Ocidente: Ego e Alma

tensão civilizacional entre o diversitário e o conservador

Natanael Pedro Castoldi
5 min readOct 6, 2021

Notas sobre Regime Diversitário redigidas e publicadas durante o dia 5 de outubro de 2021, no meu perfil em uma rede social.

#1 — Segundo Mathieu Bock-Côté (2021), o grande instrumento de propagação da chamada Civilização Diversitária, de matiz progressista ideologicamente caraterizado, é a mídia mainstream, que leva aquilo que está sendo gestado nos campi universitários ao grande público, estimulando a aderência de entes políticos, já que passa a dominar a narrativa e a estabelecer os termos e o terreno do debate (ganha capital político aquele que adere ao discurso e é expulso da vida pública quem o rejeita). A observação da proeminência da mídia do regime diversitário é tão acertada que, confirma Côté, o movimento conservador norte-americano formou-se basicamente ao redor da contestação do modus operandi do aparato midiático e toma como principal meio de ação o estabelecimento de mídias alternativas, que se está intentando criminalizar pela alegação de serem “propagadoras de fake news”. Eis onde reside o cerne da guerra civilizacional de nosso tempo, aqui no Ocidente: o controle da narrativa e dos meios de comunicá-la.

Quando você percebe isso, entende, goste ou não, a incomensurável importância da figura de Olavo de Carvalho na quebra da autoridade da mídia mainstream, assim como de muito do poder apelativo do mundo acadêmico. Ainda não é possível medir as dimensões reais das consequências de sua ação, baseada numa personalidade dotada de imensa coragem e de potência (o mesmo que ajudou Lênin a ganhar visibilidade e autoridade). Todo o movimento conservador e de direita brasileiro recente foi articulado a partir do pioneirismo dele e a criação de incontáveis jornais e programas de mídia alternativa, assim como a conversão de emissoras de grande porte à direita, segue a brecha por ele aberta. Atualmente, em nosso contexto ocidental, penso que só o Brasil e os Estados Unidos contam com movimentos conservadores midiaticamente consolidados e capazes de rivalizar, e até mesmo superar, a mídia mainstream. No que diz respeito ao futuro da humanidade, se agrade ou não de como as coisas funcionam dentro do cenário da direita, essa oposição massiva encabeçada pelo Brasil e pela América é de vital relevo.

#2 — Deve-se ter em mente que o Palácio, o poder político, o rei, nunca existe sem a bênção e o apoio de uma classe sacerdotal, que sustenta e divulga os mitos que legitimam o regime. Por isso as cidades mais antigas do mundo já eram organizadas ao redor do complexo Palácio-Templo. Quando, no Ocidente pós-iluminista a Igreja é gradativamente destituída de seu poder frente ao Estado, o Palácio carece de uma nova classe sacerdotal, de uma nova fábrica de mitos que tenha apelo popular, que saiba mediar as necessidades do regime e as vontades populares. A Mídia, como bem percebeu Maffesoli, está acoplada indelevelmente ao Poder, e o Político e o Midiático são-nos como que indissociáveis, simbióticos.

Nesse contexto, os sacerdotes, é claro, não são necessariamente os jornalistas (eles fazem parte do instrumento, da estrutura), mas os “especialistas” — acadêmicos, cientistas de toda a espécie, que possam sustentar os mitos necessários ao Poder. Por “Poder”, entenda Establishment ou Estamento Burocrático.

#3 — Mas a classe “abençoadora” (pub. anterior), que justifica o Estado, não pode ela mesma se ver desprovida de legitimidade. Como mediadora do transcendente, precisa fundar-se numa matriz autoritativa, numa fonte respeitável. A Mídia, em si mesma, não é mais do que o veículo do “sagrado”, a mediadora da Substância. A ideia da Civilização Diversitária é estabelecer um mundo idílico, fundado numa homogeneidade diversa, num emaranhado de diferenças tão denso e tão harmonioso a ponto de tudo ser confundido com uma coisa só — esse é o cálculo ideológico que se busca realizar e esse pano de fundo edênico, que vai à profundida do espírito humano, inspira e constrange à aderência. E é a essa profundeza sacral que a Mídia desce para transportar matéria à imaginação popular e legitimidade de ação ao Estado. Só que não é o jornalista que habita nessa fronteira do Sagrado: é o especialista, ministro de conhecimentos esotéricos e substanciais, que pode transformar em orientações exotéricas.

Nesse sentido, o que está lidando com a “matéria pura” é a sociologia, a psicologia, a física, a biologia… a “Ciência” e o cientista. Todas as áreas da ciência, articuladas no espírito do século, extraem dos fossos abismais elementos que corroboram a narrativa, e são autoritativas, pois ligadas ao alicerce ontológico deste tempo de materialismo. Naturalmente, o objeto preferido da Mídia mudará conforme a necessidade do momento: pode ir da Economia à Infectologia, a depender daquilo que é potencialmente inflamável ao espírito humano. Ao fim e ao cabo, contudo, é a Ciência que empresta autoridade ao discurso midiático que, por sua vez, o transfere ao Estado, feito maquinário logístico para a implementação burocrática da narrativa.

A oposição articulada do conservadorismo ao regime diversitário é a expressão de uma cisão civilizacional, de um cisma entre a Ática e a Galileia

Nesse sentido, interpretar a reação conservadora como meramente “anticientífica” é de uma superficialidade assombrosa e demonstra como a propaganda está surtindo efeito. Se é herético quem questiona a vigente ortodoxia cientificista, então está claro que a Ciência, agora em sua face da Saúde, contém o Sagrado. O fato é que o conservadorismo, enquanto sistema, é sempre uma ideologia de reação, que se organiza em caráter de urgência para frear algum tipo de desmando potencialmente degenerativo para a civilização. Para tal, considerando que a Mídia é o principal recurso de alastramento da narrativa tida como vil, o conservadorismo atual fará uso de instrumentos midiáticos alternativos e, tendo em vista que a Mídia capta autoridade da Ciência Permitida, é esperado (em termos de fenômeno social) que os conservadores assumam uma posição cética e reativa com relação à “Ciência”, que rejeitam não enquanto entidade, mas na sua forma apolínea midiaticamente impressa — eis o que é: uma rejeição à Mídia que conduz ao repúdio pela sua fonte de autoridade. Isso também será inevitável se considerarmos que, para sustentar uma posição contrária à narrativa, o conservadorismo procurará uma fonte de autoridade suficiente noutro território, adentrando em meandros da Filosofia, da Tradição e, enfim, da Religião, sobretudo do Cristianismo (não necessariamente ortodoxo).

Por isso, a oposição articulada do conservadorismo ao regime diversitário é, na verdade, expressão de uma cisão civilizacional, de um cisma, da polarização entre o Ego e a Alma do Ocidente (CARROLL, 2020), entre a Ática e a Galileia. São as duas faces do Ocidente, que sempre estiveram em tensão, chegando aos extremos de seu conflito e já sem um sistema civilizacional suficientemente robusto para compreendê-las e articulá-las. Noutras palavras: o que temos é uma guerra civilizacional.

CARROLL, J. Ego e Alma, O Ocidente moderno em busca de sentido. Curitiba: Danúbio, 2020.

CÔTÉ, M. B. O Império do Politicamente Correto. São Paulo: É Realizações, 2021.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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