O Trono

Sobre simbolismo real

Natanael Pedro Castoldi
5 min readJul 6, 2023

uma antiga lenda que afirma que o glorioso Trono de Salomão era inicialmente da rainha de Sabá, mas que um gênio maligno de natureza feminina o roubou, levando-o junto da coleção de livros de magia que havia sido da mítica rainha. Essa cena evoca a ligação simbólica, bem sustentada por Alphonse Constant, entre as mulheres e a magia, porque é dito que foram as filhas de Caim que transmitiram aos homens antediluvianos os conhecimentos ocultos, que receberam dos anjos caídos — da mesma maneira, a rainha de Sabá teria iniciado Salomão nas artes mágicas, pelas quais ele decaiu da Sabedoria. A ligação evidente também é entre o feminino e o trono, e do trono enquanto lócus de poder mágico.

Segundo Kathleen Martin (O Livro dos Símbolos), o simbolismo do trono lança raízes diretamente no colo materno, da Grande Mãe, ou da deusa, receptáculo de todas as potências em estado latente, transformadas em ato pela figura que nesse colo se senta. A correlação do trono com a colina e a montanha, com pedregulhos e árvores é baseada nessa mesma matriz, porque os desníveis da paisagem natural sempre foram sugestivos do “colo da deusa”, núcleos de intensificação das forças genesíacas, e assentos apropriados para os deuses e para os daemons. Segundo Martin, as esculturas primitivas da deusa, as “vênus”, evocam, pela largueza das ancas, as protuberâncias geológicas e vegetais, assim como o vasto colo capaz de conter em si a totalidade das potências vegetativas, telúricas e ctônicas. A aproximação entre a deusa e o trono é evidenciada na estatuária filistéia de Ashdoba e sua herança é visível nas antigas cadeiras de madeira, esculpidas com motivos vegetais e pés de animais, recobertas de couros e chifres e ornamentadas com motivos solares e lunares.

As grandes civilizações da Era do Bronze apresentaram seus tronos reais na terminação de escadarias, como evocações palacianas das colinas e montanhas, donde simbolizam uma espécie de Axis Mundi, o Umbigo da Terra, e uma ponte de comunicação entre o Céu, o território dos deuses, o mundo dos homens e os reinos infraterrenos — o rei entronizado está destacado dos demais membros de sua corte, mais próximo do divino do que dos homens, mas igualmente mais perto dos ínferos do que eles, porque se assenta na “tampa” do Orco. Acolhido no trono, é como se estivesse acolhido no colo da deusa (os faraós do Egito antigo tinham seus tronos por nome “Ísis”, seu sinônimo, porque viam-nos como os colos da referida deusa). No pedestal, no topo da coluna de seu trono, o rei jazia investido das potências terrestres e celestes, regendo os ciclos de fertilidade vegetal, animal e humana, guarnecendo seu povo das catástrofes e ministrando a lei e a justiça divinais, pelas quais se conservava a ordem social. Na cátedra, ele era infalível — conceito esse que nos persegue ainda hoje. No colo da deusa, era como a criança divina entronizada, o primeiro dos homens e o primogênito da divindade — esse símbolo aparece na iconografia cristã, que encontra o colo de Maria como o trono do pequeno Cristo.

… o trono será, por conseguinte, um microcosmo, um resumo das forças cosmogônicas

Frequentemente retratado como a forma quadrupla da mandala, o trono será, por conseguinte, um microcosmo, um resumo das forças cosmogônicas. Na Índia, o trono de Shiva é apresentado como suportado por quatro leões, símbolos das Quatro Eras do Mundo e das Quatro Cores — Darma, Jnana, Vairagya e Aishvarya -, indicando a totalidade do Tempo Cósmico, do Mundo (porque cada cor, representativa de uma casta, reflete uma parte do corpo de Brahma) e da Ordem Social. Conforme Chevalier e Gheerbrant (Dicionário de Símbolos), esse trono reflete a ascensão ao Conhecimento e o corrente domínio das energias dos Cosmos. Lembra os Quatro Seres Viventes, apresentados no Apocalipse (cap. 5) nas bases do Trono de Deus — trono no meio do qual aparece o Cordeiro de Sete Chifres (onipotência) e Sete Olhos (onisciência [Candelabro — totalidade dos Poderes Planetários e do Tempo]). Eles são os mesmos seres vistos por Ezequiel (cap. 1) e associados simbolicamente aos Quatro Evangelistas, e indicam o equilíbrio final do Cosmos pela integração total das antíteses naturais, como sinal escatológico da Nova Criação. São eles querubins, tal como são os querubins junto da Arca da Aliança, éctipo do Trono Divino, e guardam a Glória de Deus no sentido de condensá-la, de conservá-la e de cobri-la (hebraico “cakak” — Ez 28:14, Jó 40:22 [a sombra da árvore protege o que está sob ela] e Lm 3:44 [no sentido de ocultar]). Em síntese: os Quatro Seres mostram o Trono de Deus, que faísca na potentíssima Luz Una do Aravot, como símbolo da soma de toda a força, de todo o poder e de todo o conhecimento do Criador. Assumem igualmente uma significação temporal, no sentido de Totalidade do Tempo, que é um sentido escatológico, segundo a análise de Edinger (Arquétipo do Apocalipse):

… temos uma quaternidade divina desde que estes animais rodeiam o trono; no entanto, a quaternidade é três quartos teriomórfica e apenas um quarto humana. Isso indica o nível de humanização da imagem de Deus que havia sido alcançada no momento da aparição desta imagem. — p. 85

Embora eu não concorde com essa interpretação, ela associa os Quatro Seres a algo como as Eras do Mundo, rumo à sua culminação “hominizada”, indicativo do Último Tempo — lembrando outras imagens apocalípticas, como as de Daniel, que trazem criaturas teriomórficas e antropomórficas e o simbolismo metálico (tal como os gregos) para falar das Quatro Eras e do Tempo do Fim. Isso evidencia o apelo irresistível da forma quádrupla do trono nos termos da totalidade das potências temporais e espaciais, assim como da sua plena condensação e unidade nessa Axis Mundi — que é o mesmo sentido de algumas tradições cristãs e maometanas a respeito do Trono de Deus, que nelas aparece sustentado por Oito Anjos, correspondentes às oito direções do espaço, conforme os oito pontos da bússola, significando, portanto, a subordinação da inteireza do universo ao Senhor.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 24 de junho de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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