O Símbolo Satânico
Sobre a negação moderna do Diabo
Dei-me conta, ao ler Wim Malgo (Na Fronteira Entre Dois Mundos), que uma das grandes tragédias da igreja contemporânea, em seu verniz humanista, é a relativização da figura de Satanás. Digo-o tendo em vista que a figura do Diabo ganha enorme vulto no contexto da escatologia — que é basicamente a infraestrutura da fé cristã, uma vez que a Igreja existe no Tempo Escatológico, o Tempo da Paróquia. Fica-se em devaneios sobre a identidade do Opositor em Jó, sobre os oráculos de Isaías e Ezequiel, mas se esquece da explicitude e literalidade de Satã no Novo Testamento.
… a Antiga Serpente assume o vulto de síntese de todas as potências caóticas
Herdeira do simbolismo genesíaco de Leviatã/Beemote, a Antiga Serpente assume o vulto de síntese de todas as potências caóticas, destrutivas, ligadas ao Abismo, carregando em si, em termos simbólicos, a inteireza daquilo que seria oposição ao Criador, Senhor e Cristo. Isso de maneira alguma transforma Satanás numa divindade ctônica e polarizante, no sentido de equivalência, com Deus, mas assimila ao símbolo do Querubim Caído todo o Reino da Perecibilidade — tudo quanto seja próprio da Velha Criação, que conheceu degeneração e pecado, e sobre a qual se impõe o Império das Trevas. Porque a Nova Criação, revelada aos homens no advento da Encarnação, da Morte e da Ressurreição de Cristo, e estabelecida gradualmente, como numa invasão, pela Igreja é, ainda, uma espécie de “organismo estranho” dentro da Criação Antiga, que Deus rejeitou em Gênesis 3.
Segundo Wim Malgo, a Queda da Criação aparece nos primeiros versículos de Gênesis 1, porque Lúcifer teria se revelado assim que o Senhor deu o estopim da Primeira Criação, inicialmente todo-luminosa (à semelhança da Luz Una que irradia do Trono de Deus no Aravot), para rapidamente decair em trevas — mas Deus, segundo Malgo, “uma vez iniciada uma obra, … não a deixa incompleta”, e de fato realizou e concluiu a Criação em Seis Dias. A Luz da Sua Glória ficou retida em Adão e em Eva, antes de caírem pela sedução da Serpente — ocasião pela qual o Criador tornou conhecido o Seu propósito salvífico, anunciando a rejeição da Criação Caída em favor da Nova Criação. Independentemente da validade teológica dessa hipótese, o seu sentido coaduna com o princípio escatológico aqui evidenciado: todo o processo criacional relatado em Gênesis é, desde o início, uma prefiguração da Nova Criação, de antemão conhecida por Deus e viável, desde antes da Fundação do Mundo, pelo Sangue do Cordeiro de Deus. Noutros termos: a Criação, mesmo a de Gênesis 1, é estabelecida provisoriamente, como finalização de uma Primeira Criação obscurecida pela rebelião luciferiana, já em vista dos Novos Céus e Nova Terra, e a ação de Satanás, tendo lançado trevas na Primeira Criação, se voltou para a aniquilação da Glória de Deus no Homem. De fato, não podemos negar que Deus, em Sua presciência, sabia tudo de antemão, e soube declarar a qualidade de todas as criaturas, afirmadas como “boas” nos termos de sua verdadeira natureza incipiente, a ser de fato desvelada em toda glória e potência no Paraíso Vindouro. Isso também se aproxima da ideia escatológica de que os eventos manifestos na Criação e na História são desdobramentos e revelações daquilo que já está prefigurado no Céu — a realização da Nova Criação no Sangue de Cristo, fato espiritual antes da Criação, não foi conhecida nesta, mas passou a ser conhecida em Jesus, para se realizar depois da História.
Embora eu não assuma o pensamento de Malgo a respeito de uma Primeira Criação em Gênesis 1:1, entendo o quanto essa percepção é lógica e compatível com aquilo que conhecemos na literatura apocalíptica e no pensamento escatológico: o Mundo, nos termos de sua sombra, sua violência e do predomínio da morte, é dominado pelo espectro satânico, de tal maneira que fora do Éden houve homicídio, e em poucas gerações tudo degenerou nas mais absolutas trevas, ao ponto de uma espécie de refundação da Criação através do levante das águas das Fontes do Abismo, com uma continuidade em termos de aliança noética, visando a Encarnação e a Nova Aliança futuras. Toda a história do Mundo Antigo e pré-cristão é dominada pela supremacia demoníaca nos governos e nas religiões gentílicas, de maneira que Satanás pode oferecer a Cristo os “reinos da terra”. E, Pai da Mentira, pela qual levou a Morte aos homens, sentiu-se vitorioso quando entendeu ter conseguido matar o Filho de Deus, todavia é aqui que se inicia o Tempo que Resta, desvelado o Eschaton pela derrota da Morte e abertos os Tempos do Fim. Desde o estabelecimento da Igreja na Ressurreição de Cristo, vencida a Morte e sobrepujadas as potestades deste Mundo, o Reino de Deus se impõe, faz conhecido o Evangelho e imiscui Imperecibilidade, os Valores do Alto e a garantia da Ressurreição dos Corpos, dentro da Perecibilidade do Mundo Condenado, e que será lançado no Lago de Fogo junto de Satanás e de seu Império — que são símbolos da degeneração e de tudo aquilo que não existirá na Nova Vida.
É notável como o princípio escatológico, na medida em que apregoa a aproximação e o choque entre os Dois Mundos, necessariamente ampliará e universalizará o símbolo de Satã, na medida em que ele é afirmado enquanto síntese de todo o Primeiro Reino, o do Pecado e da Morte, como a inteireza daquilo que milita contra o Espírito e o Reino de Deus, a Nova Criação pelo Corpo Glorioso de Cristo Jesus e realização total dos méritos do Santo Sangue Eterno. Esse estreitamento das fronteiras, essa tensão ontológica, apresentará seu clímax no levante do Anticristo e de seu império global — reação última, final e total de tudo quanto Satanás e duas hostes sejam capazes de investir contra o Senhor. Esse desvelamento do Mal em sua plenipotência, decorrente da perda de seus disfarces históricos e de sua apresentação ontológica crua e visceral, é um imperativo escatológico, o teto até onde consegue chegar o mal crescente ao longo dos tempos (“Continue o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo” — Ap 22:11), donde seu desvelamento último, no arquétipo de Anticristo e Babilônia, que dispensou seus éctipos ou tipos ao longo de toda a história humana. É nessa inflamação do Mal total, com toda a sua fúria anômica irradiada contra Deus, que virá pelo Céu Rasgado o próprio Deus Filho, montado no Cavalo Branco, pronto para a batalha e para fulminar, com o peso total da divindade, n’Ele plenificada, contra o Mal todo, condensado, ao ponto de desfazer os elementos e abrir caminho para o “pouso” da Nova Jerusalém sobre a Nova Terra.
É importante, conclui-se, que não se ignore mais, como se tem ignorado, a figura de Satanás. O maior inimigo de Deus não é o homem, mas o Diabo. É o Império de Trevas, o Reino de Satã, que faz oposição ao Senhor e estão nele, sob suas garras, todos aqueles que desconhecem o Cristo e que O rejeitam. Isso significa que a “batalha espiritual” é um empreendimento legítimo, já que há forças sobrenaturais, não apenas morais, que mantém o indivíduo afastado da Luz — uma presença real, muito concreta, de Satanás, seja em termos de influência, na figura de símbolo do Mal Total (o que não quer dizer “Absoluto”), e em termos literais, de anjo caído mesmo, líder de incontáveis demônios. Deve-se, por conseguinte, diminuir a influência excessivamente humanista, porque moralista e egocentrada, que atribui tudo às motivações do homem individual, em sua interioridade — embora seja do coração deste homem que brotam as fontes do pecado com o qual nasceu, as coisas não se resumem à sua subjetividade, tampouco ao seu nível de “cultura teológica”.
E quando o Rei dos reis, morrendo, removeu o pecado, o diabo perdeu todo o direito sobre aqueles que se refugiam na fronteira aberta, na cruz do Gólgota. — Malgo, pp. 22–23
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 5 de julho de 2023.