O Sagrado e o Profano não são o Religioso e o Secular

Do Sagrado Demoníaco como a opção do homem secular

Natanael Pedro Castoldi
10 min readOct 22, 2024

O Sagrado é o pressuposto do Profano, o que quer dizer: a noção de que algo não seja sagrado é, por óbvio, desenvolvida após a imposição numinosa do Divino. Não é o trivial, por ser quantitativamente mais vasto, o fundamento da ordem social e da ordem da mente — qualquer coisa que seja tocada pelo intelecto humano pode aparecer sob uma aura divinal, pois não há absolutamente nada, na esfera mundanal, que não carregue em si um potencial feérico, por assim dizer, e que não poderá ser atualizado, ou feito ato, a depender do contexto (donde os chamados “deuses momentâneos”, de Ernest Cassirer [Linguagem e Mito]). Nisto já vemos que a emergência do sacral é um desenvolvimento autônomo, um fenômeno que se apresenta diante do homem, mesmo que tenha uma raiz profunda em seu inconsciente.

O Sagrado se manifesta a si mesmo, portanto, e é da sua manifestação espontânea que o Profano se reconhece. O tipo de hierofania ou teofania experimentada pelo homem primitivo, se for mineral, se for climática, se for vegetal, se for animal… determinará a infraestrutura básica da mundivisão do grupo, o que quer dizer que uma miríade de objetos presentes no ambiente receberá um investimento especial de atenção, enquanto outros serão parcialmente ignorados, dispostos dentro de categorias mais genéricas e muito menos especializadas — como a designação “erva daninha”, aplicada a todas as plantas consideradas inúteis. Entre certos indígenas do Havaí, por exemplo, observou-se que cada forma botânica, zoológica e inorgânica nomeada representava alguma utilidade, enquanto uma infinidade de criaturas, de fenômenos meteorológicos e marítimos não tinha nome: eles não eram “dignos de interesse” (Lévi-Strauss, O Pensamento Selvagem).

O Sagrado se manifesta a si mesmo, portanto, e é da sua manifestação espontânea que o Profano se reconhece.

Nativos das Filipinas, pois, possuíam uma classificação zoológica abrangente o suficiente para apreender 461 animais, segundo se pôde averiguar — o léxico botânico, por sua vez, apreendia 2 mil variedades vegetais. Entre os pigmeus filipinos, se distinguiam 15 espécies de morcegos, 450 plantas, 75 aves e 20 espécies de formigas — larga parte desse vasto catálogo, quando abrangia plantas inúteis, o fazia a partir da relação das mesmas com animais e insetos de interesse, indicando que imperava uma espécie de lógica neste tipo de conhecimento, desenvolvido segundo uma matriz de associações econômicas entre os focos primordiais do interesse e as partes às quais se chegava indiretamente.

Alguém poderá identificar nos primitivos, com base no supracitado, um viés utilitarista, mas isso está sobremaneira longe da verdade. Para eles, as coisas factualmente “existiam” na medida em que haviam sido criadas ou estabelecidas pela divindade ou pelo herói fundador — há, portanto, uma noção de obra e de uso ligada ao status daquilo que existe. As coisas efetivamente criadas, o foram segundo sua utilidade para a vida humana, tal como ela transcorre dentro do seu horizonte ambiental e social imediato, porque a referência primitiva para o ordenamento do Mundo era a redondeza do Ponto Forte, do centro vital da comunidade — o lócus da hierofania fundante, da manifestação do Sagrado no ponto de maior apelo psicológico, como a árvore imensa, a rocha de forma singular, a colina imponente, a fonte de águas vivas… A experiência auroral do Sagrado era apreendida mitológica e ritualmente, abrangendo abstrações associativas de caráter simpático, ou analógico, de maneira que outros assentamentos de uma mesma tribo não demandariam o encontro de uma mesma árvore ou de um mesmo rochedo, mas a repetição ritual da experiência originária, transcorrida segundo uma ordem litúrgica e sacrificial, disposta em uma estrutura espaço-temporal ritmada e geométrica. Em todos os casos, a comunidade era um cosmion, ou uma reprodução em pequena escala da estrutura do Cosmos, segundo a qualidade da experiência hierofânica e o tipo de mundivisão dela abstraído. Tudo o que fizesse parte do mundus humano por seu valor para a sobrevivência e pela qualidade da analogia com a matriz hierofânica, era naturalmente explicado por um mito de criação, responsável por determinar e estabilizar seu télos, estabilidade também garantida pelo nome, uma metáfora evocativa para garantir a presença da própria coisa — não por outra razão, tanto as coisas em si como as operações ligadas aos seus preparos e usos eram nomeadas segundo os nomes de heróis, divindades e espíritos.

… o Sagrado estava também no ermo, mas sob a forma de um Sagrado Selvagem.

Isso abrangia, portanto, a inteireza de todos os aspectos da vida social e da vida mental, enquadradas como Profano no sentido de serem os desdobramento cotidianos e as irradiações indiretas do Sagrado. Quanto ao que era tomado por “inútil” e classificado genericamente, o seu território era o do Caos exterior à circunscrição da aldeia, o ermo e o mundo genesíaco e elemental da Floresta, da Montanha, do Mar e da Pradaria infinita — enquanto Caos, estavam especialmente suscetíveis à habitação de daemons, de duendes e de espíritos vagantes e selvagens, tratados, nestes casos, também dentro de categorias genéricas. As divindades e os heróis eram definidos na minúcia, pois correspondiam diretamente ao Cosmos aldeão e tribal, e os daemons nomeados eram aqueles que mais frequentemente rodeavam e participavam dos e interferiam nos negócios dos homens — azares, moléstias, paralisias noturnas ou pesadelos, vertigens e euforias desordenadas… eram entendidos, via de regra, como causadas por essas entidades. Neste sentido, se o Sagrado, com os seus perigos, estava no centro da comunidade, delimitando o regime do Profano, estava também no ermo, mas sob a forma de um Sagrado Selvagem.

Quero com isso determinar como para os antigos não havia um setor da vida análogo ao nosso “secular”, e que confundir o Secular com o Profano é uma confusão tremenda. A concepção que hoje temos de uma distinção entre o Religioso e o Secular não coaduna com a antiga dualidade econômica do Sagrado e do Profano, pois o Secular é entendido como um território esvaziado do Sagrado, não mais determinado por ele. Em certo sentido, o Profano é o habitual quando vitalizado e protegido pelo Sagrado — ele é, pois, perfeito de símbolos e analogias com o Divino, prenhe de sentido e um terreno propício para a habitação do homem individual, dada a sua inteligibilidade e a sua hierarquia de valores e de significados — úteis para o ordenamento da alma -, assim como para o coletivo dos homens, uma vez que dá norte, estrutura e limites para o empreendimento comum.

… o atingimento dos bens periféricos pela analogia ou interação com os hiperbens…

Como vimos, as coisas, percebidas pelos antigos nos termos da utilidade, na realidade eram vistas, conquanto verdadeiramente substanciais, como canais operativos, veículos pelos quais o homem poderia operar e garantir sua subsistência — donde a sua qualidade finalista -, e o atingimento dos bens periféricos pela analogia ou interação com os hiperbens refletia a sua natureza simbólica, pautada nas trocas e relações, viabilizando uma economia do Sagrado sustentada na transferência ou na passagem de energeia através das partes, ou na transubstanciação das próprias partes, na medida em que atravessavam certos rituais — a metamorfose do trigo em pão e do menino em homem. Por esse motivo, todas as culturas arcaicas nutriram a ideia de um fundamento energético, supranatural, ou espiritual, genérico e sutil, estabelecedor da trama que contém as coisas visíveis e especialmente forte em tudo aquilo que desponta à vista com o brilho, o esplendor e a virtude do Divino, como que dotado de um carisma mágico, isto é: de numinosidade — os polinésios chamavam-no de Mana e os gregos, pois, de Theós.

O homem moderno é incapaz de determinar o Profano, primeiro por ter eliminado o Sagrado, substituído pelo Religioso, segundo porque o Profano é performado somente dentro de um Cosmos finalista, vislumbrado como um campo de economia sagrada, que é a partir da irradiação ordenada do Divino, alocado, protegido e calibrado no Santuário, e da circulação simpática da energeia — tanto para a remoção do Mal, quanto para a afirmação do Bem. É um Mundo de operações, de relações, de analogias, e tudo nele brota de um fundo ontológico unívoco e se dirige evolutivamente — no sentido de um desdobramento substancial regulado pela passagem dos tempos, análogos aos processos vitais de todas as criaturas (Nascimento, Maturidade e Morte) — para um Fim, o qual esteve no Começo e que é o próprio Fundamento: o Divino. O homem moderno desconhece esta perspectiva, tendo abnegado do seu esplendor ocidental e da sua expressão refinada cristã, recaído que está no regime causalista, que é imanente e horizontal, este sim utilitário — a mente dele só reconhece coisas causadas e, portanto, fechadas, que são tais como as vê e que se relacionam espaço-temporalmente com o Mundo apenas nos termos de leis físico-químicas elementares, rígidas e frias como um maquinário invisível.

… a busca de sentido substancial foi restringida ao território do Religioso, assumido como lócus do Irracional e aproximado do Emocional.

Só que há um problema nesta solução, pois um Mundo tal não é de fato um “Mundo”, já que é inabitável para o homem, sendo-lhe insuportável. A sede de significado substancial apenas aumenta quando a referência do Sagrado é extirpada do horizonte alcançável, e vai crescendo em uma proporção inversa ao ceticismo ou cientismo declarado na praça pública. Quando o Sagrado foi aniquilado, porque se intentou esvaziar o Mundo de sua agência, inaugurando com isso o Secular e estabelecendo o Religioso, a busca de sentido substancial foi restringida ao território do Religioso, assumido como lócus do Irracional e aproximado do Emocional. Por essa razão, é o homem moderno um centauro, uma criatura híbrida e cindida ao meio — ele dará à sua mente e aos seus apetites racionais de explicação da Realidade aquele alimento convencional, científico, “comprovado”, e dará ao seu coração e aos seus apetites irracionais, ou afetivos, de nutrição da Alma o cabedal das experiências religiosas, que nada têm a lhe dizer a respeito da Realidade. Daí a sua ética, porque a ética se desenvolve no terreno comunal, ser contraditória com as afirmativas de sua confissão religiosa, que ele acabará relativizando segundo a conveniência de sua prática convencional, para benefício de seu estilo de vida, que é público — por isso ele, se for um pouco mais erudito e precisar resolver o dilema, gostará de ver nos termos de sua confissão religiosa afirmações sobre os eventos interiores, almáticos, e não sobre a ordem geral do Mundo, motivo do ajuste deles, via interpretação, a qualquer disposição particular (Bultmann e outros liberais deram a chave quando afirmaram que o Evangelho, sendo “mito” [para ele é o mesmo que “não científico”], não se realiza noutro território que não no território da Alma individual — do contrário, seria inteiramente obsoleto). Para o moderno, uma vez que Cristo não pode ter literalmente ressuscitado, ou que a literalidade de Sua ressurreição não importa, a Ressurreição d’Ele é pouco mais do que um mero estímulo ao renascimento interior, a uma recuperação de si — o que pode servir para qualquer finalidade pessoal, e comumente serve, em nossa sociedade terapêutica, para sustentar uma “libertação” das amarras “repressoras”, isto em um sentido que pode ser tanto freudiano quanto político e ideológico.

Evidentemente, uma vez que um dos imperativos para a estruturação do homem é aquele da integração coerente entre as partes — pensamento, sentimento e movimento -, uma tal contradição entre o Secular e o Religioso, perdida a referência do Sagrado, é socialmente esquizofrenizante e, no nível do indivíduo, o canal para a neurose. Como descobriu o Dr. Eugene Gendlin, Ph.D. (Focalização), a nossa psique funciona de uma maneira a tornar insuportável a sustentação a mentira contra si mesmo e contra o Mundo. A contradição interna é matriz de muito sofrimento físico e mental, a raiz de severa culpa e de grande angústia. A gravidade disso se faz notória quanto percebemos que as últimas saídas para um estado crônico de cisão interna são a paranoia e a loucura ou o colapso nervoso. E como é impossível se contentar com uma adequação da Alma ao cientismo — se isso fosse possível, teria se tornado a regra -, o único caminho que parece sobrar é o de uma recuperação do encantamento do Mundo e da capacidade de encará-lo a partir de uma economia do Sagrado, ou seja: de ver as coisas também em termos simbólicos, dispostas dentro de um campo ontológico contingente, o Ser, e ordenadas em sistemas analógicos que conseguem ir da Parte para o Todo, do Relativo para o Absoluto, passando pela Alma. Nisto se alinharão os apetites da Alma com os apetites da Razão, pois se poderá explicar ao Mundo e explicar a si mesmo ao mesmo tempo em que se é capaz de encontrar um sentido para o Mundo e um significado para Si — é quando a Razão recuperará a sua cabeça e revolverá ao Intelecto.

… as últimas saídas para um estado crônico de cisão interna são a paranoia e a loucura ou o colapso nervoso.

Como, contudo, se pode recuperar o senso do Sagrado? Individualmente, em alguma medida e apenas através do aprofundamento para o fundo da Alma, guiado pelos artífices da Grande Tradição — os Poetas, os Filósofos, os Santos. De preferência, porém, coletivamente, indo buscar os poucos baluartes ainda hasteados da Fé, ingressando na vida comunal da pequena congregação na qual o Mito é Vivo e o Sagrado se dá a conhecer.

Fora disso, se a alternativa estiver nas ofertas da própria sociedade secularizada, não se terá Sagrado, mas aquilo que Roger Bastide chamou de “Sagrado Selvagem”, que é o mesmo que o Sagrado Caótico, radicado no infrarracional e no ininteligível, no demoníaco e no ctônico ou pandêmio — este, eminentemente emocionalista e irracional, eclodirá nos shows, nas raves, nas seitas, nos frenesis militantes e até mesmo em muitas das palestras motivacionais, baseadas em manipulação mental e em arroubos emocionais. Ninguém são reconhecerá aqui o mesmo que se diz do Religioso formal, que é em oposição do Secular, no qual o Sagrado praticamente inexiste. Aqui há Sagrado, mas o Sagrado diabólico e orgiástico do sabbath feiticeiro, pelo qual não se obtém entendimento e desde o qual, na fronteira da insanidade, se decai gradualmente ao bestial.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 22 de outubro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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