O Vazio e o Nada
sobre a importância do ócio
Nossos antepassados entendiam que algo precisava não-ser e que o Ser podia ser conhecido onde, não sendo, o eu negasse a si mesmo. A mente humana, metafórica e poética em sua gênese (DE CARVALHO, 2019), precisa se organizar ao redor de algumas categorias básicas e demanda trabalhar com o princípio elementar da contradição. Nossa psiquê, eminentemente linguística, começa interagindo com o mundo naquilo que Frye (2017) chamou de “linguagem perceptiva”, fundada no espanto, nas impressões imediatas do homem frente às coisas, vistas como um todo, no peso total de sua realidade, antes de serem desmembradas pela análise — eis o que é a chamada “experiência ingênua” descrita pro Dooyeweerd (2017). Isso significa que aquelas necessidades mais elementares da alma humana são projetadas sobre o mundo derredor, dando estrutura e inteligibilidade a ele. Entre essas necessidades estão as categorias dualísticas básicas, dentre as quais as de Macho e Fêmea, Noite e Dia, Vida e Morte, Céu e Terra, Caos e Ordem e Sagrado e Profano (ELIADE, 2010).
Nas sociedades mais primitivas, com menor abertura cultural e, portanto, uma maior unidade entre as diversas áreas da vida e do pensamento, assim como o governante é identificado com o sacerdote e o governo com a religião, nenhum aspecto do cotidiano está desvinculado do sobrenatural. Tudo, conforme bem demonstra o antropólogo Arnold van Gennep (2013), é lido nos termos do Sagrado e o Profano, e toda a economia material e espiritual é pensada como sempre transitando entre essas partes. Daí a proeminência dos chamados ritos de passagem: cada etapa da vida humana é pensada como resultado e prelúdio da passagem do Profano para o Sagrado, e cada etapa sucessora é Sagrada em relação à sua predecessora, Profana — o adolescente que transiciona para a vida adulta atinge um patamar sagrado com relação à infância, profana, e quando transiciona para a velhice, a nova condição é sagrada com relação à anterior, profana, até que chega a morte, que é a última passagem do indivíduo em direção ao mundo espiritual (tal como é a passagem do bebê entre o ventre, uma “morte”, e a “luz”, um nascimento). O rito de passagem serve como veículo para o transporte de algum tipo de matéria: a pessoa em sua jornada cronológica, a transmissão da cura para o doente, a unção específica que transiciona o homem comum para o status sacerdotal… e também a jornada do sujeito entre territórios, enquanto viajante.
Na mentalidade metafórica do homem antigo, a coisa corresponde à palavra, o ato corresponde à ideia, e sempre há uma necessidade incontornável de tornar matéria a demanda psíquica e espiritual, de produzir analogia ritual para o movimento que se quer fazer no âmbito da alma. Esse imperativo não está longe de nós, na verdade, e as veredas da psicoterapia contemporânea o comprovam muito bem: traduzir o sentimento em palavras, verbalizando-o ao psicoterapeuta, ou em ações determinadas, como a queima catártica daquelas cartas do antigo parceiro, são, via de regra, muito salutares — e todos esses movimentos são passagens, visto se ocuparem com o transporte de algum conteúdo para um destino almejado (aquela sensação de angústia é processada pela psiquê por meio da fala, lançada e contida no terapeuta, que se transforma num mediador, num veículo da coisa, devolvendo respostas ou a dissolvendo em seu estômago forte).
Ven Gennep toma o homem em sua aldeia, entre seus pares, como profano com relação a este mesmo homem na figura do viajante. Se sair de seu ambiente comum, vulgar, ele é feito exceção e está imbuído de uma aura especial. Ele se torna sagrado, para o bem e para o mal. Os habitantes das terras que atravessará o verão como o estrangeiro, o estranho, portador de mau-olhado, transportador de sujidades nas vestes e no corpo, adorador de deuses estranhos, carregador de intenções e costumes diversos. Por isso o estrangeiro será tido com desconfiança durante quase toda a história humana e o primeiro responsável por pestes, desastres naturais e violências — sua presença pode ser lida como motivo da ira divina. Daí o estrangeiro ser um dos bodes expiatórios mais comuns identificados por René Girard (2009). Ao mesmo tempo, o viajante, o estranho, pode também ser um salvador, uma entidade semidivina ou divina. Uma das imagens mais comuns para Odin é a do viajante anônimo. Os heróis gregos, semidivinos, possuem o status peregrino: não pertencem totalmente ao mundo dos homens comuns e também não pertencem inteiramente ao mundo dos deuses.
Figuras messiânicas precisam ser interpretadas nesses termos: o salvador é um semelhante, mas não pode ser um igual. Girard notará que é algum elemento distintivo que transforma alguém em vítima sacrificial — pense numa turba homogênea em crise mimética, de duplos rivais e num impasse de forças parelhas, e pense numa onda de violência que só pode culminar na destruição completa de alguma das partes: como se resolve a tensão sem que se cobre o preço do morticínio desenfreado? As duas partes, mimeticamente idênticas, selecionam um terceiro, distinguível de ambas e, portanto, passível de ser responsabilizado pelo caos generalizado, e o sacrificam como culpado. O despejamento das iras propiciatórias por sobre esse bode expiatório culmina instantaneamente num clima de paz tão plena e tão pronta, que a vítima logo é vista como redentora, heroica, divina. A culpa visceral que emerge da ação expiatória da comunidade contra o salvador levará a um tipo de acobertamento mítico: a violência crua e injusta da comunidade para com o ente messiânico será maquiada em narrativas que ocultem ou amenizem os elementos nefastos da história fundadora. Os elementos distintivos que transformam o diferente em vítima expiatória podem ser traços fenotípicos incomuns (no caso de ele ser estrangeiro) ou alguma deformidade física — um aleijão, uma perna manca, a falta de um olho… Além da própria imolação sacrificial transformar o salvador em portador dalguma mácula física, ele é transformado em vítima justamente por conta de uma deficiência ou diferença visível.
[…] Tifão mutilou a Zeus e o conduziu para a gruta Corícia. Se a caverna, já sabemos, figura os mitos de origem, de renascimento e de iniciação, como um real regresso ad uterum, um simbólico morrer para se renascer outro, a mutilação tem uma conotação mais profunda. Para compreendê-la bem, é mister fazer uma dicotomia, uma distinção entre mutilação de ordem social e mutilação ritual. Se entre os celtas o Rei Nuada não mais pôde reinar por ter perdido um braço na batalha e o deus Mider é ameaçado de perder o reino, porque acidentalmente ficou cego de um olho, trata-se, em ambos os casos, de um aspecto apenas social do problema. O sentido ritual da mutilação é bem outro. Para se penetrar neste símbolo é bom relembrar que a ordem da “cidade” é par: o homem se põe de pé, apoiando-se em suas duas pernas, trabalha com seus dois braços, olha a realidade com seus dois olhos. Ao contrário da ordem humana ou diurna, que é par, a ordem oculta, noturna, transcendental é um, é ímpar. O disforme e o mutilado têm em comum o fato de estarem à margem da sociedade humana ou diurna, uma vez que neles a paridade foi prejudicada. […] O criminoso “comete uma terrível inconveniência”, transgredindo gravemente a ordem social; o herói se “singulariza perigosamente”. Ambos realçam o sagrado —Junito de Souza Brandão, 2014, p. 632
Essa também é a natureza do chamado trickster, ou do deus trapaceiro, dionisíaco: não está distante dos homens, no assunto Céu, mas também não está preso à comunidade, à coletividade (HYDE, 2017). Ao fim e ao cabo, o criminoso, o herói, o estrangeiro e o messias são todos demasiado individuais e podem pôr em questão a ordem social, que é coletiva. Mesmo nos casos do xamã e do sacerdote, para guardarem sua relação com o sagrado dentro do contexto comunal, profano, é necessário que sejam excluídos da vida comum — daí o grupo dos sacerdotes ser considerado uma ordem especial. Como bem evidencia Campbell (2014), em povos primitivos, os melhores candidatos à vereda xamânica são aqueles que desde mui novos apresentam caracteres singularizantes: muitos daqueles que posteriormente foram tomados como “loucos” teriam sido notados por nações tribais como mais próximos dos espíritos.
Como os povos antigos eram sociocêntricos por excelência, precisavam estabelecer mecanismos de assimilação do estrangeiro à comunidade local, imergindo-o no coletivo, ou de realce de sua condição excêntrica, para que a população local não se aproximasse dele temerariamente. Por isso, assim como os ritos de passagem atuavam como mediadores, caminhos intermediários entre um estágio e outro, era imperativo nas culturas antigas que houvesse territórios neutros, do meio, entre os territórios de cada cidade ou nação. Nesse espaço, feito de florestas virgens, montanhas, pântanos e desertos, terras ermas em geral, os gregos estabeleciam seus mercados e também realizavam suas batalhas internas (VAN GENNEP). Eliade definiu essa perspectiva antiga nos termos do Caos e da Ordem, da Natureza e da Cultura, do Sagrado e do Profano: o mundo dominado pela comunidade, verbalizado pela cultura, era o espaço da Ordem — atrás dos muros das cidades, que nascem como marcações mágicas contra os demônios antes de barreiras para salteadores, ficava a vida profana dos homens comuns, totalmente ordenada pelo espaço sagrado ao centro, que é o Templo; fora dos muros e dos limites da cidade, ficavam as vastidões caóticas das selvas, dos campos e das areias, espaço sagrado onde habitavam espíritos e criaturas míticas. Esses eram lugares neutros e ali os viajantes circulavam livremente. Ali também se escondiam os feiticeiros, habitavam os ferreiros, acampavam os salteadores, singravam os lenhadores, vagavam os coletores e perambulavam os pastores com seus rebanhos. Para ali, ainda, iam os eremitas e todos os contestadores da Cidade, para serem atormentados por demônios e alimentados por anjos (VALLET, 2002).
Os habitantes de diferentes territórios de uma mesma região partilhavam o entendimento de que os espaços vazios entre suas fronteiras não tinham proprietário formal e compreendiam que essas áreas transicionais eram importantes para a passagem dos viajantes. A depender do lugar, essa distância entre as cidades, ou os acampamentos, garantida pelas áreas vazias, era importante para evitar que os habitantes locais se comprometessem em acolher o viajante. Van Gennep exemplifica o conceito com um povo semítico da Península Arábica: bastava que o andarilho avistasse o acampamento dalgum grupo familiar que ele automaticamente se transformava em seu hóspede e protegido pelos próximos dias. A lei da hospitalidade era muito comum entre os nômades do deserto, inclusive os hebreus (DE VAUX, 2004), e foi legada por estes às civilizações citadinas do Oriente Médio e da Europa. Em Israel, o direito de asilo insta nas leis de proteção ao estrangeiro, mas também aparece nas chamadas Cidades de Refúgio, cujo conceito foi mantido na Europa cristã no direito de santuário: o indivíduo que se visse perseguido por outros, por motivos de vingança ou retaliação, ou injustamente pelo Estado, poderia solicitar ao bispo de alguma igreja que lhe hospedasse e garantisse segurança por tempo determinado (RUSHDOONY, 2018). Outro legado do imaginário da passagem está na prática da guerra europeia até antes da Idade Moderna: os exércitos combatiam em campo aberto, longe das cidades, e o vitorioso sempre procurava poupar as aldeias e cidades do derrotado (ROTHBARD, 2019).
Nas proximidades do território de alguma comunidade, o viajante das terras ermas começava a encontrar marcos protetores, colocados em fronteiras naturais, como rios, ou em pontos estratégicos, como pontes e encruzilhadas. Alguns rituais determinados eram realizados para antecipar o atravessamento de uma fronteira, como outro exemplo de Van Gennep: certo general, para atravessar uma ponte fronteiriça, fez imolar um boi e colocar sua cabeça em um lado da ponte e seu corpo no outro, deixando entre as metades um rastro de sangue que serviu de mediador da passagem dele pela ponte, entre as duas partes do animal. Um rito de passagem dessa natureza simula a saída da pessoa do mundo anterior e a sua entrada num mundo novo, ou noutro mundo. Dragões, esfinges e quimeras eram postos como vigias de entradas e de passagens, e pórticos, dos mais rudimentares aos mais suntuosos, como os arcos triunfais romanos, eram consagrados como portais purificadores — aquele que saia, partia abençoado, aquele que voltava, ali podia ser “lavado” e separado do mundo externo. Por isso, as portas das cidades eram tão significativas e espiritualmente carregas, tal como eram as portas principais das casas. No Séc. XVI, a cidade alemã de Augsburgo, então com cerca de 60 mil habitantes, ficava atrás de quatro grossas portas sucessivas, uma ponte sobre um fosso e uma ponte levadiça (DELUMEAU, 2009).
Além dos marcos protetores nas fronteiras e nas entradas, a assimilação do estrangeiro, ou a sua permissão para entrar, acompanhavam outros ritos, entre os quais os de purificação (lavar-se, limpar-se…) e os de agregação (refeição em comum, trocas de presentes…), todos empreendidos como preparação para a aliança entre as partes. Certo relato apontado por Van Gennep fala do sacrifício de um carneiro como veículo da aliança entre o estrangeiro e o povo Massai, do continente africano, via representação de um emissário na fronteira. Nesse sacrifício, solenes promessas são feitas entre o estranho e o representante do povo e ao fim do mesmo, o estrangeiro passa ao status de “irmão do rei” — enquanto puder ficar entre os massai, se verá dotado de uma aura especial, singularizante, e não sofrerá dano algum da parte dos moradores locais.
É, de fato, muito comum entre os povos antigos a consideração do visitante como possuidor de um status especial, que o desobriga de certas atribuições profanas e o faz receber tratamento especial — sempre por um prazo limitado. Em geral, esse visitante fica alojado numa casa comum, mas se pretender morar entre os locais, deverá gradativamente perder sua singularidade sagrada e se tornar comum, ou profano, indo morar com uma família local que, dado algum tempo, o adotará como seu membro. Tudo isso, contudo, demanda uma travessia longa, no tempo e no espaço. Até hoje carregamos em nosso comportamento social marcos que já foram rituais de aproximação entre o local e o exterior: o abraço é o desenvolvimento de um ritual de amarração entre o anfitrião e o convidado, assim como o beijo, ou o ósculo santo. Quem abraça e quem recebe o abraço tecem um acordo entre duas partes: o que está se compromete a proteger aquele que chega e aquele que chega se compromete a honrar aquele que está.
A mentalidade religiosa, que vê o mundo nas categorias do Sagrado e do Profano, não é meramente dualista, pois pede uma terceira categoria, que é o Caminho. O Caminho, que transiciona do vulgar ao especial, do profano ao sagrado, é sacralizante e, portanto, parte do Sagrado. Entre os antigos, o Sagrado estava tanto fora quanto no meio da cidade: ele era a terra neutral entre os territórios, aquele bosque, rio ou montanha sagrados por onde circulavam os numinosos viajantes, e também o Templo. Josef Pieper (2020) interpreta a proeminência do Templo no centro da vida da cidade como a afirmação do centro da via litúrgica e religiosa na comunidade. Uma vez parte do Sagrado, o Templo é tal como a área neutral: Espaço Vazio, pois Espaço Sagrado. O que isso significa? Enquanto propriedade da divindade, não pode ser dominado e cultivado pelo homem para o benefício material do mesmo — ele é restrito ao culto do deus local. O Templo de Jerusalém, dedicado ao Deus Vivo, expressava perfeitamente bem esse conceito: seu pátio vazio era todo feito de blocos de pedra, símbolos da eternidade, e nada tinha além de espaço desocupado e dos poucos utensílios do culto. A existência de um espaço vazio, desocupado e improdutivo no centro da cidade, tal como existia o espaço vazio ao redor da cidade, testemunhava das aspirações e dos valores de seus moradores: o clímax da vida em comum está na oferta deliberada e liberal dos produtos do trabalho (o dízimo e o descanso), não no trabalho em si.
Junto do Espaço Sagrado, há o Tempo Sagrado. O Espaço é o terreno do ritual, o Tempo é a sua realização. A existência do Tempo Sagrado, do Sábado, do Sétimo Dia, daquele momento pertencente ao divino e, portanto, de exclusiva dedicação ao culto e de total esquecimento de si e das demandas profanas a resolver para sustento material, destaca a ideia de que o centro da vida não é o trabalho, mas o ócio contemplativo, a adoração à divindade. A Festa, o Feriado, todo o conceito de dia de descanso tem uma origem religiosa, sobremodo semítica, e só pode existir de fato num ambiente no qual o Vazio vigora, no qual uma parte do tempo, dada a Deus, e uma parte do espaço, exclusivo do Senhor, não podem ser ocupados pelo trabalho, mas apenas utilizados despreocupadamente para a Sua glória, confiando n’Ele o sustento e o cuidado. Nesse sentido, não pode existir Espaço e Tempo sagrados sem sacrifício, pois devo sempre abrir mão de algo para experimentá-los.
A natureza do culto […] faz com que até mesmo a extrema pobreza material propicie um ambiente de abundância e de riqueza — porque no centro do culto está o sacrifício. Afinal, o que quer dizer ‘sacrifício’? Oferta espontânea, doação, entrega — justamente o oposto extremo de utilização. Desse modo surge na realização participativa do culto — e só por meio dela — um cabedal impossível de ser exaurido pelo mundo do trabalho, um espaço de esbanjamento desapegado, de transbordamento improdutivo, de genuína riqueza: o espaço do tempo festivo. — Pieper, p. 92
Se seguirmos a lógica apresentada por Pieper, a atitude oposta nos levará, necessariamente, a uma realidade contrária: quando o senso de Sagrado e Profano diminui, acompanhando a secularização do mundo e dos sentimentos ocidentais, perde-se junto a necessidade da Passagem, do tempo e do espaço vazios, transicionais: tudo fica dominado pelo interesse produtivo, tudo se resume ao trabalho, e mesmo o descanso sabático e o feriado não servem mais para fruição, ócio e contemplação, pois se encaixam no sistema produtivo como repouso do trabalho e recuperação para o trabalho. A perda a perspectiva sacrificial, daquele descanso que acontece em Deus e não em função do trabalho, também fala de uma perda da ideia de Graça: se o centro da minha vida é garantir a minha sobrevivência ou ampliar minha zona de conforto material, tornando produtivos quaisquer espaços e tempos de que disponho, e não mais o sacrifício e a entrega baseada na confiança no Senhor, aos poucos perco a sensibilidade para as coisas que recebo gratuitamente, sem que sejam salário ou recompensa, e deixo de estar grato e aberto às belezas do mundo, mais facilmente perceptíveis quando tenho tempo e lugar para conhecer o ócio e a contemplação.
Portanto, não pode haver nem espaço cúltico nem festa, já que é esse o princípio da utilização racional em que se baseia o mundo do ‘trabalhador’. […] Onde quer que exista algo que esteja sobrando, o excedente passa a ser subordinado igualmente à utilização racional. — Pieper, p. 91–92
Existem ritos de passagem para atravessar a fronteira do Sagrado exterior ao Profano citadino, rompendo o tempo Sagrado da viagem e reinaugurando o tempo Profano da vida comum. Existem também ritos de passagem, purificações e sacrifícios para entrar do Profano citadino no Sagrado do Santuário, onde o mero cidadão se individualiza enquanto fiel e perante a pessoa divina. Esse é um dos sentidos da Aliança: duas partes de uma relação, na ausência de um conhecimento exaustivo uma da outra, dada a alteridade intransponível existente na relação que se intenta firmar, firmam seus laços em promessas solenes de cuidado e respeito em função de uma finalidade comum. O massai não conhece suficientemente bem o visitante estrangeiro, tal como o estrangeiro não conhece bem o massai, de maneira que a Aliança entre ambos vem para transpor a diferença e o indissolúvel abismo da desconfiança — ambos firmam uma comunhão de sangue e se comprometem um com o outro. Um rito de passagem muito significativo nesses termos é o que culmina no casamento: numa relação de incontornável alteridade, visto homem e mulheres serem, no fundo, estranhos um ao outro, a vereda possível é a da Aliança — promessas são feitas no terreno do desconhecido como garantias de fidelidade incondicional. No caso da relação com Deus, o desconhecimento vem apenas do fiel, que faz Aliança com Javé, aceitando Suas promessas e se comprometendo com elas — é por isso que apenas Deus passa entre as metades dos animais sacrificados por Abraão, sinalizando que Ele, envolvo no mistério da alteridade, se sujeita ao aliançado com o patriarca, que não Lhe é estranho (Gênesis 15:17–18).
O Espaço Sagrado é o terreno do desconhecido, do inexplorado, do intocado. O que se faz ali se faz no Tempo Sagrado: não é para o homem, que quer dominar, mas para Deus, que domina e que o homem vê apenas parcialmente. Sem Alteridade não há Aliança, pois as partes não precisam fazer promessas, e sem Alteridade não haveria passagem, por rito e por caminho. Sem Alteridade, pois, não haveria nem Tempo e nem Espaço sagrados e, portanto, nem descanso, nem ócio, nem contemplação. O homem é estrangeiro para outro homem apenas porque primeiro sente estranhamento para com Deus — está apartado do divino, que não conhece bem, e por isso, também, está apartado do outro. As transições, os vazios, os espaços e os intervalos são todos necessidades comunicativas, vias de acesso ao outro e de acesso a Deus — ao fim e ao cabo, de acesso também a si mesmo.
Num mundo cientificista, materialista e trabalhista, não há Alteridade, apenas competição, pois onde não há Alteridade não há tempo e espaço neutral, mas conflito direto entre iguais. Num mundo todo racionalizado, não há mistério, não há Deus, não há Sagrado e, por consequência, nem tempo e nem espaço de culto, nem sábado e nem feriado, já que não há sacrifício — tudo é pensando em obter mais, é econômico, sempre voltado ao trabalho. Não pode haver tempo de Nada e nem espaço Vazio, pois o único pecado é o desperdício. Sem Tempo e sem Espaço sagrados, não há lugar para o Nada, não há tempo para o Vazio e, por conseguinte, não há caminhos e nem medianeiras, que é onde o não-ser pode se expressar e o Ser pode ser conhecido — ali, no Espaço e no Tempo sagrados do Meio, do Ainda Não, do Já É. Sem Sagrado, não há Mediador, não há caminho e tampouco há indivíduo, pois não há Deus.
Sem Sagrado, não há Mediador, não há caminho e tampouco há indivíduo, pois não há Deus
No Meio, onde a contemplação possível pelo descanso busca, do Sagrado, conhecer mais de Deus, o ócio é percebido como uma ação. Entre os hebreus, os gregos, os latinos e os europeus medievais, o significado de ócio apontava para um movimento, uma atividade, tal como é atividade estar em viagem, em passagem. O viajante é um emissário da divindade e conhece um tipo de desapego que se funda na abertura para a realidade, na aceitação do mundo, na conciliação com a vida, na entrega livre para a totalidade, para o que há. O ócio é contemplativo e festivo, é da sua vigência que se tem contato com o sentido, que se nutre a alma, que se ordena a vida laboral, a arte servil. Entre os hebreus, o trabalho, a semana, culminam no descanso sabático, que é a finalidade da obra. Antes da Queda, o trabalho não era labor, mas fazia parte do usufruto do jardim de delícias edênico. Em nosso tempo, é o labor que qualifica a vida, é a dificuldade, o suor que se derrama. O ócio deixou de ser um tipo de ação, de pertencer ao espectro das artes liberais, e passou a representar inação, inutilidade e desvalor. E não poderia significar outra coisa no contexto industrial que vivemos, já que a identidade e o sentido estão centralizados no trabalho, donde o tipo humano do “trabalhador”. A nossa definição de trabalhador, que tem abrangido até mesmo o trabalho intelectual, não passaria dos limites daquilo que o grego veria como escravidão (DENEEN, 2020).
Quando o trabalhador diz que não tem ‘tempo para rezar’, ele não está muito errado, pois não faz senão exprimir assim tudo o que sua condição tem de inumano, ou digamos de “infrahumano” — Schuon, 2002, p. 34
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Texto de Natanael Pedro Castoldi redigido para este perfil em 11 de abril de 2021.