade e Vazio, o silêncio de Sepulcro foi cortado pelo uivo do Bóreas, e o Abismo ficou prenhe potência, vertendo Águas Vivas. O Vento Norte, soprando forte, desafiou a Serpente Leviatã, e empurrou-a, junto de seus aguaceiros, para baixo da Terra e de seus pilares, e o chão seco se revelou, aparecendo primeiro no Monte Santo do Éden, encharcado das Águas e fertilíssimo. O Vento Norte, soprando forte, inflou os ares e empurrou os mares, os que não desceram pelos pilares, para cima, para além do domo celeste, entre o cimo do Monte Santo terrestre e a base do Monte Santo celestial, em cujo topo, chamado Aravot, o Régio Trono fora recolocado. Guarnecida por Efes, que são os Confins, ou os limites dos Quatro Cantos, a Terra, enfim moldada (“criada” — bara), então, ficou protegida do Abismo e das Águas de Cima, e pronta para ser povoada.
Tendo inseminado de ‘energeia’ Tohu, e agora posto Bohu à seco, passa o Criador a informar o Caos. Pela Palavra, o Logos Divinal, Luz e Sabedoria, comanda à Terra que dê vegetais em profusão, e no Terceiro Dia a Vida irrompe nos continentes. O Topo do Monte, horto de Deus, também dá seus primeiros frutos, e sobem do chão úmido todas as hortaliças, e caem das pedras brutas gemas de jaspe, topázio, safira, esmeralda e ametista. O Mundo é jovem e, ao comando do Senhor, transborda, e na cornucópia do Éden frutos suculentos gotejam e vertem. E quando as flores, banhadas da Luz do Um Dia, eclodiram seus botões nas pradarias, e as árvores deram suas florezinhas, e os rochedos pariram seus cristais, os anjos que estavam no Firmamento se alegraram e resplandeceram, louvando ao Criador como estrelas da alvorada, e muitos deles foram fixados em seus lugares, para o ofício das adorações, e a outros foram dados caminhos no Céu, comandando os reinos telúricos, minerais e vegetais, e influenciando as formas vivas que vieram em seguida, naquilo em que compartilhavam com o reino elemental. Mas há dois luminares, ou duas potências do Firmamento, que superam a todos eles em glória e em função: o Sol e a Lua, guiados pelos Ventos e seus anjos, governam o Dia e a Noite e regem o Tempo, com seus ciclos de águas e de estações, marcando os ritmos terrestres de vida e de morte, conforme o regime dos Quatro Ventos. Sob o Sol, que é imutável, cujos raios representam as medidas da ordem e da estabilidade do Mundo, desvelando todas as coisas, o Homem e o Filho do Homem exercem seus ofícios de adoração, e sob a Lua, que morre e renasce, e, das mudanças, influi nas marés, na fertilidade das criaturas e no ventre da Mulher, louvam os anjos, de maneira que Deus nunca deixa de ter Seu culto desde a Terra e, da Sua Palavra sendo sempre proclamada, tudo se conserva em seu próprio lugar e em seu próprio caminho, conforme sua natureza, e o Abismo mantém-se na distância certa da superfície, irrigando a Terra, e atrás de seus limites, ou Efes.
Sob o Sol, que é ordem, e a Lua, que move as águas e impõe os ciclos da vida, os Mares foram os primeiros a obedecerem à Palavra do Criador, enchendo-se de multidões de peixes, dentre os quais os seus senhores, ou os monstros abissais. Os Ares, em seguida, deram ao Mundo os enxames das aves, que rasgaram pelos ventos e se empoleiraram nas árvores. Delas, pois, o Horto do Monte Santo se encheu, e os galhos vergaram com as quantidades de seus ninhos. Os cantos dos passarinhos irromperam nas matas e ecoaram nas encostas como o farfalhar das rajadas nas folhas e o burburinho das cachoeiras. As muitas nascentes de Água Viva, que dão nos Quatro Rios do Jardim Murado, igualmente borbulharam de peixinhos, e seus cardumes eram tantos, que se o Senhor lançasse Sua rede nos ribeiros, os puxaria aos montões. Saltavam, pois, nas corredeiras, e suas escamadas multicoloridas resplandeciam ao raio solar. Dos lamaçais, junto dos grous, ouviu-se, ainda, o zunido, o triscar, o chirriar e o ciciar de incontáveis insetos, brotados em nuvens da lama prenhe, e infestaram as beiras e os bosques do Dia Quinto.
Com a alvorada do Sexto, a Palavra do Senhor retumbou como trovões, e ordenou à Terra que desse forma, da vida inseminada pelo Ruách no Um Dia, aos rebanhos e às feras selváticas, e a todos os animais domésticos, e aos répteis, que rastejam. Num repente, à semelhança dos trovões do alvorecer, inundaram os ares os estrondos das manadas, estourando nas pradarias aos mugidos e relinchos, junto dos vulcânicos rugidos dos leões e das panteras, espraiados do coração dos arvoredos. As serpentes se esgueiraram às fendas, agarrando-se com suas patas aos rochedos, e os lagartos puseram-se ao dourado solar, banhados de luz e iluminados em suas escamas brilhantes, couraças de pedras preciosas. No Horto de Delícias, o nascedouro dos primeiros e principais de todos os animais, ficaram os tronos dos príncipes de cada espécie, entronizados aos pares e, fertilíssimos, povoadores do Mundo. E então, pois, o Jardim manava leite e mel.
Bóreas soprou em brisa para a dentro da fenda no Monte e, num repente, o Homem se achou erguido, e seu casulo de pó, oco, atrás dele
Enquanto reinavam os principais dos animais na Terra, Beemote pisoteava nas beiradas do Mundo, Leviatã se revolvia nos Pilares e Ziz esticava suas asas no meio dos Mares, o Senhor, delibrando consigo mesmo e sem nada comandar aos reinos elementais, recolheu porções de pó dos Quatro Cantos e as pôs no centro do Horto, no cume do Monte, feito deles, aos montões, um alto corpo de terra. Umedecido das Águas Vivas do Jardim, na sua profundeza, fora da vista da animália e para além do alcance dos lumes celestes, moldou o Fim da Criação. No Fim, como no Começo: moldou o Homem como moldou o Mundo. Desde o ventre da Terra conheceu seu embrião disforme e vazio de Vida, e foi lhe dando estrutura: primeiro os ossos, depois os nervos, então as veias e as carnes para, enfim, as peles, ainda opacas. Nos íntimos telúricos, no silêncio sepulcral, o Senhor moldou, entreteceu e costurou, e ali estava, deitado e bem selado entre camadas de barro, com forma, mas ainda pálido e vazio, o Homem. Foi quando, pela segunda vez, o Ruách de Deus desceu sobre a Terra, mas não para o Mundo: Bóreas soprou em brisa para a dentro da fenda no Monte e, num repente, o Homem se achou erguido, e seu casulo de pó, oco, atrás dele. Como Sol infraterreno, já não era pálido, mas recoberto por uma veste de luz, e seu corpo era corpo celestial, e sua pele era ela mesma gloriosa como uma veste sacerdotal. Andou, então, para a fora da caverna flamejante, rodeado de fogos ardentes, e pôs-se a ver pelos animais e pelos anjos — Imagem e Semelhança de Deus, enfim. Estava desde já nas raízes da Árvore da Vida, que eram como seu próprio trono. Os príncipes dos animais, sabendo-o imagem do Criador no Jardim, mas não sabendo como oficiar o culto ao Senhor, procuraram adorar o Homem, todavia Adão Glorioso os impediu e, sumo sacerdote, guiou-lhes na adoração do Criador, o único Deus, que ora descansava no Seu Trono, junto ao Mar de Vidro do Santuário Celeste.
O Jardim Murado era o Santíssimo do Senhor no Mundo, e o Mundo era o Templo, e quando Adão oficiava o rito sacerdotal desde o trono vegetal, os príncipes dos animais louvavam a Deus cada um ao seu modo, e conduziam, cada qual sua espécie e sob Adão, aos pés de Deus, O Vivo. Quando Adão oficiava o culto na Terra, os anjos oficiavam no Céu, e era como se Adão estivesse no Um, diante do Trono do Senhor e embebido da Luz de Deus, da qual o seu próprio corpo se encharcava e mantinha luminoso, porque estava no Eterno e no fundamento da Realidade, e, de si, convergia todas as coisas ao Senhor, porque nele estava o Fim e o Zênite da Criação, da qual Adão era a coroa, e era assim que o Homem era visitado por Deus na virada do dia, antes do término do seu ofício.
A Árvore da Vida, da qual o Homem se nutria para a Vida Eterna, estava no Monte Santo e no cerne do Jardim de Delícias, mas também no Santíssimo do Santuário Celestial, junto do Trono de Deus no Aravot. A Árvore da Vida era a Luz do Homem, seu Pão Divinal, e o mantinha informado do Logos Divino. A Luz que se apoderava de Adão Glorioso no Santíssimo do Santuário Terrestre, aquela que emanava do Trono Divino através do Trono Terreno, e que era a Luz Una do Um Dia, era ela o Logos e a Sabedoria, e infundida com o Sopro de Deus nos reinos elementais, deixando-os prenhes de potência de Vida, feita ato quando da Palavra, e nas narinas do corpo inerte de Adão, dando ao Homem a sua substância, a Imagem e a Semelhança do Criador. No Homem, a Criação conheceu seu rei e sacerdote, com quem o Senhor compartilhou algo de Sua natureza. A Luz do Homem, seu espírito e o resplendor de sua veste brilhante, era aquela do Verbo Divino, o Deus Filho, à destra do Pai no Santíssimo. Desde o Princípio e das descidas do Senhor ao Santuário Terrestre, o Sangue Celestial do Verbo de Deus, que é Verbo Criador, estava garantido, uma vez prevista a Queda de Adão Glorioso em Adão Carnal.
Chegada a Plenitude do Tempo, o ponto nodal da Vida do Mundo, à semelhança da queda das vestes luminosas do Homem, quando assumiu corpo carnal e terreno, Deus Filho saiu do Santuário Celestial e da destra do Pai, despindo-Se da Glória para assumir corpo mortal. O Pai achou-Lhe ventre de Mulher e, pelo Seu Sopro, infundiu o Verbo na madre virginal. O Ruách de Deus, como no Um Dia, desceu aos Mares e moveu o Trono nas Águas, fertilizando-as para que ficassem prenhes da Vida. E ali, nas Profundezas da Terra, teceu o Filho do Homem, feito embrião. Fê-lo em segredo, longe da vista da animália, da humanidade e, quiçá, de larga porção dos anjos. Na intimidade e no silêncio do interior da casa, sob a constelação de Virgem habitou Maria. Na madrugada, quando do ofício angelical, deu-lhe a conhecer a José, em sonho, através de Gabriel, o mensageiro dos profetas. Ninguém mais o soube, e o Diabo não podia tocá-Lo, porque não podia vê-Lo.
Nove meses após o equinócio da primavera, que marca a Páscoa e, na cultura babilônica, a descida do Filho Divino ao Reino da Morte pelo tempo de três dias, e como sendo o tempo de uma gestação, foi o Seu natalício, e o foi sob Gêmeos. Concebido na cercania da Páscoa, descido do Pai para o Pó, e nascido, dali, no nono mês — Seu nome é Jesus. Os finais de dezembro, na Babilônia e no Egito, quando da ocasião do solstício de inverno, o ponto nodal da Vida do Ano, marcavam a inversão diurno-noturno e solar-lunar, sinalizando o início da regeneração da Vida e da renovação do Mundo, quando os dias passam a se alongar novamente, e foi nesse dia que Deus Filho Encarnado, saído do Ventre para o interior da Caverna, foi envolto em faixas e posto no Trono Vegetal da manjedoura, rodeado pela animália.
Tardia noite, era a hora do ofício dos anjos, que cultuavam no Firmamento estrelado, e por isso foram eles os primeiros a saber do nascimento do Segundo Adão em Belém, Casa do Pão e Cidade do Rei. Aberto o Céu, a teofania dos fogos divinos rebentou nos campos e rodeou os pastores que estavam em vigília, como rodeara a Adão no Jardim, e hostes celestes, como quando do Sonho de Jacó, desceram em profusão, como se as estrelas do Firmamento despencassem, e foram anunciar-lhes o Messias, a Semente da Mulher, para que os humildes, guardadores dos cordeiros do ofício sacerdotal, fossem também adorar ao Cordeiro de Deus, Filho de Davi. Acharam-No iluminado pelo pilar de luz que descia da Estrela de Moisés, Júpiter e Saturno conjugados pela terceira vez no Signo de Peixes naquele ano, bem sobre a cidadezinha. A luz da Estrela descia pela entrada da caverna e repousava sobre o Deus Menino, que dormia o profundo sono da Criança Divina, guarnecido pelo amor de Sua Mãe e pelo zelo de José, Seu pai.
Ali, enfaixado, Ele dormia, e, dali, cresceria e se fortaleceria em secreto, para revelar-Se Salvador do Mundo na plenitude do vigor humano, sendo recolocado, sob outras faixas sangrentas, no repouso da Caverna, da qual, reencontrado pelo Vento de Deus entre as fendas e no Ventre do Inferno, saiu triunfante, vencedor da Morte, como Adão Redivivo, Rei do Mundo e sumo sacerdote melquisedóquico, investido da glória do Corpo da Ressurreição, que é de matéria celestial. Três dias sob a regência do Carneiro, símbolo do sacrifício. Então, se Deus Filho entrou no Mundo pela Encarnação no corpo da morte, despido da Glória Celeste quando gerado no Ventre da Mulher, pelo qual ingressou na Velha Criação, Ele reingressou no Mundo, subido do Inferno e do corpo da morte, como imbuído de toda a Glória do Verbo de Deus, renascido do Ruách segundo a Primeira Glória, a que foi perdida, e, portanto, princípio de Nova Criação, porque o Véu da Separação do Santíssimo e a Espada Flamejante da entrada para a Árvore da Vida foram retirados. Foi-se a Era do Cordeiro, inaugurada por Abraão sob o Carneiro, e vai-se à Era Cristã, sob Peixes, perene símbolo da Ressurreição do Filho da Divindade.
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Narrativa cotejada a partir de Graves (Mitologia Hebraica e Os Mitos Gregos I), Gorion (As Lendas do Povo Judeu), Barker (Introdução ao Misticismo do Templo), Stein Jr. (O Tupi II), Eliade (Mefistófeles), Rashi (comentários da Torá), Gil’Ead (Gênesis interlinear), Fulcanelli (Finis Gloriae Mundi), Propp (Édipo à Luz do Folclore), Lundquist (O Templo), Malgo (Sinais no Céu e na Terra) e Solié (Mitanálise).
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 23 de Dezembro de 2023.