O Sagrado e o Profano na Igreja Primitiva

Observações sobre a vocação itinerante

Natanael Pedro Castoldi
4 min readApr 5, 2024

Saltou-me aos olhos a evidência de que era prática rabínica recomendável a lavagem de mãos após a leitura das Escrituras. Repito: era bom que o sujeito se purificasse do contato com a Palavra Sagrada, terminado o manuseio do Livro. Como comenta Mary Douglas (Levítico como Literatura), uma prática tal é ininteligível para o homem de mentalidade moderna, que não pode ver no contato com as coisas sagradas quaisquer tipos de contaminação — porque, ao fim e ao cabo, ele perdeu o sentimento do que de fato seria o Sagrado e a sua experiência. Para o homo religiosus, que ainda conservava as relações recíprocas entre Sagrado e Profano (com este decorrente daquele), tanto o Sagrado não poderia se profanado (donde a necessidade de purificações rituais antecipatórias ao contato com ele), quanto o Sagrado não poderia vazar descuidadamente no Profano (que daquele se nutria por irradiação e justamente na conservação de seu status sacral), daí a necessidade de purificações rituais retrocipatórias, para que o crente pudesse se esvaziar do carisma divinal e fosse capaz de redirecionar suas faculdades às tarefas cotidianas — do contrário, sem o devido desarme das potências genesíacas mobilizadas no culto e no rito, poderia voltar à vida comum mental e espiritualmente preso ao modus cúltico, contaminando as demais pessoas por aquilo que Bastide chamou de “sagrado selvagem”, tornando-se, pois, uma ameaça real à sanidade e à ordem sociais. Deve o indivíduo munir-se de preparações para ingressar no Sagrado, porque o seu peso esmagador, se sentido desnudadamente, aniquila o ego pessoal, e deve o indivíduo munir-se de meios de desligar-se do Sagrado para que possa reingressar em paz no mundo dos homens. Daí o aparente paradoxo que insta na necessidade de se purificar do contato direto com as Letras Sagradas.

Entre os cristãos primitivos, ainda que impregnados do senso escatológico de já viverem no Reino e de já serem “makarios”, um tal senso da dupla via do Sagrado (para nele ingressar e para dele sair) se conserva. Isso é óbvio pelo simples fato da preferência por locais de culto fixados e consagrados, seja na melhor sala, devidamente ornamentada, da melhor casa dentre aquelas dos membros hospitaleiros da congregação, seja d’além dos umbrais da catacumbas dos mártires, seja, mais adiante, no uso dos antigos templos mitraicos e da replicação de sua arquitetura. É igualmente óbvio pela evidência de uma liturgia bem estabelecida, talvez mais generalizada, homogênea e precocemente difundida, nas primeiras décadas, do que algumas epístolas apostólicas — a Sã Doutrina acompanhava uma ordem de culto cujas raízes remontam a uma instrução direta da parte de Cristo, respeitando, em parte, o sistema de encontro das sinagogas, em parte (e principalmente) uma tradição litúrgica retirada diretamente do Templo salomônico (o que está evidente sobretudo em Hebreus e em Apocalipse). É bastante provável, na realidade, que o modelo de culto mais determinante para a celebração cristã seja, de fato, aquele do Templo, mais do que o da Sinagoga, na medida em que apreende e articula muito bem os símbolos da mobília e da liturgia do Santuário, ressignificados (ou remobilizados) em Cristo, Deus louvado com hinos e cânticos espirituais, mas também através do Batismo e da Ceia, cujas contrapartidas, na medida em que os cristãos se entendiam como nação sacerdotal, são melhor verificáveis no Templo do que nos ritos sinagogais.

Essa “sacralização” da condição andarilha puxa motivos proféticos…

Uma base menos óbvia para a sustentação da tese da clara conservação da distinção Sagrado e Profano na Igreja Primitiva está no sentido da vocação missionária, vertida na comissão universal entregue por Cristo, evidente nas epístolas apostólicas e no Didaqué. Eram muito comuns os evangelistas e os pregadores itinerantes perambulando pelo circuito das igrejas. À luz do definido por Cristo para a Missão dos Setenta, esses peregrinos, quando em andança, eram vistos como profetas em plena missão sagrada, intocáveis e impregnados de um carisma especial — os grandes profetas veterotestamentários são assim encontrados na ocasião de suas jornadas pelas cidades e pelos ermos, daí a defesa de Eliseu contra os jovens zombadores. Essa “sacralização” da condição andarilha puxa motivos proféticos supracitados e se baseia na forma assumida pela comunidade maior dos discípulos e seguidores de Cristo quando da ocasião do Seu Ministério: a condição peã, andante, e dos acampamentos fora das cidades, e a arregimentação dos pobres da terra, que largavam o pouco que tinham para andar no encalço de Jesus, dos quais o próprio Senhor era o maior exemplo, na medida em que não tinha sequer “onde reclinar a cabeça”.

Por essa razão, os evangelistas e pregadores itinerantes, sendo os primeiros os próprios apóstolos, que virtualmente chegaram até os confins do mundo conhecido, eram vistos como em missão sagrada e embebidos, no ato da missão, de um carisma espiritual singular. Assim, também como uma recuperação da ética exódica e patriarcal do profetismo, deveriam os viajantes em comissão ser recebidos nas casas dos crentes dentro das ancestrais leis da hospitalidade (note o que diz Hebreus 13:1–2). Todavia, a condição especial, ou o carisma profético missional, só conservava a sua validade quando da manutenção do status andarilho, donde o estabelecimento do evangelista ou pregador por mais de três dias na mesma casa ser visto como, além de um abuso da hospitalidade, uma evidência da ilegitimidade da vocação, porque anunciava o interesse, da parte do vagante, de se fixar — se fosse o caso, ele não deveria manter ativas simultaneamente as duas condições, mas optar, desejando fixar-se, por interromper a itinerância, com seu carisma distinto, e buscar meios de sustento próprio, que demandariam a instalação efetiva na comunidade local e na aldeia ou cidade. Significa, pois e ao fim e ao cabo, uma saída do Sagrado e um ingresso no Profano.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 5 de abril de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.