O Paradoxo da Religião Moderna
Uma tentativa de diagnóstico de nossa tragédia espiritual
Quando o Culto, cerne da Cultura, porque lócus indispensável do Sagrado, perde-se do Simbólico, que é o veículo do Sagrado por excelência, necessariamente segue pelos trágicos e paradoxais caminhos da modernidade. Por simbólico, entenda-se icônico, mas igualmente litúrgico, e tudo o que corresponda à conservação de ritmos cúlticos na ocasião da celebração cristã, da semana e do ano. Isso o é na medida em que o Sagrado, na sua fonte primeira, que é o da manifestação do Divino, vem como Mythos e só depois Logos, complementares na estruturação do Culto, mas com o Logos à serviço do Mythos, O Concreto Primitivo, traduzido em termos de linguagem hieroglífica, de Mistério, que é também Discurso Poético antes de ser Discurso Retórico, ou argumento, seu rebento natural. É nesse sentido que Kolakowski enquadra as religiões tradicionais na esfera do Transcendente, do Mito, ou, nos termos de Corção, na Ionosfera da Civilização, pondo o Logos à serviço da experiência primeira, que é a experiência do Ser, pelo qual se arquitetam os lugares e os tempos sacrais em vista do temor numinoso, para conter, dirigir e intensificar o acesso ao Divino.
… a eclosão da hierofania aos olhos dos homens individuais é educada pelo refluxo de sua energia religiosa e cúltica…
Uma religião tradicional, que é civilizacional, será necessariamente “mitológica”, porque ordena os dados absolutos do espanto ou da “experiência primitiva”, da rebentação teofânica / hierofânica, a partir de um laborioso e multissecular trabalho especulativo, teológico, cotejador da cosmogonia, da cosmologia, da teodiceia e de uma economia sagrada, em vista de uma escatologia, ainda que seja incipiente, e é desses hercúleos trabalhos que vão se aprimorando a arquitetura sagrada, a liturgia e toda a simbólica, com suas doutrinas e seus mistérios, numa relação de mutualidade e retroalimentação entre a Mitologia e o Templo, ambos coincidentes e inflamados pelo Mito ou pela experiência do Divino, sempre replicada no Culto. Toda a sociedade derredor, assentada de antemão no entorno do Axis Mundi, se serve da irradiação do Sagrado desde o Culto e do Templo, que é agente cosmicizador, renovador da vitalidade do Mundo e de todos os setores da vida cultural, legitimador do Palácio e das Leis, pelo qual se justificam, e vai dando proeminência e lugar a cada coisa, conforme seu grau de proximidade consigo, dentro da dinâmica Sagrado->Profano, até o ermo, extramuros, que é Caos e Demoníaco. Porque O Concreto Primitivo, o selvagem resplandecer do Divino, que pode se dar em toda a parte, precisa ser primeiro fixado no cerne ou no eixo do cosmion, de um éctipo ou símbolo do Cosmos, o Seu Reino, ao qual chamamos “mandala”, inscrito no chão e ritualmente consolidado — esse padrão geométrico será a base da arquitetura e do simbolismo do Templo, e será, por irradiação, o esquema básico da própria Cidade. Essa é, afinal, mais uma necessidade do espírito humano, para que possa sobreviver ao peso da Realidade, do que uma necessidade da Divindade. O homo religiosus será, por conseguinte, eminentemente simbolizador, e toda a Cultura, da Cidade e de sua formação centrífuga com relação ao Templo, que se desdobra da forma ideal mandálica, estará prenhe de símbolos — todos, n’última instância, direcionados em sentido centrípeto ao Centro, ou ao Divino, que, ao fim e ao cabo, é o Absoluto. Essa cosmocização da vida exterior reflete a “experiência primitiva” do Sagrado, que é eminentemente individual, embora aconteça num contexto coletivo, e a intelectualiza, ou ordena — dessa maneira, a raiz de todo o processo, que é a eclosão da hierofania aos olhos dos homens individuais, é educada pelo refluxo de sua energia religiosa e cúltica, estruturada no Culto da Cultura. Isto é a Civilização.
Desde fins da Idade Média, o Ocidente adentrou num processo multissecular de desencantamento do Mundo e de prometeica revolta contra a Tradição, que é, sobretudo, a Fé. Rapidamente assimilou um matiz racionalista, que impõe uma visão do Mundo como um mecanismo impessoal, meramente material, cujos fenômenos não são mais do que expressões de leis fundamentais, inflexíveis, que no máximo refletem uma “calibração” primeira do Criador, que então passa a agir nos termos do deísmo. O Logos se revolta contra a sua fonte, o Mythos, a “Razão” não será mais do que uma racionalidade acéfala, perdida da Transcendência e, por conseguinte, sem Espírito — uma racionalidade, pois, que obstrui o Intelecto. O Logos, rebelado, não tem mais acesso à Matéria Prima e já não tem o que “informar” ou estruturar, se não os dados da experiência sensível, que é de tipo horizontal, e, não mais especulando sobre a infinidade do Ser, especulará sobre os fenômenos materiais, como se fossem o resumo de tudo quanto existe, e assim, um ímpeto luciferiano, ter-se-á cientificismo no âmago da vida pública, secularizada.
Uma “fé” que “desmitologiza” o Texto Sagrado, donde também esvazia o Mundo, respeita a mesmíssima estrutura das criações ideológicas do cientismo…
Naturalmente, as “fés” que se manifestam dentro dos sentimentos ilustrados e racionalistas, serão “fés” sobremaneira individualistas, porque o Mundo exterior já não é mais palco icônico para realidades transcendentais ou aspectos do Ser — se o for, não o será mais em sentido simbólico, mas meramente alegórico, porque são insubstanciais e apenas pretextos para o discurso retórico, ou polemista, que servirá exclusivamente à proteção da “confissão de fé” e à circunscrição da comunidade de fiéis, desguarnecida das sustentações mais naturais e evidentes, ou inteligíveis e acessíveis diretamente através das operações do Intelecto. Uma “fé” que “desmitologiza” o Texto Sagrado, donde também esvazia o Mundo, respeita a mesmíssima estrutura das criações ideológicas do cientismo, diz-nos Kolakowski, servindo-se do expediente praxiológico e militante, de tipo político, enfim, do qual se serve toda a ideologia. Então não será mais do que uma afirmação retórica ou narrativa a respeito do Mundo e por meio da “fé”, afirmação essa indistinta, em termos de qualidade, de basicamente todas as demais afirmações ou narrativas, ao ponto de chegar a considerar a si mesma como UMA “cosmovisão”, que será de UMA “comunidade hermenêutica”. Sem qualificadores substanciais que distingam uma “hermenêutica” da outra, sobra mesmo a autorreferencialidade discursiva, que apela à repetição e à reafirmação constante, em termos de doutrina, dos “pressupostos” da congregação. Isso assim será, e o será sempre mais, na medida em que escasseiam outros veículos que não os verbais, porque não resta Símbolo e nem Mistério, e não há experiência de “culto” que não seja de tipo racional, para a confirmação crônica dos objetos mentais de sempre e para a geração de ligeiras euforias comunais, que irradiam no corpo coletivo quando do fortalecimento dos vínculos da identidade compartilhada.
Para escapar disso, o paradoxo moderno conduzirá pelo caminho lógico que vai do racionalismo ao idealismo e do individualismo racionalista ao subjetivismo emocionalista. A fuga da esterilidade de uma “fé” meramente confessional deverá ser um pietismo exacerbado, que superenfatiza a experiência pessoal em termos extáticos. Aqui se dará proeminência ao irracionalismo, uma revolta contra o Logos e em favor do espectro do Mythos. Contudo, como se chega ao Mythos olhando apenas para dentro de si, sem Tradição, sem uma herança inteligível de Símbolos, sem instrução discreta nos Mistérios, sem a velha sensibilidade ao Mundo enquanto veículo do Transcendente? Um irracionalismo tal procurará se legitimar com algo de retórico ou mesmo doutrinário, mas raramente conhecerá algo que vá muito além da intensificação, por estimulação sensorial e/ou coletiva, de emoções que em si mesmas não significam nada, se não reações metabólicas e nervosas aos estímulos mesmos. A isso Bastide chama de Sagrado Selvagem, na medida em que a ausência quase total do fator “Logos” torna toda a experiência excepcionalmente anárquica e espiritualmente destrutiva — o que quer dizer: além de danosa à vida psíquica e aos seus humores, não carrega em si nenhum tipo de instrução de natureza intelectual, que aproxime do homem da Realidade de si e do Mundo (porque lhe confirma seus próprios entendimentos, inflando-o, no final das contas).
Uma terceira opção, no paradoxo moderno, será a da assimilação quase que completa dos termos utilizados nas “ciências especiais”, sobretudo naquelas da ordem da sociologia e da psicologia, que são as mais ideológicas que todas, e a sobreposição desses termos aos conteúdos da “fé”, que já não mais serão defendidos nem sequer confessionalmente, mas se servirão deles, pervertendo-os, para sustentar causas políticas e ideológicas altamente secularizadas, transformando as igrejas em locais de encontro de “bons cidadãos”, que buscam alimentar em si mesmos a impressão inflada de sua própria bondade humanística, como mais eruditos e benévolos do que todos os outros, estimulando-se conjuntamente na prioridade das demandas societárias, segundo aquilo que se apregoa nas universidades e nos setores “cultos” da sociedade. O culto aqui não será exatamente à confissão e à “comunidade hermenêutica”, mas à empreitada revolucionária, para “melhorar o Mundo”, acrescentando poderes aos “coletivos” militantes e diversitários que já existem “lá fora”. Porque, na falta do Sagrado, o Culto é vazio e não supre as necessidades atemporais dos homens — a vida religiosa, de tipo prometeico e titânico, deverá acontecer e se nutrir noutros e doutros territórios.
… é óbvio que estarão ignorando por inteiro o sentido da Escritura Sagrada…
Contra isso, contra esse liberalismo teológico, que é ateísmo ou agnosticismo práticos de “evolução espiritual pessoal” (pela “melhora” moral, que será “esclarecimento” social e defesa das bandeiras diversitárias), muitos irão na direção de um confessionalismo de tipo fideístico obstinado e potencialmente paranoico. Esses serão aqueles que se apegaram a um fundamentalismo desarrazoado, que assume o Texto Sagrado no mesmo espírito do racionalista ou do empirista: suas sentenças são fatos análogos aos fatos lógicos (axiomas da razão) e aos fatos naturais (concretos e inequívocos), e a eles chamarão de proposições, das quais extrairão pressupostos como se extraíssem objetos tão concretos quanto gemas de topázio desde entre rochedos. Nisso é óbvio que estarão ignorando por inteiro o sentido da Escritura Sagrada, seu propósito e sua linguagem. Daí, por dedução, se assentarão sobre sistemáticas teológicas e sobre arquiteturas doutrinárias que dificilmente serão mais do que abstrações, uma vez que raramente corresponderão à realidade objetiva, às necessidades próprias do homem e aos imperativos da vida no Mundo real — serão, enfim, basicamente impraticáveis, às raias do utopismo, e redundarão em “fés” de tipo mórbido e em esquemas de comportamento público de tipo paranoide. Dada essa impraticabilidade debilitante e desumanizante, não são poucos os que saltam desses meandros para a permissividade promíscua — uma vez que o cerne da coisa está na definição, por interpretação direta de trechos isolados da Escritura e a partir de sistemáticas teológicas condicionadas, do “proibido” e do “permitido”, basta mudar a “chave” de leitura para que o “todo proibido” se reverta, num instante, num “todo permitido”. Isso é assim quando não se tem nenhuma outra sustentação para as afirmativas que não sejam palavras e abstrações inevidentes.
Textos de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook em 29 de janeiro de 2024.