Onde Está o Inconsciente Coletivo
Mais algo sobre mística e sobre metafísica
O fato de as memórias serem filamentos proteicos armazenados no cérebro, gerados no hipocampo como uma sobreposição de imagens, de emoções e / ou de informações semânticas, testemunha da existência de matéria orgânica existente em função e dotada de qualidades psíquicas — porque a memória, enquanto informação concretamente existente, está em função da possibilidade de existir psiquicamente. A transmodularidade do cérebro humano tornará a inteireza do cérebro matéria de qualidade psíquica — embora não exclusivamente. Isso nos leva à questão dos sistemas nervosos parassimpático e simpático, nas medida em que a “matéria nervosa” tem qualidade também psíquica, e assim chegaremos à teoria psicossomática de Stanley Keleman, para quem as vísceras, os órgãos, permeados que são pelo sistema parassimpático, possuem uma natureza ou uma forma psicológica, uma maneira de existirem na psique tal como apreendidos pela pressão energética que exercem sobre ela. Quando passam a existir psiquicamente, de imediato estão integrados à economia da chamada energia psíquica (Jung) — só podem existir psiquicamente, quanto integrantes do sistema psíquico interno, dessa maneira. Segundo Keleman, os “arquétipos”, os motivos imagéticos universais, que aparecem nos mitos de todos os tempos, são formas oníricas, simbólicas, mentais de pressões orgânicas correspondentes à natureza “nervosa” de cada órgão e de cada parte do organismo, tal como existem psiquicamente — e como todos os seres humanos compartilham o mesmo sistema orgânico básico, experimentarão imaginações “instintivas” comuns.
Assim como a maneira de diferentes órgãos existirem psiquicamente dará em tendências ou tonalidades imagéticas padronizadas (o fígado associado ao peso, à terra, à rocha; os pulmões ao ar, à leveza, ao espírito), diferentes doenças orgânicas serão assimiladas psiquicamente de determinadas maneiras, tais como diferentes alimentos e diferentes experiências sensoriais, conforme os seus modos habituais de recepção (o sol, o fogo, o rio, o mar, a pedra, o penhasco, a montanha, o bosque, a floresta, a brisa, a ventania, o trovão, o urso, o rato, o besouro, o calor, o frio, a alvorada, o entardecer, o dia, a noite…). Sem pensarmos com Jung que o Inconsciente Coletivo é Psicoide, instado entre a matéria e a psique, não teremos problema com a teoria de Keleman e nem com os desdobramentos pessoais que eu apresentei acima, porque haverá, por assim dizer, uma qualidade psíquica em tudo quanto seja assimilável psiquicamente e que apresente a qualidade da estabilidade ou de uma forma fenomênica recorrente — ou seja, que seja normalmente sentido da mesma maneira pela maioria dos homens. Não precisaremos nos esforçar tanto para encontrar aqui um pouco da antropologia clássica e da operação intelectiva do espírito, capaz de apreender universais de particulares — segundo o modo de conhecimento humano.
… o Inconsciente Coletivo se refere a uma qualidade mnemônica humana de espécie radicada no organismo…
Uma vez que hoje sabe-se, com Edward Wilson e Peter Levine, que memórias (produtos de experiência) podem ter aspectos seus armazenados em diferentes partes do organismo e que há experiências recorrentes da espécie humana capazes de serem transmitidas filogeneticamente, é apenas um passo para entendermos que o Inconsciente Coletivo, de Jung, não existe em “algum lugar” do cérebro, como se hipostasiado, mas se refere a uma qualidade mnemônica humana de espécie radicada no organismo, pertencente ao homem mesmo — uma maneira de denominar as manifestações de natureza arquetípica ligadas à qualidade psíquica inerente ao organismo inteiro e todas as suas partes tais como existem psiquicamente e se integram à economia da energética psíquica (o Psicoide, pois).
O supracitado nos dá base para uma hipótese a respeito da formação imaginal filogenética, porque o organismo humano se transforma ligeiramente a partir da experiência multimilenária em diversos ambientes naturais e sociais, com todos os hábitos a eles atrelados, modificações essas ligadas, portanto, à vida da espécie enquanto espécie humana e, por conseguinte, marcadas existencialmente — isto é, de algum modo e nalguma medida, menmonicamente. Ademais, alterações nas estruturas orgânicas e no seu metabolismo corresponderão (talvez até reciprocamente) a alterações na sua forma psíquica, na sua maneira de existir psiquicamente. O período ancestral da humanidade, se não quantitativa (das centenas de milhares de anos), qualitativamente determinante (em sentido ontológico), demarcou a forma psíquica universal do soma e dos fenômenos sensoriais, baseada na exaustiva correlação entre a experiência e a resposta nervosa, e depois a própria forma psíquica, filogeneticamente cristalizada, perpetuou a si mesma, sustentando, na medida em que o organismo não conheceu modificações substanciais nos últimos milhares de anos, inclinações arquetípicas altamente primitivas (a qualidade psíquica dos instintos, ou a maneira pela qual os instintos existem psiquicamente), que assaltam o homem moderno nas suas crises e nos seus sonhos. Seguem, pois, como molde categoriais pelos quais tendemos a ler a realidade e a perceber a nós mesmos — quando não disciplinados por um sistema de pensamento ou pela cultura “civilizada”.
O Intelecto esteve operante na percepção dos eventos formativos do Inconsciente Coletivo…
Com isso não quero pôr no corpóreo e nem no instinto o fundamento do pensamento ou do conhecimento. O que se quer dizer aqui não é que a percepção de si e do mundo seria impossível sem as “categorias”, mas que essas “categorias” participam da recepção e da assimilação dos conteúdos apreendidos interna e externamente. Sendo elas universais, ao fim e ao cabo, e sendo o homem espírito e intelectualmente operativo, nada impede que o modo de percepção e de assimilação dos conteúdos, quando límpido, esteja prenhe da verdade das coisas apreendidas — as operações do Intelecto na percepção dos universais através dos particulares sensíveis é-me inegável e não anula em nada o que se sabe a respeito do Inconsciente Coletivo. As evidências do Inconsciente Coletivo instam no fato de que imagens primordiais e de qualidade universal eclodem em momentos nos quais há um rebaixamento das operações da consciência, imagens essas muitíssimo misteriosas para aqueles aos quais se manifestam e apenas depois descobertas como existentes em materiais dos tempos de antanho, em mitos e outros registros arcaicos. O Inconsciente Coletivo será formado da experiência perceptiva da realidade, seja ela interior, seja ela exterior, mas conforme a sua forma de assimilação psicossomática e o seu modo de transmissão filogenética. O Intelecto esteve operante na percepção dos eventos formativos do Inconsciente Coletivo, no tempo primitivo, mas não no seu modo de cristalização Psicoide, e pode operar por sobre os seus conteúdos atualmente, tal como percebe e discerne os particulares sensíveis dos mundos externo e interno.
A participação do Intelecto na percepção e no discernimento do Psicoide emergente dará em fenômenos de Visão, em experiências teofânicas e insights de tipo revelacional, ou no arrebatamento pela Noção. É da Inteligência afiada, sobretudo na sua qualidade solar, que é espontânea, intuitiva e contemplativa, que os arquétipos revelam suas formas mais apolínias, mais depuradas, mais ligadas ao Espírito do que à Natureza. Razão pela qual não devemos ignorar que aquilo que reside no Inconsciente Coletivo deva conter o gérmen da Verdade inerente ao ato operativo do Intelecto na ocasião da experiência primeira — daí a fonte da vida psíquica radicar-se na mesma fonte do mundo dos particulares sensíveis, ao que Jung chamou de Realidade Unitária e ao que chamamos de Ser.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 18 de maio de 2024.