O Programa Arquetípico

Ainda sobre instintos e arquétipos

Natanael Pedro Castoldi
5 min readJun 11, 2024

Quando C. Jung aproxima do arquétipo do instinto (enquanto Psicóide [psicossomático]) e do símbolo (a imagem arquetípica), nos termos de sua hipótese da energia psíquica, dá margem para uma correção de certos equívocos que vertem da modalidade popular da psicologia profunda — equívocos que eu mesmo perpetrei. A clareza a respeito do que seria de fato “arquétipo” (em psicologia) eu só pude conquistar melhor recentemente, quando iniciei meus estudos sobre os instintos em Montpellier (Psiquismo no Homem e no Animal), os quais caíram muito bem para os insights na energética psíquica junguinana.

Dois pressupostos são necessários, aqui:
1 — Enquanto a forma do instinto no homem, como consequência do trabalho filogenético, o arquétipo deve possuir uma matriz somática (é armazenado no corpo) análoga ao filamento proteico que constitui a memória. Jung lança a hipótese de os instintos, “essa forma especificamente humana de reagir representada pelos arquétipos” (Grinberg), serem hereditários, presentes no “citoplasma das células germinativas” (Jung). Lobaczewski reconhece essa perspectiva, determinando que o instinto, no homem, “tem uma estrutura biológica diferente da dos demais animais” (Ponerologia) em decorrência de uma diversa qualidade vital, energética: mais dinâmico e, portanto, mais receptivo, o substrato instintivo humano é permeável “aos controles da razão” — os usos da razão e da cultura primordiais imiscuíram na base plástica dos instintos uma miríade de inovações, as quais passam a perdurar como qualidades próprias do filossoma humano, transmitidas geneticamente. E. O. Wilson o verá no processo multimilenário da dialética gene-cultura.

2 — Como a forma humana do instinto, cada arquétipo, enquanto tendência, existe para mobilizar a ação, instigar o movimento que saciará uma inclinação natural (do homem), quando despertada por determinado estímulo. Sendo instinto, um arquétipo carrega em si um programa inteiro de atos a serem empreendidos com relativa rigidez e segundo um padrão sequencial ligeiramente flexível. Isso significa que o arquétipo, despertado como instinto, assumirá formas mentais imagéticas de qualidade sintética e variável, como uma verdadeira constelação de imagens, que vêm propor um grande esquema de ação, cujo alcance (o efeito) pode variar de um dia até uma vida inteira.

… o arquétipo não está exatamente na imagem, mas no programa de ação…

Disso nós nos dissociamos mais claramente do vício de confundir o arquétipo com a multiplicidade infinita de imagens que eles podem assumir na consciência, nos voltando ao entendimento de que o arquétipo não está exatamente na imagem, mas no programa de ação, no tipo de movimento ao qual determinada imagem possa estar vinculada. De outra maneira: a Lua, por exemplo, não é um arquétipo per se, e será apenas uma “coisa” enquanto não tiver sido associada a algo da natureza humana. A mera descrição de sua influência sobre o ciclo das águas e da fertilidade não é mais do que uma avaliação fenomenológica. Agora, se o reconhecimento da sua participação nos ciclos femininos, dos seus fluxos e na sua fertilidade for levado em conta e a Lua se tornar uma representação global da Mulher, então teremos um símbolo — porque o símbolo, em sentido psicológico, sempre vem como uma síntese imagética de alto pode vocativo, capaz de dar significado e mobilizar inclinações (se presta ao movimento). A imagem arquetípica será, então, não a Lua, mas, da aproximação da Lua com a Mulher, a Grande Mãe, talvez.

Eis um símbolo tão potente, que pode constelar abaixo de si uma quantidade indeterminável de imagens análogas, instigando e matizando disposições anímicas. A Grande Mãe estará ligada, por exemplo, ao instinto reprodutivo, acolhendo sob si o arquétipo da Virgem Fértil, e ao instinto de proteção, acolhendo sob si o arquétipo da Senhora, de colo e seio acolhedores, se não da Anciã, prenhe da Sabedoria. A depender dos estímulos primeiros, ou das necessidades relativas à etapa do desenvolvimento da personalidade ou ao tipo de situação que se enfrenta, esses apetites verterão num ou noutro sentido, mobilizando disposições psicossomáticas e estabelecendo uma espécie de itinerário a ser seguido — aquele do apaixonado diverso daquele do desamparado.

Um símbolo da Grande Mãe, variando entre uma ênfase no vegetal, no aquático, no lunar e até no draconiano, manterá conexões ínferas com o arquétipo do qual eclodiu e do qual é imagem, mas terá efeitos propriamente arquetípicos tão somente se mobilizar no observador as mesmas tendências que estiveram na raiz de sua concepção imaginal — essas tendências poderão variar conforme o tipo de estímulo que nele exercer, e isso nem sempre é arbitrário: dependerá da necessidade, do apetite que estiver latente, em gérmen, naquele que vê. O jovem que sente a compulsão, por pressão somática e psíquica, de derrotar heroicamente o Mundo, domando a si e à vida, sentirá pavor, um assombro da Mãe capaz de articular uma constelação de arquetípica favorável à disposição beligerante, autoafirmativa, autonomista — ele verá o colo da Mãe como prisão. O vasto arquétipo do herói solar, com todas as suas qualificações viris, dominará o sentido do símbolo da Grande Mãe, propondo um verdadeiro itinerário ou campo de ações efetivas. Se, todavia, estivermos falando daquele homem de meia-idade, prestes a viver a crise no sentido autoimersivo da Nekyia, a imagem da Grande Mãe poderá mobilizar nele a sensação da presença do telúrico e do ctônico, do Abismo e da necessidade de descer à profundeza nascitural, como se descobre na página três das tragédias de todos os heróis solares — só assim poderá subir dos ínferos preparado para uma reconciliação com o Mundo e com a Vida, e com o feminino objetivo, é claro.

A eclosão do instinto / arquétipo deve vir já com o programa de ação estereotipado, sintético…

O supracitado se prestou a exemplo. Poderíamos multiplicá-los indefinidamente, mas penso ser suficiente para a sustentação do argumento: como instinto, o arquétipo corresponderá ao modo pelo qual a criatura humana pode saciar verdadeiramente, em termos de valor existencial, todas as suas necessidades perenes, assim como atravessar a todas as etapas e experiências típicas do homem de todos os tempos e de todos os lugares. Se o casamento, exemplifico novamente, não é um arquétipo, ele se torna imagem arquetípica quando descoberto no símbolo (a Hierogamia, o Casamento do Sol e da Lua…). A passagem por ele é um dado universal da experiência humana e atuou diretamente no filossoma, lapidando a forma de o instinto reprodutivo ser programado no ser humano — contém uma série de etapas, de atos sucessivos ideais, como o galanteio, a cerimônia e a consumação. Isso corresponderá necessariamente ao arquétipo e a uma constelação arquetípica capaz de absorver a magnitude afetiva e psicológica dessa experiência e dar-lhe um curso. A eclosão do instinto / arquétipo deve vir já com o programa de ação estereotipado, sintético — assim, é invariável que o despertamento do amor no jovem, ao constelar o programa arquetípico, o ponha de imediato dentro do esquema de ações e tendências à realização cabal desse programa. Por isso, assim que despertado para o amor e dominado pelo instinto / arquétipo, ele se verá inserido num novo mundo e sentirá a realidade de uma outra maneira — estará imerso no “arquétipo”, por assim dizer.

Isso implica no pensamento que possamos ter a respeito da maneira como os relacionamentos acontecem em nossos dias e dos impactos nocivos da quebra constante do programa instintivo / arquetípico, assim como do aprisionamento crônico em repetições de apenas uma ou outra etapas do itinerário previsto, com consumações sem sacralidade, sem respeito aos processos inscritos filogeneticamente.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 11 de junho de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.