Os Apetites do Corpo, da Alma e do Espírito

Uma experiência despretensiosa e fugaz em tipologia psicológica

Natanael Pedro Castoldi
9 min readAug 5, 2024

Como vimos, a relação do homem com as coisas, quando em contexto societário, será eminentemente uma relação de status, partícipe do jogo hierárquico do poder e do prestígio. Por essa razão, quase qualquer coisa pode ser tornar objeto de desejo, bastando ela ser desejada primeiramente por alguém, donde a posse do objeto de desejo, qualquer que seja, poder servir para ostentação de privilégio. A sua conquista, portanto, deverá ser tornada maximamente pública, como demonstrativo da conquista de um lócus ambicionado e para instigar ambições de outros, cujos sinais servirão como validação — o que será compensado no discurso contra os “invejosos” -, quando não para suscitar bajulação. Daí as coisas em si serem de relativamente pouco valor, em comparação com o papel que podem desempenhar no campo social, um papel que se cumpre principalmente nas aparências, porque o jogo do status é, como se deve supor, lúdico.

É impossível ser humano e não estar inserido, ainda que compulsoriamente, dentro da Economia dos Homens. Mas há diferentes regimes de inclinações no homem, de maneira que há diferenças entre as pessoas. Devemos enquadrar as vaidades e ambições de qualidade societária como correspondentes aos apetites da alma — por mais estética, sensualista mesmo, que seja a vida vivida nos termos das aparências públicas, o apetite que ali se terá não é idêntico aos apetites corpóreos mais elementares. Há, de fato, gentes que baseiam a maior parte de suas decisões em uma espécie de cálculo hierárquico, de status e de ascensão social, se conservando sobremaneira focadas naquilo que aparece aos demais, e talvez a maioria das pessoas em nosso tipo de sociedade apresente uma hipertrofia no campo das vaidades, e mesmo em seu tempo solitário vivem como se estivessem diante de multidões — porque, sociais que somos, todos desenvolvemos uma espécie de interiorização psíquica do mundo exterior da cultura e da sociedade, convencionado como “Superego”.

Há gentes que baseiam a maior parte de suas decisões em uma espécie de cálculo hierárquico…

Os apetites mais propriamente corporais não serão assim tão imaginativos, não se basearão nesse ludismo de persona pública e até tenderão a um saciamento discreto, às escondidas, porque, via de regra, não “pegam bem”. Não se desdobram exatamente em projeções e interiorizações de status ao redor coisas, por isso não têm seu núcleo exatamente na alma, mas no corpo — sua satisfação está mais diretamente ligada ao prazer sensorial imediato, baseado em cheiros, sabores, texturas, sons, com todos os desdobramentos organísmicos correspondentes. Há, pois, uma distinção entre compulsões viciosas orgânicas e compulsões viciosas sociais. E, embora as pessoas, em nossa sociedade hedonista, pareçam viver excessivamente nessas duas modalidades de vida, uma às escondidas e outra sempre divulgada, as notas do societário transparecem mais generalizadamente — porque os veículos de prazer sensorial acabam sendo procurados, no contexto do consumo e da multidão, como objetos de desejo.

A distinção entre os tipos precisa ser considerada pelo simples fato de que sobejam indivíduos que não se sentem tão compulsivamente pressionados ao jogo de status societário, ainda que não possam se retirar totalmente dele. Eles tenderão a se importar um pouco menos com a manutenção de sua aparência, passarão ao largo de muitos modismos e do fluxo da massa, terão menos necessidade de procurar os e de expor a conquista dos objetos de desejo da moda. Serão, talvez — embora pretenda não generalizar -, um pouco mais introvertidos do que extrovertidos, donde uma opção mais confortável por certo distanciamento do frenesi mimético do cerne do jogo público das aparências. Menos numerosos do que os extrovertidos, sentem mais fortemente o peso da realidade exterior, sendo mais propícios a uma acomodação tanto nos apetites mais baixos, quanto nos apetites mais elevados. Eu particularmente me percebo suficientemente desprendido dos apelos da massificação, do fluxo pandêmio do jogo do status, e apresento maiores dificuldades com o saciamento sensorial do corpo, sobretudo no que diz respeito à alimentação, e entendo perfeitamente bem como esses apetites não compartilham do mesmo núcleo daqueles do societário, porque, por si mesmos não se referem em ponto algum às validações e ambições de escalada social — a não ser que falássemos do consumo de alta gastronomia, por exemplo, para fins de valorização em um nicho social. Até creio que algumas dificuldades advindas duma desproporção nos apetites sensoriais do corpo poderiam ser parcialmente sanadas com um ligeiro aumento na preocupação societária, porque alguma ênfase a mais na importância das aparências poderia chegar a estimular uma melhor regulação dos apetites desproporcionados.

… alguma ênfase a mais na importância das aparências poderia chegar a estimular uma melhor regulação dos apetites desproporcionados.

Perceptível, ainda, a diferença entre os tipos nas relações públicas, na exposição social e na lida profissional. Enquanto o mais ambicioso tenderá à angústia da exposição pública por medo de macular sua imagem social, o sensorial ficará mais facilmente angustiado pelo desconforto em si que tal experiência demanda e pelo potencial de dor que virá de um possível fracasso público, com toda a ameaça da perda de determinadas vantagens que viabilizam seu conforto. Ele se importará, é claro, com a opinião dos seus interlocutores, mas muito menos em função de suas expectativas de escalada social e de prestígio do que em função de sua necessidade de sentir que está em uma posição segura e estável — isto é: distante da dor. Profissionalmente, o mesmo, e se ele progride em termos de capital e de carreira, será mais pela consistência no trabalho prudente e contínuo, do que na busca ativa por oportunidades arriscadas e por ascensão. Tanto um quanto outro podem ter dificuldades com retenção de recursos em consequência de excessos — o sensorial, para a satisfação de determinados prazeres; o ambicioso, pois, para estar atualizado no jogo do status. Se houver estabilidade, o sensorial a terá mais porque precisa sentir que está tudo em paz e em ordem, para não ter que se preocupar com sua sobrevivência diária e, assim, usufruir liberalmente de seus interesses particulares; o ambicioso a terá por ter ascendido a um patamar socialmente satisfatório, para a conquista do qual ordenou meticulosa e estrategicamente a maior parte de seus recursos, sejam os materiais, sejam os temporais, sejam os intelectuais…

O que distinguirá, então, o espírito e seus apetites do corpo, que é sensorial, e da alma e suas ambições? Há um tipo de inclinação humana que se manifesta em termos diversos daquele do prazer sensorial e da mimese social: a inclinação pura e simples para a Verdade e para o entendimento da Realidade. É óbvio que não existem tipos humanos puros e nem apetites monolíticos, sem qualquer tipo de atravessamento e de mistura. Mas havemos de reconhecer que o desejo pelo conhecimento da Verdade não possui um núcleo de sentido que se desdobre dos apetites sensoriais do corpo, porque não se reduz à busca por algum tipo de prazer, e não parece ter larga relação com o jogo competitivo do status. É evidente que a apreensão de uma base sólida de entendimento do Mundo é reconfortante e é inquestionável que esse conhecimento possa ser buscado e vertido no jogo do status. Isso dependerá do tipo predominante. Todavia, essa busca pela Verdade independe do prazer, porque, via de regra, a compulsão do instinto da Verdade gera mais angústia e desconforto do que pacificação, além de ser genuinamente procurada, em uma miríade de casos, sem qualquer dependência de aprovação social — a história tende a mostrar o contrário -, e até com preferência pelo isolamento e pela conquista do entendimento sem ter a quem divulgá-lo. Aliás, fica mesmo parecendo que a satisfação desse apetite pede, até mais do que uma supressão dos apetites do corpo, um afastamento considerável do frenesi social — a solitude demandada combina melhor com apetites solitários. Para o tipo que seja especialmente vocacionado ao espírito, o empenho na Obra demandará amplo desprendimento sensorial, com elevado desgaste físico em favor do disciplinamento mental e de extenuantes jornadas de imersão em abstrações — rotina que seria impossível se o interesse fosse meramente uma emulação pública de superioridade e se a vida social fosse frenética.

… a satisfação desse apetite [espiritivo] pede, até mais do que uma supressão dos apetites do corpo, um afastamento considerável do frenesi social…

Todos os homens, é claro, têm o instinto da Verdade e a centelha do Divino. A maior parte, todavia, se desviará do epicentro dos conflitos com o vulto do Absoluto, do Ser e do Não-Ser, pelo anestesiamento do espírito, sobrecarregado de estimulação sensorial e aleijado por um corpo massivo e lento, ou pelas ocupações superabundantes no societário, com todos os seus ídolos — quando não, no campo do jogo do status, perverter o que se sabe da Verdade e da Realidade em objeto de desejo, como conhecimento privilegiado e motivo de ostentação e de status em determinado nicho. Nesse ínterim, o Divino poderá ser transformado em um Grande Outro num sentido exageradamente personalista e paternalista, fonte de legitimidade pública e de prestígio, e até como justificador de determinada heterodoxia ou ideologia — no caso do sensorial, tornado uma potência luxuriante e orgônica, talvez. Em todo o caso, quando o Divino jaz restrito ao aparato confessional, que é um instrumento coletivo, vem mais para validar um sistema extrovertido, dentro do qual o sujeito poderá se sobressair se tomar posse, tanto ou mais do que os outros, daquilo que está convencionado. E quando o Divino está mais para um ídolo pessoal, que vem validar todos os descontroles viscerais, poderá não passar de uma argumento egoístico em defesa dos próprios destemperamentos — um argumento que aparecerá publicamente ao parecer necessário que o sensorial se proteja da retaliação exterior.

Embora o aparato confessional seja fundamental para toda a forma pública de culto, ele não exaure o instinto de Verdade, o qual pedirá por uma relação mais pessoal e mais direta com o horizonte da Transcendência. E toda a pessoa que se ocupar com uma vida reta mais nos termos da obediência ao que sabe da Vontade de Deus, do que para corresponder ao sistema de valores confessional, que é de satisfação da exigência pública — tanto para a ambição da escalada hierárquica, quanto para a sensorial evitação de problemas e de incomodações -, está atuando a partir das inclinações de tipo espiritual. Isso mesmo se não estiver objetivamente certa, mesmo se estiver sendo excessivamente escrupulosa e mesmo quando não for totalmente instruída. A submissão pessoal a um sistema de ordem transcendental que seja baseada numa atitude de Fé, se não numa atitude de Razão, e não primordialmente preocupada com o superegóico jogo societário das aparências ou para validar uma disposição viciosa visceral (um caso que parece contrassenso, mas que ocorre, por exemplo, quando a afirmativa da Corrupção Total é utilizada subrepticiamente para a licenciosidade), necessariamente corresponderá aos apetites do espírito — em termos de matriz nuclear, sem desconsiderar os aspectos acidentais de tipo visceral e societário.

… mais naturalmente irá verter suas conquistas eruditas em capital social, como parte do jogo do status, falsificando a via espiritiva.

Naturalmente, a disposição à vida do espírito existe em potência em todos os homens e ninguém nasce já dentro do tipo espiritivo — as qualidades temperamentais introvertidas ou extrovertidas, já aparentes nos bebês, anunciarão, segundo minha hipótese provisória, tendências mais viscerais ou mais societárias, que poderão ou não progredir. O progresso desejável da personalidade deverá redundar numa transcendentalização dos apetites, sejam dos do corpo, sejam dos da alma, desdobrando-se no tipo espiritivo, o lócus natural do homem amadurecido, mas cada vez menos presente em nossa sociedade. Isto é assim pela própria configuração de nossa cultura, a qual supervaloriza o tipo extrovertido e societário, ligado sobremaneira e perenemente às ambições e ao jogo do status — justamente o tipo menos propício ao desenvolvimento do espírito, dada a sua ocupação com demandas sociais exorbitantes e a sua tendência esmagadora ao ludismo e à distorção de todas as coisas como instrumentos de ostentação pública, que tem em si mesma a recompensa — e mesmo quando ele pertence a uma comunidade de pensadores, que deverá ser um estímulo bastante forte para o desenvolvimento de sua inteligência, mais naturalmente irá verter suas conquistas eruditas em capital social, como parte do jogo do status, falsificando a via espiritiva e se conservado espiritualmente achatado. A tendência à solidão e ao combate interno do introvertido e do visceral, por sua vez, viabiliza, mais do que a hiperatividade exteriorizante, o ingresso na vereda de elevação dos apetites do corpo em direção aos apetites do espírito.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 4 de agosto de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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