O Que É, O Era, O Que Virá
O Nome Santo no Apocalipse de João
Guardei grande impressão da sentença de William Barclay no comentário de Apocalipse 1:4, do seu El Nuevo Testamento Comentado: “Juan revienta los límites del idioma y de la gramática a fin de manifestar su reverencia por Dios. […] su referencia hacia Dios es tal que se niega a modificar la palabra que lo denomina, aun cuando las reglas gramaticales exigen la alteracíon.” Impressionou-me, porque sempre ouvi a respeito do Apocalipse de João a acusação de que, devido à baixa qualidade de seu texto, o autor não deveria ser bem versado no grego, já que comete notáveis erros gramaticais. Mas aqui está: um “erro” gramatical justamente no ponto da escrita do Nome de Deus não deve ser um caso de ignorância, mas uma escolha deliberada do autor para conservar o Nome inalterado. Nisso, há uma similaridade do grego joanino com o árabe do Corão: a língua deve se vergar à necessidade do Texto Sagrado, não o contrário, quando da disputa entre o Santíssimo e a estrutura da linguagem.
O caso é o seguinte: segundo Barclay, biblista que tem se mostrado dono de uma erudição desnorteante, a sentença “daquele que é, e que era, e que há de vir” é problemática no original. A forma normal de um substantivo grego é o nominativo, se o substantivo for o sujeito de uma oração. Quando, todavia, o substantivo está sujeito ao regime de uma preposição, o caso muda e sua terminação é modificada — há uma analogia que o tradutor de Barclay demonstrou existir no espanhol (caso similar no português): El é o pronome da terceira pessoa do singular e Suyo é o pronome da terceira pessoa do singular sob o regime de uma preposição — “dele” = “seu”. No caso do grego de Apocalipse 1:4, “el que és” (“O [Ele] que É”), a frase deveria ser segundo o genitivo, porque tem-se ali a preposição “de”, “de él” ou “suyo” (“daquele que é”).
João cria uma expressão grega nova, completamente antigramatical e nunca utilizada antes por nenhum escritor grego…
O mesmo segue na continuidade do versículo: “del que era” (“daquele que é, que era…”). Para dizê-lo, o evangelista deveria ter escrito no particípio, todavia, no grego, o verbo “ser” não possui um particípio passado e em lugar do particípio passado se utiliza “genomenos”, de “gignomai” — “ser” ou “chegar a ser”. Todavia, dizer de Deus que Ele “chega a ser” implicaria um subentendido de possibilidade de mudança na natureza divina. Para evitá-lo, João cria uma expressão grega nova, completamente antigramatical e nunca utilizada antes por nenhum escritor grego, ao dizer Deus É “O Era”, não “Deus que foi” ou “que vem sendo”: “[João está] diciendo que ‘Dios es el era’, y no, como hubiera sido correcto, ‘el que era’”. Dessa maneira, o apóstolo põe abaixo o limite gramatical da linguagem, submetendo-a à necessidade teológica e, sobretudo, ao escrúpulo e ao temor cabidos ao Deus Eterno, que não muda e cujo Nome é Nome Santo.
Ao contrário de um indício de ignorância linguística, essa passagem do Apocalipse apresenta o gênio de João, Filho do Trovão. Também evidencia a gravidade com a qual João assumiu a comissão de redigir o Apocalipse, conscientemente entendendo estar escrevendo literatura sagrada, Escritura e Livro Santo, donde a sua preocupação com a perfeição doutrinária, que deveria estar aparente até nas menores fórmulas e palavras, em conformidade com a pureza absoluta da Revelação que recebia do Espírito Santo. Nisso está implícito todo um cabedal de mistérios joanianos e cristãos primitivos que repousava sobre fórmulas gramaticais e doutrinas precisas, transmitidas com máxima seriedade, como um léxico de Nomes Divinos, dentre os quais “O [Ele]” — substancialmente diferente do idêntico “o [isto, ele…]” utilizado para coisas e pessoas comuns. Como Nome Divino, “O [Ele]” não deveria ser alterado, como fizeram as nossas traduções com “daquele/dele”, donde teríamos “da parte de O Que É, O Era, O Que Virá”. Reitero: o esforço joanino em não modificar o Nome Divino evidencia o Apocalipse como Escritura Sagrada desde sua confecção, porque respeita a Tradição Sagrada certamente legada por Cristo aos Apóstolos, Tradição que continha, por uso e instrução, as maneiras de Cristo se referir a Deus, que se tornaram Nomes Divinos que os cristãos, precocemente instruídos a respeito de Cristo Deus, utilizaram também para Jesus.
Esse zelo com o Nome de Deus e Sua Verdade, guarnecido desde as minúcia linguística, deve nos constranger tremendamente, porque perdemos quase por inteiro esse tão escrupuloso senso do Sagrado com relação à Escritura Santa e ao vocabulário da Fé, nos dando o direito de torcer e distorcer o Texto conforme conveniências pessoais e facilidades práticas, além de chegarmos ao ponto, isso enquanto cultura ocidental, de chamarmos a Deus “O [Ele]” de “A [Ela]” ou de uma coleção de outras palavras vazias, nunca autorizadas pelo Texto e pela Tradição.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 13 de janeiro de 2024.