Os Doze de Paulo em Éfeso
O símbolo da Missão aos Gentios
Há algo de impressionante em certos pequenos detalhes de Atos 19, um dos mais espetaculares capítulos do Novo Testamento. Não é sem razão que o apóstolo Paulo aparece tendo encontrado discípulos de João Batista em Éfeso e que, deles, batizou “uns doze” no Nome de Cristo, e, impondo-lhes as mãos, viu-os sendo cheios do Espírito Santo, profetizando e “falando línguas”. Daí, por três meses Paulo disputou com os judeus e prosélitos na sinagoga, certamente com o grupo dos doze convertidos, que chamou à parte quando da resistência judaica, para ensinar-lhes diariamente a Sã Doutrina na escola de Tirano. Ensinou lá por cerca de dois anos, instruindo os doze e atraindo crescente interesse dos gregos e dos judeus de toda a região. Sua presença em Éfeso culminou em uma série de milagres de curas e de expulsões de demônios, ao ponto de tentativas de exorcistas ambulantes tentarem exorcizar, sem sucesso, “no nome de Jesus, a quem Paulo prega”. O espalhamento das maravilhas efetuadas através do apóstolo teve por clímax uma autêntica comoção popular, de arrependimento geral de feiticeiros e o acúmulo, seguido de fogo, de montantes extraordinários de livros e artefatos mágicos. Estabelecida uma consistente igreja efésia, retirou-se de lá. Muitos dos doze devem ter se conversado na liderança dessa igreja e alguns deles, sem dúvidas, estiveram com Paulo em sua despedida em Atos 20.
Perceba a ênfase que dei ao número doze, proposital da parte de Lucas, porque ele diz “uns doze” — poderia ter enfatizado uma “média” diferente. Ali Paulo chama para Cristo doze remanescentes de João, evidentemente bem instruídos na doutrina escatológica desse Elias e à espera do Messias, para que, uma vez tendo sido batizados em água e para arrependimento, fossem batizados no Espírito e no Fogo, que quer dizer Poder, porque o Messias, como disse João Batista, “é mais poderoso do que eu” (Mateus 3:11). Está claro que os discípulos de João em Éfeso não compreenderam aspectos da pregação do Precursor, o sentido de sua ênfase no Espírito (que deve ter sido pregada em aramaico, não em grego), também porque provavelmente não conheceram bem a obra de Cristo, talvez dispersados após a morte de seu mestre, decapitado por Herodes. Esses remanescentes de João Batista aguardavam, pois, a transferência, como ocorrera com outros discípulos, como André, para a autoridade de Jesus — talvez eles estivessem entre os últimos dos que, de João, ainda esperavam o Reino, posicionados na fronteira final da Antiga Aliança. Por isso, uma vez tendo nascido no Novo Homem, no Reino de Deus, ingressaram na “nação de profetas” prenunciada por Moisés em Números 11:29 e, tendo sido cortada a cabeça da Antiga Profecia em João e agora em si mesmos, profetizaram “fora da Tenda”. Esse evento é simbólico — uma extensão perdida, em diáspora, da obra do Batista fora encontrada por Cristo e através de Paulo, e dela são abertas de uma maneira esplêndida, não antes vista, as portas do mundo gentílico. É uma situação inversa daquela de João 12, quando alguns gregos foram encontrar Jesus dentre a multidão judia, em Jerusalém, que é para onde Paulo decide retornar assim que termina sua obra em Éfeso.
Esses “doze de Paulo” são a base simbólica da Missão aos Gentios, porque alcançados desde o epicentro do paganismo
Conforme E. H. Trenchard, no Comentário Bíblico NVI, Paulo deve ter permanecido em Éfeso durante dois ou três anos, considerando o que é dito nos v. 8 e 10 de Atos 19 e no capítulo 20 do mesmo livro. Foram de dois a três anos ensinando ao círculo dos doze efésios, primeiro nas disputas da sinagoga, depois no ginásio de Tirano, sempre no final da manhã de todos os dias, e ainda de casa em casa. Existe algo de curioso nesse período de tempo: parece uma média temporal quase que consensual para o discipulado pleno da Sã Doutrina, ou da Doutrina de Cristo, baseada no período do Ministério de Cristo, testemunhado pelos Doze. Digo isso em vista do que Paulo diz em Gálatas 1:11–12: tendo sido convertido diretamente por Cristo, que veio em teofania, e saído da seita dos fariseus, na qual fora discípulo de Gamaliel, retirou-se ao “deserto da Arábia”, onde permaneceu por três anos, depois dos quais retornou a Jerusalém. Os três anos na Arábia devem ser compreendidos como três anos no Deserto, provavelmente o deserto do Sinai, à luz da experiência de Moisés e da experiência de Elias junto do Monte Moriá e na sua famosa fenda. Ali Paulo foi instruído, por revelação, pelo próprio Senhor, na mesma doutrina que depois repassou aos doze de Éfeso durante cerca de três anos. Ele teve com Cristo, portanto e tardiamente, o mesmo tempo que os demais apóstolos. A repetição desse padrão é notável e indica um período estereotipado, como que iniciático, para o ingresso cabal na Sã Doutrina, sempre aberto a um seleto grupo especialmente interessado na ministração apostólica. É claro que esse não é um padrão universal, porque as epístolas neotestamentárias falam do ensino progressivo da Sã Doutrina ocorrendo geralmente nos cultos cristãos e ao longo de períodos muito maiores, mas devemos ter em mente que esse ensino público e cúltico é diferente daquele que Lucas apresenta em Atos 19, transcorrido em ginásio e voltado, embora não restrito, a um circunscrito grupo de “doze” — essa ênfase determina tudo. Esses “doze de Paulo” são a base simbólica da Missão aos Gentios, porque alcançados desde o epicentro do paganismo, como os Doze de Cristo aos judeus e desde o coração do judaísmo. Os “doze de Paulo” conformaram o núcleo sólido de anciãos para o qual o apóstolo se voltou por vezes, fazendo questão de ver numa última ocasião, quando se despediu.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 27 de julho de 2023.