Os Delírios de Massa e o Brasil Atual

Diagnóstico de nossa condição vigente

Natanael Pedro Castoldi
6 min readMay 4, 2023

Segundo von Franz (Alquimia e a Imaginação Ativa), há uma profusão de eventos sincronísticos na ocasião da irrupção de episódios psicóticos. Uma psique já excessivamente fragilizada, com sua circunscrição fortemente abalada, está a um passo de se esfacelar — basta um aumento da pressão externa, capaz de constelar no inconsciente toda a potência de um arquétipo, para a eclosão da crise. William Sargant (A Luta Pela Mente) identifica esse momento derradeiro com o que ele chama de etapa paradoxal do processo de lavagem cerebral: após um intenso e extenso período de contradição, de dissonância cognitiva, de excitabilidade nervosa pela oferta de estímulos hostis (em geral, opostos às crenças do indivíduo), a pessoa chega no limiar, bastando um pequeno “empurrão” para que ela entre em colapso e se torne de todo sugestionável ao seu manipulador e às evidências ambientais — no contexto da ebulição da multidão, da massa crédula, a potência do grupo (baseada nos comandos do “cérebro-colmeia” [Haidt]) é suficiente para esmagar a personalidade individual e levar o sujeito à aderência completa à narrativa compartilhada (daí a sugestionabilidade geral levar aos famosos delírios coletivos). Sargant encontra elementos disso, por exemplo, em pregações de massa da crise inglesa do período wesleyano: a potência da voz, a expressão do pregador e a instigação dos medos mais primitivos (como a condenação eterna, o Não-Ser) instigavam a multidão, de pronto sugestionável pelo apelo autoritativo do pregador, à euforia — estou falando do fenômeno a partir de um ponto de vista psicológico, sem ignorar a possibilidade de sua validade carismática e teológica, que instam noutras esferas de análise.

A sincronicidade aparece aqui como partícipe da psicopatologia. Von Franz o exemplifica com o relato de um caso de psicose de matiz messiânico. Um homem cria ser o próprio Cristo e, agindo de modo agressivo com sua esposa, que não reconhecia a sua divindade, foi visitado por dois policiais e um médico. Os homens, assim que entraram na casa para prendê-lo, ouviram-no bradando no corredor ser ele “o Cristo crucificado” — porque seria encaminhado ao martírio. Imediatamente após a repetição dessa sentença, a grande lâmpada de um candelabro explodiu, deixando quase toda a residência no escuro. Para o falso messias, essa foi a evidência derradeira de que ele era Jesus e de que essa era a hora da sua crucificação, pois a lâmpada estourou e foi sucedida pelas trevas, tal como o sol escureceu no Calvário.

Nas sociedades antigas, repentes psicóticos dessa natureza eram assumidos de modo positivo se o sujeito se portasse e anunciasse oráculos que estivessem de acordo com as possibilidades da cultura. Para evitar o contágio geral, que conduziria a um frenesi coletivo altamente anárquico e violento, que Bastide definiu como “sagrado selvagem”, indivíduos com inclinações oraculares, com predisposições psicológicas ímpares, eram separados do restante da comunidade, vinculados ao Sagrado, separado por excelência, e atuavam sob prescrições rituais muitíssimo delimitadas e estruturadas, de maneira que a excitabilidade geral só poderia acontecer dentro de um ambiente rigidamente controlado e em ocasiões muitíssimo especiais. O expediente ritual associado ao xamã ajudava a romper a estrutura de sua psique vígil, já fragilizada, e a introduzi-lo num estado de êxtase — muitas vezes isso se dava por amplos processos de purificação, que envolviam jejuns, lavagens e sofrimentos físicos. Uma vez arrebatado do mundo dos homens, era o infusor da excitabilidade coletiva. O desenvolvimento dos elaborados sistemas rituais, diferenciadores do Sagrado, necessariamente decorreu de uma euforia coletiva auroral, indistinta, caótica (Jesi), irradiada desde uma hierofania (Eliade) e mobilizadora de excitabilidade violenta generalizada (Girard). Eis a geratriz do Mito, a aurora da cultura, mas o mecanismo pelo qual a cultura mesma pode ser dissolvida, caso não seja domado pela Ordem, pelo Logos, donde “Mitologia”. Manifestações carismáticas, oraculares, que ocorram fora dos limites do ritual e não respeitem a narrativa autorizada, enquanto ameaças à sobrevivência comum, são assumidas como heréticas e demoníacas. A memória da epidemia da dança, que ocorreu na Europa do Séc. XVI, é mais do que suficiente para ilustrar esses perigos.

Uma das maiores ameaças de nosso tempo está radicada na formação do homem-massa, decorrente da quebra da autoridade tradicional, eminentemente religiosa, vinculadora e sustentadora da comunidade, suscetível à propaganda, disponível às lideranças apelativas, predisposto a aderir aos discursos mais extravagantes e inflamados, formado dentro da massa e condicionado a aderir à multidão como referência para a formação de seus desejos e de suas vontades e para dar uso à sua energia. Ele está sempre na fronteira da euforia, do frenesi, da anarquia, do sagrado selvagem, tendente à covarde violência de turba, que funciona pela potência massiva, pela imposição de força e pelo constrangimento público.

Desprendidos do regime ritual, a condição de delírio se torna crônica

É assim que funciona a massa militante, a massa politicamente condicionada e ideologicamente dirigida (quer dizer — condicionada e dirigida por lideranças políticas e ideológicas, sem ela mesma chegar a compreender os meandros e as implicações reais do discurso). Inflamados com imagens apelativas, com a excitação de seus apetites do baixo ventre e pelo fomento do medo e do horror a uma suposta ameaça à sua satisfação e à sua sobrevivência, os “anti-indivíduo” (Oakeshott) retroalimentam mimeticamente narrativas persecutórias e triunfalistas, chegando a espelharem-se tanto uns nos outros, ao ponto de assumirem reações estereotipadas e gestos padronizados, mesmo quando separados da multidão. Desprendidos do regime ritual, a condição de delírio se torna crônica, contínua, e não apenas litúrgica e excepcional, permitindo com que vivam anos seguidos imersos na sua narrativa compartilhada autorreferente, sempre acrescentando novos elementos para sustentá-la e prolongá-la. O dano psicológico nos indivíduos, de tal modo conservados numa excitabilidade perene, é incontestável, assim como o dano à sociedade mais ampla, que se torna palco de crescentes excessos, que vão dos vícios à violência catártica, punitiva e expiatória. E, numa sugestionabilidade permanente e mimética, mergulham numa experiência sincronística diária: o menor fragmento de notícia se transforma em evidência inequívoca de que a narrativa coletiva delirante está correta, tudo o que acontece ao redor passa a ser distorcido e encaixado na trama e a inteireza do que transcorre na vida nacional é suscetível de justificar e autorizar a ideia de uma ameaça geral, de uma graça divinal sempre mais perto de ser dispensada sobre os escolhidos…

Estamos vendo esse filme agora, como vimos no ano passado. O coxão duro fatiado é a picanha prometida. Uma carteira de vacinação adulterada é máxima evidência de vilania, e mais potente do que bilhões desviados. Frases do atual presidente sendo lidas como ditas pelo ex-presidente são de imediato recebidas com uma cara de nojo automática e estereotipada, além de interpretadas com todos os mais terríveis diagnósticos — e quando a verdade é evidenciada, é notável a mudança de aspecto e a instantaneidade com que as últimas palavras são revogadas. A coisa é de nível somático, bestial, irracional em quase toda a medida, e respeita os ímpetos da multidão, com sua capacidade reflexiva reduzida, mesmo quando o sujeito está dela desgarrado. Isso sem falar dos choros descontrolados, histriônicos e histéricos mediante vitórias e derrotas. E não pensem que não consigo aplicar esse mesmo entendimento a muito do que observei na ala mais extremada do bolsonarismo, capaz de interpretar micro detalhes das fotos de Bolsonaro como códigos e comandos à militância.

A desgraça disso tudo é que, da perspectiva de quem pensa desde dentro da colmeia, de quem está deformado mentalmente após anos de estresse, de extremos e de extravagâncias coletivas, totalmente condicionado a reagir feralmente a determinados signos, aqueles que realmente estão procurando lidar com os fatos, com a realidade, observando-a com a gravidade, o desinteresse e a serenidade necessários, não são mais do que opostos miméticos, do que rivais políticos e fanáticos cegos. Assim, toda a possibilidade de inteligência e efetividade no debate público é anulada.

Deus tenha piedade de nós.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 04 de maio de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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