O Paraíso Celestial e a Interface Terra-Céu
Leituras em escatologia e cosmologia
Lendo o livro de Apocalipse, chamou-me a atenção um detalhe, nunca antes apreendido por mim. No capítulo 5 somos apresentados à Corte Celeste. Vemos primeiro “Aquele no Trono”, que segura o Livro dos Selos com a mão direita, e ninguém na Terra e no Céu tinha dignidade sequer de olhar para ele. O Leão de Judá, o Cristo, é, então, anunciado como digno de abrir o Livro. Descrito como Cordeiro de Deus, apareceu no meio do Trono, e é descrito como tendo sete chifres (onipotência) e sete olhos (onisciência), que são os Sete Espíritos que Deus enviou por toda a Terra (referência ao Candelabro e aos Poderes Planetários da Semana [totalidade do Tempo]). O Cordeiro de Deus, então, tomou o Livro da destra do Pai, sendo imediatamente adorado pelos Quatro Seres Viventes e pelos Vinte e Quatro Anciãos, que se curvam diante d’Ele e, portando cítaras e perfumes, junto de incontáveis anjos “cantaram um cântico novo”. Nesse cântico, é proclamada a dignidade do Cordeiro e a Sua Soberania cósmica, decorrente do Sacrifício. “Cantaram um cântico novo” — esse é o ponto. Novidade no Paraíso, junto do Trono de Deus. Magnânimo! Mas como é possível?
Devemos considerar, aqui, que o Céu, o Éden Mineral que temos por Monte Santo e Nova Jerusalém, não pode ser confundido com o próprio Deus — Ele, propriamente Ele é imutável e eterno. O Paraíso Celeste é Criação de Deus, mas Criação doutra categoria, deslocada do Tempo e do Espaço do Mundo Visível e de certo modo alheia ao processo de Criação do Mundo, conforme descrito no Gênesis. Como Eliade afirma no seu Mefistófeles, o Antigo Testamento não permite confundir a Luz com Deus — ela é uma criatura. Todavia, se trata de uma forma criada distintamente, porque emana diretamente do Senhor, sendo puríssima e inequívoca e a própria substância do Um Dia, de antes do Tempo e da contagem dos Dias da Criação — é a Luz Una, criatura de Deus, que está na base da Criação e do Mundo Visível, como uma espécie de matéria sutil, compatível com o Logos estoico e com a ideia do Ser. Segundo a tradição hebraica, dessa Luz Una, simbolizada no Santíssimo, cúbico e banhado em ouro, como que por distinção prismática, todas as criaturas foram sendo “extraídas” — é a Luz, Logos Divino, que fecunda e informa o Caos e o Vazio, e a Sabedoria, que é o Arquiteto da Criação. O Paraíso Celeste, a Nova Jerusalém, nesse sentido, é análogo ao Mundo das Formas, ou das Ideias, platônico — arquétipo do éctipo terreno, mas também expressão da Mente de Deus (isso está explicitado no Livro dos Jubileus).
É interessante observarmos a interface Terra-Céu e como essa correlação entre diferentes estamentos da Criação pode funcionar. Considera-se que o Ser, as formas ideais na Luz Una, conferem a infraestrutura ontológica do Mundo Visível, e aqui estamos falando do ponto de vista cosmológico. Mas os hebreus não eram como os gregos, porque entendiam que a história também possuía uma natureza ôntica — no sentido de que Deus infundia no Mundo Visível novos elementos, por meio de Sua Revelação e de Seus atos, que iam desvelando a Sua natureza divinal e a Sua vontade aos homens, mas também modificando a própria estrutura do Mundo Visível para que se alinhasse, gradualmente, ao seu propósito derradeiro. A isso podemos chamar, dentro da Teodiceia, “Dispensações”, no sentido de que o status espiritual do Mundo Visível é modificado conforme a economia trinitária e as mudanças da relação entre Deus e os homens, seguindo sempre um rumo escatológico progressivo, pelo qual a Nova Criação, fundada no Corpo Glorioso de Cristo, que é o Corpo Imperecível da Eternidade, visto pelos homens dentro do Mundo da Perecibilidade, enquanto anúncio da esperança da ressurreição dos mortos, e na ação do Espírito Santo, que é o próprio Deus reabilitando, pela habitação, o espírito dos Filhos da Luz, é instaurada. A Igreja, nesse sentido, é substanciada por algo que não é deste Mundo, mas do Alto e do Mundo Vindouro.
A interface Terra-Céu explica as revoluções cosmológicas inerentes à Criação Visível como infusões ou realizações terrenas daquilo que já havia ocorrido no Templo Celeste e diante do Trono de Deus, antes do início do Tempo. O Sacrifício do Cordeiro na Cruz, o derramamento de Seu Santo Sangue no Gólgota, foi a realização terrena do Sacrifício Eterno, do Sangue Precioso “conhecido, de fato, antes da criação do Mundo” (1 Pe 1:20), embora revelado aos homens “nestes últimos tempos”. Quando pensamos essa passagem no contexto de Colossenses 2:17 (“a realidade é o corpo de Cristo”), pelo qual sabemos que o sistema sacrificial da Israel veterotestamentária e as filosofias éticas gentílicas eram apenas “sombra” da Realidade Última, o Sacrifício e o Corpo Glorioso de Cristo, compreendemos que a própria Criação só foi possível por sobre um fundamento eterno de Graça, já enraizada nos méritos do Sangue Precioso e no Corpo da Ressurreição — substância do Paraíso e da Nova Jerusalém, porque embebido da Luz Una que irradia do Trono de Deus. A Crucificação seria, então, a consumação terrena e dentro da história humana, em termos de revelação e dispensação, daquilo que já era realidade no Paraíso, sinalizando uma aproximação ou um estreitamento ontológico entre a “Sombra” e a “Realidade”, cujo zênite se expressa na descida da Nova Jerusalém sobre o Mundo.
… a infusão do Reino de Deus dentro do Mundo Visível seria uma espécie de desvelamento, na realidade material, do status espiritual já conhecido no Céu
A lógica aqui implícita é a da velha sentença da sabedoria antiga, que entendia que os eventos da Terra eram reflexos das revoluções do Céu. Isso aparece nas palavras de Cristo, “assim na terra, como no céu” (Mt 6:10), que seguem a fórmula “venha o teu Reino”, de maneira que a infusão do Reino de Deus dentro do Mundo Visível seria uma espécie de desvelamento, na realidade material, do status espiritual já conhecido no Céu. Tão logo é assim, que o Senhor sinalizou desde os luminares celestes a iminente chegada do Filho em Belém, através da tripla conjunção planetária Júpiter (“sedek”, justiça)-Saturno (associado pelos gentios ao Deus de Israel), chamada Esplendor do Céu, dentro do Signo de Peixes (sinal relevante para os judeus), dando início à Era de Peixes. Convém incluir aqui o fato de que a Era de Áries, o Carneiro, signo da Primavera, se encerrou na época de Cristo, o Cordeiro de Deus, e deve-se observar que a Era de Áries teve início aproximadamente nos dias de Abraão, que encontrou o Carneiro Sacrificial como substituto de Isaque, porque as eras zodiacais perduram aproximadamente dois milênios. Para Edinger (Arquétipo do Apocalipse), essa passagem de um aeon para outro, de Áries para Peixes, e tendo em vista o significado apocalíptico do carneiro para os judeus, tem o sentido de uma inauguração do Tempo Escatológico. Apenas para consolidar esse entendimento, em Stein Jr. (O Tupi II):
O Zodíaco nos apresenta três cruzes fundamentais e uma complementar. A primeira é a do ‘nascimento do precursor do Messias’ e do ‘nascimento natural do Messias’ … Esta tem o seu topo no ‘signo de Peixes’ e o pé no ‘signo de Virgem’: o braço esquerdo no ‘signo de Gêmeos’ e o direito no ‘signo de Sagitário’. Quando o anjo Gabriel apresentou-se ao sacerdote Zacarias, no Templo, em Jerusalém, para anunciar-lhe a concepção de João Batista por parte de sua mulher Isabel, chegou aí sob o ‘signo de Peixes’. Foi sob esse signo que João Batista foi gerado. Seis meses depois, o mesmo anjo entrou em casa de Maria, sob o ‘signo de Virgem’. […] A revelação, colocando o nascimento de João Batista sob este signo (‘Sagitário’) e o de Jesus no ‘signo de Gêmeos’ […].
A segunda cruz fundamental … é a ‘cruz da tragédia do Messias’ sob diferentes aspectos. Esta tem o seu topo no ‘signo do Carneiro’ que rege o primeiro mês do ano religioso, Nisan, o mês em que Jesus morreu e ressuscitou, o mês da Páscoa. O pé dessa cruz está no ‘signo da Balança’, que rege o primeiro mês do ano civil e sétimo religioso, Tishri, o mês em que era celebrada a ‘Cerimônia da expiação ou do Juízo’, rito complementar ao da Páscoa. Esse pé direito é representado pela linha equinocial [na época do nascimento de Cristo], que divide o dia e a noite em partes iguais, igualando o dia e a noite. — pp. 50 e 52
Conforme se vê, e tendo em vista a preocupação ancestral dos hebreus com a leitura do céu noturno, Deus sinalizou aos homens a iminência do desvelamento da Sua vontade, primeiro no Céu, depois na Terra. Tanto é que a conjunção Júpiter-Saturno, por exemplo, é símbolo da “divindade em ação”, o Esplendor do Céu que prenuncia uma alteração substancial na ordem terrestre. Foi essa conjunção, por exemplo, que prenunciou a Era dos Descobrimentos, inauguradora da Era Moderna, e ela também está associada à eclosão do Terceiro Re1ch, já que vinculada à Swástika, que conduziu o f¨her à posição de um tipo de Anticristo, uma vez associado a Júpiter, filho de Saturno, e entendendo a si mesmo como Primogênito Divino e comandante do Eixo Júpiter-Saturno, realizador na Terra, enquanto Rei do Mundo (Melkitsedek), da revolução astral. O foco aqui, porém, não insta nas intercorrências dos últimos séculos, embora todas as supracitadas estão impregnadas de espírito escatológico e apocalíptico.
O argumento é, ao fim e ao cabo, o de que mudanças fundamentais na ordem do Mundo Visível têm raízes em precedentes eternos do Paraíso, como seus desvelamentos, e que o seu anúncio aos homens tende a acompanhar uma sinalização no firmamento noturno — que Smith (A Ascenção Vertical) demonstra ser o aspecto visível ou o símbolo do Céu Espiritual. Mas também o Paraíso, sendo Criação, reage às revoluções terrenas, e conhece novidade ou desvelamento do Mistério de Deus na medida em que suas formas eternas são realizadas no Mundo Visível — por isso há um Cântico Novo quando o Sangue Precioso, válido desde antes da criação do Mundo, finalmente foi jorrado na Cruz, e quando o Filho, Ressurreto, volta para a destra do Pai. Isso não muda a natureza do Paraíso em si, mas se vê no progresso do entendimento daqueles que estão no Paraíso, diante do Trono, que agora podem ver algo antes não visto, porque ocultado também aos seus olhos: o Cordeiro de Deus, digno de abrir o Livro.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 23 de junho de 2023.