Os Dois Tipos Humanos: O da Terra e o do Reino

O esquema cósmico e escatológico da sabedoria cristã

Natanael Pedro Castoldi
6 min readJan 20, 2025
John Martin — The Deluge

Quando Davi diz “guardarei os teus justos juízos” (Sl 119:106), deixa claro o entendimento de que os Juízos de Deus não são apenas os Seus atos, incluindo também o fundamento desses atos, isto é: o Senhor pune, disciplina e destrói aquilo que se opõe à Sua Vontade, ou que se distancia do Seu julgamento a respeito da Criação e do que é Verdadeiro. Conhecer os “Justos Juízos” de Deus é assimilar uma visão de todas as coisas segundo o Senhor as vê — uma visão, por conseguinte, que, tendo-as conforme toda a pureza auroral e a sua forma ideal, não pode deixar de perceber o que de imperfeição, de ruína, de maldade e de pecado e morte se infiltrou em suas estruturas, desviando suas qualidades e deslocando-as de suas finalidades.

O conhecimento dos “Justos Juízos” é o fundamento da Profecia, que se performa acrescida do carisma teofânico e oracular: quem conserva dia e noite em seus lábios, balbuciando, a Palavra (Js 1:8), até ao ponto de encher a mente e o coração da Sabedoria de Deus (Pv 7:1–5), nutre uma visão afiada para a percepção das tendências desviantes nas intenções e nas ações dos homens e também das sociedades, podendo também antever as consequências de longo prazo do prosseguimento e do aprofundamento dos desvios, consequências que devem ser entendidas como Atos de Juízo divinos, independentemente da explicabilidade pelas vias das causas material e eficiente em seu sentido mais materialístico. Isto deve ser assim, ainda quando da falta de um oráculo comprobatório, porque a vereda do Pecado e da Morte, ou segundo uma lei mundanal, largamente dissonante dos “Justos Juízos”, invariavelmente atrai para si a ira divina, ainda que tardiamente, sobretudo quando se prolonga para além das medidas do arrependimento espontâneo. O Ato de Juízo vem, pois, para fazer prevalecer na Terra a Verdade, que é segundo a Vontade de Deus.

Atendei-me, povo meu, e nação minha, inclinai os ouvidos para mim; porque de mim sairá a lei, e o meu juízo farei repousar para a luz dos povos.
- Isaías 51:4

Esse princípio tem uma envergadura cósmica e escatológica, já presente em Isaías 2, porque ali não se reconhece apenas um oráculo pontual, uma profecia com um único objeto historicamente definível, mas a infraestrutura da Realidade pós-Queda: o Senhor é visto no Alto, o Homem é visto no Baixo; o Homem, quando ensoberbecido e revoltado contra Deus, tenta se elevar ao Céu, enquanto Deus, conhecendo a altivez do Homem, desce para a Terra, enchendo-a da Sua Glória, que põe montanhas abaixo e dissolve fortalezas, e cobre todas as distâncias desde o Centro até o Fim do Mundo (Társis); pela Sua manifestação, que é a manifestação da Sua Santidade, tudo o que é marcado pela lei mundanal do pecado e da morte, tudo aquilo do qual o Homem busca extrair forças independentemente de Deus — das obras de suas próprias mãos, portanto -, será desfeito, e apenas o que é perfeito, ou Verdadeiro, ou verdadeiramente Real, restará de pé. Tudo o que é perecível, e o próprio Homem terrestrial, cuja vida é medida segundo o alcance de seu fôlego, perecerá, e todos os ídolos serão destruídos, lançados fora, às toupeiras e aos morcegos, e os povos da Terra reconhecerão que só o Senhor é Deus, que a Sua Lei vem de Sião e que é em Sião, no Monte Santo, que conhecerão os Seus Caminhos, para quem andem nas Suas Veredas, para que “caminhem pela [Sua] Luz”.

… apenas o que é perfeito, ou Verdadeiro, ou verdadeiramente Real, restará de pé.

Que se reitere: os Atos de Juízo são destrutivos na medida em que afirmam as Verdades Eternas e a suprema Realidade, tal qual a mente de Deus, porque a afirmação dessas Verdades e da Realidade esfacela, pelo seu próprio peso ontológico, tudo aquilo que, marcado pela parcialidade e pela falta, ou Não-Ser, pode ser consumido pelo “Fogo”. A História será, pois, governada por essa tensão, que é a tensão fundamental da escatologia e do Apocalipse, até que tudo seja “devolvido” ao Pai.

… na medida em que tentam ascender, vão se rebaixando cada vez mais, curvados que ficam pelas cargas de tantos acúmulos…

Impõe-se aqui uma inversão da lógica mundana, porque aqueles que são grandes entre os homens, enchendo-se de recompensas terrestres e valendo-se de tesouros perecíveis, estão inchados demais para serem grandes no Reino, enquanto os miseráveis do Mundo, que conseguem ser “pobres de espírito”, de maneira que não depositam sua confiança na força do homem e jazem inflamadamente abertos ao cuidado de Deus, serão grandes no Reino, e, tendo largado tudo para seguir a Cristo, os “juízes” dos reis da Terra. Aqueles que, altivos, procuram se elevar acima do Mundo, como se fossem deuses, e subir aos Céus pelas escadarias de Babel, estão tão transbordantemente cheios de si e tão pesadamente ancorados em bens e obras mundanas, de “matéria espessa”, que, na medida em que tentam ascender, vão se rebaixando cada vez mais, curvados que ficam pelas cargas de tantos acúmulos, e se desumanizam, e se bestializam, ajoelhados aos pés de ídolos feitos por mãos de homens, imagens inertes de homens. Quando o Peso da Glória despontar de entre as nuvens, derrubando Babel, descerão muito abaixo dos pés de seus ídolos, afundando em fendas e cavernas, para o reino das trevas e para a morada das primitivas criaturas da escuridão, aterrorizados com a chegada do Senhor.

Na Septuaginta para Isaías 2 há uma sutileza. Os soberbos, seguindo a lógica de sua idolatria, depois de curvarem-se ao que é mera imagem do homem e inferior, portanto, ao Homem, cairão ainda mais fundo, curvando-se ao que é absolutamente estranho ao Homem, menos do que obra humana, humilhando-se aos “pés” dos vermes da Terra e das criaturas terríveis do Submundo, distantes de toda a humanidade, ainda que de uma mínima humanidade, para que se desfaçam em algo menor do que a imagem de si mesmos — o arquétipo dessa sutileza é a história de Nabucodonosor, o soberbo rei dos babilônios, posto de quatro e a pastar como gado no campo.

Naquele dia, um ser humano atirará fora as suas abominações prateadas e douradas, que ele fabricou para diante delas se prostrar: para se prostrar diante de coisas vãs e de morcegos, para entrar nos buracos da rocha sólida e nas fendas as rochas.
- Isaías 2:20–21, tradução do Antigo Testamento grego

Essa “autodestruição” do Homem é também uma forma dos Atos de Juízo, porque impõe o aprofundamento na vereda da lei mundanal até o território limítrofe da desumanização, da humilhação completa do Homem, feito ridículo e caricatura de si mesmo como resultado de suas próprias pretensões titânicas de grandeza. O grande exemplo aqui é o Faraó do Êxodo, obrigado pelo Senhor a permanecer preso em sua obstinação inicial contra Ele e contra o Seu Povo, até o seu afundamento no Abismo, e a sua expressão teológica está muito bem colocada pelo apóstolo Paulo em Romanos 1:18–32. O tipo de homem que jaz sugerido em Romanos 1 é aquele que fugirá para o fundo da Terra quando Deus vier para Julgar o Mundo — na realidade, é aquele que DESCE para o fundo da Terra quando Deus se interpõe em seu caminho, obstinado em seu coração.

Este, que se agarra ainda mais fortemente à própria vida e ao próprio fôlego, só poderá conhecer a ruína completa…

Os dois tipos humanos, evidentes desde Caim e Abel, representantes, respectivamente, da Semente da Serpente e da Semente da Mulher, são aqueles que estão destinados à Destruição e à Salvação. O primeiro tipo, sobremaneira apegado a si mesmo e aos bens, não reagirá à Vinda do Senhor de outra maneira que não a de um horror doloso, o qual nutre um ímpeto, que é segundo a lei mundanal, de “salvar a própria pele”, temendo tremendamente a morte física ao ponto de buscar refúgio e esconderijo da presença luminosa da Glória de Deus na escuridão das fronteiras do Inferno, como se tivesse qualquer chance de ser bem-sucedido. Este que, diante da Vinda do Senhor, se agarra ainda mais fortemente à própria vida e ao próprio fôlego, só poderá conhecer a ruína completa, assumindo para si o mesmo destino deste Mundo Caído. O segundo tipo, que nunca encontrou motivos suficientemente fortes para apegar-se ao próprio ego e aos tesouros da Terra, reagirá à Vinda do Senhor como quem corre na Sua direção, como quem esteve sempre esperando a Salvação, isto é: a libertação das mazelas deste Mundo vil, ardentemente desejoso da Eternidade supraterrena, no Paraíso Celeste, porque jamais entrou em seu coração pobre a soberba ideia de que seria minimamente capaz de erguer na Terra e pela sua força o Paraíso Perdido. Tendo negado o Mundo e a própria vida — no sentido supracitado -, este poderá ser refeito segundo a matéria do Novo Céu e da Nova Terra.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 18 de janeiro de 2025.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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