Sobre revolucionários e seus medos noturnos

o pavor da Realidade e o histerismo político-midiático

Natanael Pedro Castoldi
4 min readOct 8, 2021
Witches in Flight, Francisco Goya

A contradição interna da mentalidade diversitária, de matiz progressista, é evidenciada por Côté (2021) dentro de sua própria luta por controle sobre a Realidade e todas as suas variáveis — para sustentar a nova ideia de civilização que se quer erigir, vai da espiral do silêncio (ignora-se a existência daquilo que pode contestar a propaganda) à distorção ativa da Realidade (interpreta-se doutro modo aquilo que é evidente para qualquer um que tenha dois olhos), passando pela perseguição a todo aquele que representar ameaça à narrativa. Isso é sintoma da contradição visceral, pois a reatividade ao peso da Realidade, imposta, visando o estabelecimento doutra, virtual, é desproporcional ao nível real dos estímulos hostis — é como se, atacando blogueiros e outsiders políticos, estivessem se protegendo de uma sombra muito maior, que paira atrás de cada opinador rebelde.

Mas o que isso tem de contraditório? Ora, para o progressista, a realidade é construída pela linguagem — o que existe é o nomeado, o que não foi nomeado não existe. Por isso intenta estabelecer uma novilíngua, pela qual se quer abolir palavras associadas a elementos subversivos e criar palavras novas, capazes de definir e dar realidade aquilo que só existe na imaginação ideológica. É exatamente aqui que mora o problema: se a questão fosse tão simples, se tudo fosse meramente linguístico, não ficaria parecendo, dada a desproporcionalidade das ações diversitárias, que por trás de pessoas e de palavras está sendo confrontada a própria Realidade, em todo o seu caractere numinoso, brutal e incontornável. Por mais que a narrativa sustente a existência dentro dos limites da linguagem, há uma consciência profunda de que se está combatendo algo mais do que comportamentos e palavras — a Realidade é mais do que a linguagem e tende a esmigalhar aqueles que intentam obsessiva e compulsivamente contra ela. Os “antigos deuses” foram abolidos, mas não deixaram de existir: agora agem nas trevas como demônios vorazes, sempre à espreita e no limiar de retornarem com todo o seu peso. Tal “retorno da maré” parece assombrar a vida onírica de todos os ideólogos com pesadelos terríveis.

Os “antigos deuses” foram abolidos, mas não deixaram de existir

Isso cria uma distorção absurda no modus operandi do regime diversitário, observado há muito tempo nas tiranias. Como não se pode reconhecer a existência de uma realidade concreta cheia de substância pré-verbal e que contenha em si toda uma potência própria, capaz de esmagar seus opositores, acaba-se hiperestimulando todos os controles de vigilância e de punição dos “inimigos do regime” pela alegação neurótica de uma ou mais redes de subversão — sempre há um esquema maligno articulando os opositores, um sistema financiado por grandes empresários ou por governos sinistros, uma máfia todo-poderosa de potencial terrorístico e interessada, como um “diabo na história”, pela aniquilação de tudo o que há de bom. Toda a ortodoxia precisa de seu próprio diabo. Se não há mais sobrenaturalidade e nem metafísica, o diabo deverá estar dentro do tempo e encarnado em pessoas e em esquemas. Isso leva a um alarmismo cada dia mais estridente e a um comportamento histérico mediante qualquer sinal de insubmissão — qualquer opositor é um agente do Maligno.

… quando mais estendem seu poder e se aproximam do absolutismo totalitário, [os governos revolucionários] mais se preocupam com as oposições escondidas que percebem no fundo da opinião. — Gugliemo Ferrero, citado por Mathieu Bock-Côté, 2021, p. 65

Essa trama conduz a todo o tipo de absurdidade, pondo no centro da distorção midiática e como inimigos de toda a bondade pessoas aleatórias, quase anônimas, que tenham se destacado um pouco mais afirmando posições políticas e ideológicas consideradas polêmicas. Assim, youtubers e jornalistas independentes são colocados como participantes de uma rede subterrânea de ódio e têm suas casas invadidas pela política do Estado. Veja bem: o que não fazem os demônios em seus túneis abaixo das cidades e no meio das florestas, indo ao encontro das bruxas no sabbath, devem fazer outros — os papéis e os pesadelos não deixam de existir. O resultado é que, quanto menos inimigos reais, quanto mais poder adquirido e quanto maior o controle geral, tanto maior fica a sombra do oponente e maiores são os alarmismos e a caça de contraventores. Quanto mais gigante o Estado, mais apavorado fica com aquele um e aquele outro opositores. É o elefante sempre com mais medo do rato.

Tudo isso se deve a uma falha espiritual na mentalidade diversitária: o que eles acham que temem, não é o que realmente lhes aterroriza. Quanto menos inimigos visíveis, menos bodes expiatórios sobram para desviar o olhar dos inimigos invisíveis, proporcionalmente mais numerosos. Quanto mais absoluto o Estado, mais atrita com a Realidade e mais próximo está do juízo e do colapso. O medo do julgamento divino aumenta sempre mais, pois mais perto se chega ao conflito final, que é o objetivo de toda essa revolta luciferiana contra a Realidade: atacar os Céus e destronar a Deus. Antes de esse dia chegar, é o nerd do blogspot que recebe sobre si toda a fúria que se tem contra a Realidade mesma. Por isso é-lhes inviável ficar sem inimigos — sempre que acabam aqueles da sociedade ao redor, os inimigos e traidores são achados entre os próprios pares. Eis o que é: os revolucionários nascem num brado contra Deus e como realizadores do Juízo Final, mas, no fundo, não têm coragem de ir às últimas consequências e de provocar esse Juízo que prometeram realizar, visto saberem que, na última hora, eles é que serão os julgados.

CÔTÉ, M. B. O Império do Politicamente Correto. São Paulo: É Realizações, 2021.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 8 de outubro de 2021.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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