Os Nephilim como Titãs e Deuses do Mundo Antigo

E de como YHWH-El os derrotou e os derrotará

Natanael Pedro Castoldi
15 min readAug 11, 2024

Nas notas de sua tradução em Gênesis, especificamente para Gênesis 6, Enih Gil’ead defende que o melhor significado para “nephilim” é “gigantes” — saiba-se que num sentido de gigantes “espetaculares e amedrontadores”, donde estarmos de fato diante de criaturas monstruosas. Todavia, dentre outros significados possíveis, há outros de interesse, e alguns combinam bem com a sua descrição no versículo 4: lenhadores, intimidadores, tiranos e, segundo Gesenius, os caídos — no sentido de quem cai por terra, por sono e doente, ou como aquele que é lançado fora, como um aborto.

Híbridos ciclópicos da abominável coabitação de demônios com as filhas de Caim, dificilmente podem ser chamados de “criaturas”, como eu fiz acima, sem alguma dificuldade e se considerarmos “criatura” no contexto de Criação, uma vez que eles não são, de maneira alguma, obra do Criador, mas fruto da inseminação do Caos de Tehom / Tohu no ventre da mulher, donde “abortos” sobre a Terra, sem lugar próprio no Mundo Diurno, tampouco no Mundo Celeste. A presença dos Nephilim em Gênesis, enquanto monstruosidades abissais emergentes do tempo posterior à Cosmogonia do Gênesis 1 e domínio de YHWH por sobre o Oceano Primordial, empurrado pelo Seu Sopro para a região dos Pilares da Terra, deve remeter à primitivíssima tradição que encontramos no Salmo 104 e, aos fragmentos, em Jó 26:13, Salmos 18, 74:13–14 e 104, Isaías 51:9–10 e Naum 1:4, que nos apresenta um verdadeiro combate de YHWH contra a Antiga Serpente do Mar — um título da Tiamat babilônica, que é “Tehom” -, enquanto expressão do Caos Primevo anterior ao Princípio da Criação, uma vez que os Nephilim, embora sejam tradicionalmente divisados tendo origem no contexto antediluviano, parecem pertencer a um reino que está fora da Criação — isto é, pertencem ao Caos pré-criacional e que jaz abaixo do Mundo, nos Ínferos. Segundo a perspectiva incipiente nos textos bíblicos supracitados, YHWH impõe-Se sobre o Abismo e perfaz a Criação como o Deus que domina sobre o Tehom predecessor. O Submundo será, nessa perspectiva, não a Criação — esta é a Terra -, mas o deslocamento do Caos Primitivo, ou das Águas Inferiores, mais para baixo, atrás dos Limites, ou “Efes”, e das Águas Superiores mais para cima. Donde o Submundo conservar-se em suas características próprias, gerando uma profusão de rebentos ínferos desde as Águas Genesíacas. YHWH, o dominador da Serpente Enroscadiça (Jó 26:13), mui similarmente ao que conhecemos do Mito pelasgo sobre Eurínome e Bóreas, é feito Senhor do Submundo e da Terra a partir de Seu Trono no Céu, rodeado das luzes solares, dos vapores das Águas Superiores e do arco-íris do Firmamento. Convém sustentar a origem hebreia e egípcia de Bóreas, ou Ófion, do Mito pelasgo (Rober Graves — Os Mitos Gregos, Vol. I).

… El como o Soberano Absoluto do Cosmos e o Criador do Mundo, dominador por completo dos Sete Poderes Planetários da Semana…

Encontramos em Gênesis 1 o claro progresso mosaico, que é de matiz revelacional, das implicações incipientes à visão semítica ancestral de El como o Soberano Absoluto do Cosmos e o Criador do Mundo, dominador por completo dos Sete Poderes Planetários da Semana, isto é: do regime do Tempo. O único e eterno Deus, evoca a Criação no Vazio, ou no Abismo — Tehom — do Não-Ser (o mesmo que o Oceano Primordial), e, no Princípio, impõe ordem e substância ao Tohu (Leviatã) e ao Bohu (Beemote), apresentados, pois, como Matéria-Prima amorfa, sem qualquer qualidade divinal e anímica — a “anima” de Tohu e Bohu é inseminada pelo Espírito de Deus, pelo Seu Vento fertilizador, quando Este paira sobre a Face das Águas e impõe sobre o Mar toda a latência, ou a potência genesíaca da qual extrairá, como oleiro, as formas criaturais. Uma progressão mais notável desses motivos vê o Sopro de Deus como a Luz Una do Logos Divino, despertada na Criação no Um Dia, o qual está ainda no seio do Eterno, e que vai se desdobrando em todo o matiz multicolorido do arco-íris — isto é: vai subtraindo da Matéria-Prima toda a sua multiplicidade de criaturas, depois de estabelecidos os Três Níveis da Cosmologia (Submundo, Terra e Céu).

Importa-nos, todavia, a identificação dos Nephilim com o Reino do Submundo, do Abismo, e enquanto uma expressão autônoma dos Infernos, a partir da rebelião dos anjos caídos — aqueles que Isaías 24:21–23 afirma terem sido derrotados por Deus nas Alturas. Daqui os Nephilim apresentarão qualidades típicas dos Titãs do Mito grego, tanto no significado etimológico de “Nephilim”, quanto naquilo que podemos saber a partir de sua descrição. Lembre-se de que um dos sentidos de “Nephilim” é “tirano”, donde apreendemos serem eles como que senhores e dominadores do Mundo Primitivo, os “homens de fama” e os “valentes que houve na antiguidade”. A conexão de Gênesis 6:4 com Isaías 24:21–23 a partir de Ezequiel 32:21 e 27, defendido por Robert Graves como uma parte da tradição titânica hebreia dos Nephilim, nos convence de que eles, os “poderosos e fortes”, foram reis, tiranos de fato, sobre os “formigueiros” humanos do pré-Dilúvio. Pode-se, portanto, discernir em seu governo sobre as massas humanas antediluvianas como um símbolo da ruptura rebelde dos Limites, ou “Efes”, do Abismo, cujo princípio infernal e caótico passa a reger o sistema de vida humano, impondo ampla destruição à Criação e atuando em franca oposição à Vontade e à Soberania de Deus. Com a irrupção dos Águas de Baixo e das Águas de Cima sobre a Terra, removidos os Limites por YHWH — as fronteiras dos Quatro Cantos, ou do Horizonte, e o Arco dos Céus -, o Senhor deu mostras de que Ele é o Rei do Submundo, da Terra e do Céu, impondo a aniquilação dos Nephilim desde a sua própria matéria, sobre a qual, ao fim e ao cabo, o Criador domina — daí a imagem de YHWH brincando com Leviatã, a Antiga Serpente do Mar, no Salmo 104:26, assim como o Seu envio do Grande Peixe para buscar o profeta Jonas nas Águas.

A palavra “titã” deve ter significado “rei”…

O que se pode saber dos Nephilim enquanto os tiranos, ou os reis implacáveis do mundo antediluviano é corroborado pelo Mito grego, conforme W. F. Otto (Os Deuses da Grécia), com a consideração de Graves (Os Mitos) da origem babilônia e palestina dos Titãs, provavelmente introduzidos pela colônia cananeia estabelecida em Corinto no segundo milênio a.C. A palavra “titã”, para Otto, deve ter significado “rei”, referindo-se, pois e originalmente, não a uma categoria de deuses, mas aos “grandes”, os verdadeiros deuses primordiais — “titã” seria o precursor pelásgico da designação grega e latina dos deuses celestes “contida nos nomes de Zeus, Diespiter, etc., tal como no nome etrusco de Júpiter, Tinia” (Otto, p. 28). O que quer dizer que “titã” seria o termo apropriado para a evocação da divindade em suas formas divinas pré-olímpicas, ou seja: uma atribuição à coletividade ou a generalidade do Divino Primitivo. A inversão do significado, vertido num sentido de “selvagem”, “obstinado” e “mau”, em conformidade com as forças caóticas da Natureza, deverá ser identificada com a instalação do panteão indo-europeu dos aqueus por sobre a religião naturalista e sensualista da civilização egeia da Era do Bronze, autóctone em sua forma mediterrânea, mas sobrecarregada de motivos orientais e egípcios decorrentes do antiquíssimo caldeirão mitológico multimilenário do Oriente Próximo.

Tal religião mediterrânea pelásgica, na qual imperaram os titãs, é descrita por Graves como originariamente desprovida de um verdadeiro panteão de deuses e provida de um culto à deusa universal, com suas sacerdotisas. Essa deusa era identificada com a Lua visível e, como vimos, era chamada “Eurínome” (“vasta perambulação”), análoga da suméria “Iahu”, ou “a pomba exaltada”. Eurínome teria se erguido do Mar, elevado o Céu e afundado Bóreas no Abismo, criando o espaço, os Ares, para a origem do Mundo através da eclosão do Ovo Cósmico que ela, sob a forma de pomba, fertilizou, botou e chocou. Nessa religião, transbordante de inúmeros daemons e de espíritos ligados a todos os aspectos da natureza, os titãs são vistos como obra de Eurínome, a qual fundara os Sete Poderes Planetários (Sol, Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter, Vênus e Saturno), regidos, cada qual, por um titã e por uma titânide. Correspondem, pois, aos e governam os Sete Dias da semana sagrada planetária. Com a dominação do panteão aqueu, o culto aos titãs foi abolido e a semana de sete dias foi substituída por um princípio vinculado ao número doze, segundo os doze signos do Zodíaco.

Eurínome teria se erguido do Mar, elevado o Céu e afundado Bóreas no Abismo…

No Mito babilônico os governantes planetários dos dias da semana eram masculinos; no Mito celta, tomado emprestado do Mediterrâneo oriental, três dos poderes planetários eram governados por titânides, não titãs. Na Grécia pré-helênica, provavelmente para corresponder ao culto à deusa, todos os poderes planetários foram vinculados a uma titânide, assim como a um titã. Os titãs, ou o divino pelásgico, sob os auspícios da chamada “Deusa Branca”, correspondiam, segundo os poderes planetários do Tempo, a sete princípios reguladores da ordem do Mundo: iluminação, encantamento, crescimento, sabedoria, justiça, amor e paz, respectivamente.

É importante notar como tudo, aqui, está centrado no corpo cósmico da deusa e como se preservaram motivos da Grande Caçada no pelásgico, conservando na deusa algo qualidade criadora da geração autônoma e ativa de todas as criaturas — uma imagem latente nos mitologemas arcaicos residuais de “Iahu” e do Ovo Universal. Desde o neolítico e da Revolução Agrícola, sobretudo nas civilizações do Crescente, a deusa passou a um lugar de passividade, como o corpo inerte da Terra a ser inseminado pelo Céu, como as Águas Superiores (masculinas — doces [Apsu]) sobre as Águas Inferiores (femininas — salgadas [Tehom]), sendo o Céu um deus e a contraparte ativa e fertilizante sem a qual a Terra permanece Matéria-Prima (Tohu e Bohu). Razão pela qual os caldeus evocam na sua cosmogonia o intercurso entre Apsu, o Céu, ou os Limites, e Tiamat, as Águas Inferiores, tanto para a estruturação do Cosmos, quanto para a geração das criaturas primevas — entre os gregos, Urano e Geia. A imposição de motivos semíticos pastoris e patriarcais por sobre esse substrato recupera algo da qualidade primeira da deusa, o dragão-fêmea que gera de si, sob o regime do Caos noturno e desgovernado, as formas mais monstruosas, como o grande demônio Quingu, rebento de Tiamat, a ser abatido pelas flechas de Vento do primogênito dos deuses, Marduque, o deus-Sol, que também abate Tiamat, desde o corpo da qual estabelece a ordem do Cosmos, donde sua legitimidade enquanto o governante do Submundo, da Terra e do Céu. Similar à precessão de hierarquias míticas dos gregos, do conflito de Saturno com Urano, de Zeus com Saturno e de Zeus com todos os titãs — porque, dirá Graves, muitos de seus motivos são herança caldaica.

… o Mito aqueu é a expressão mítica da conquista de Zeus por sobre os “grandes” da religião autóctone pelásgica…

O conflito dos olimpianos contra os titãs redunda no seu aprisionamento por Zeus em uma prisão nos Ínferos. Do ponto de vista mítico, Zeus, ao destronar os “reis”, os “grandes da Antiguidade”, absorve todas as suas virtudes. Essa absorção em si, como que por engolimento, de todos os Sete Poderes Planetários da Semana implica em uma transcendentalização de Zeus enquanto Theós, enquanto o próprio Olimpo ou o Céu (Zeùs Ouránios), representativo da coletividade do Divino e vetor da Ordem do Mundo. Não se ignore que Zeus é o próprio Júpiter, ou Pai Dia dos indo-europeus, e o próprio termo “Zeus” é análogo ao “Theós” enquanto uma qualificação genérica de qualquer manifestação de radiância e de esplendor do Divino no mundo dos particulares sensíveis e das virtudes humanas — o que foi narrado no Mito aqueu é a expressão mítica da conquista de Zeus por sobre os “grandes” da religião autóctone pelásgica, processo narrativo pelo qual ele adquiriu qualidades mais precisas e mais pessoais, desdobradas a partir de sua qualidade ontológica prévia, de ser o Divino per se. Mui naturalmente Zeus, conquistador dos Sete Poderes Planetários da Semana, passou a ser imaginado com os bustos representativos dos Sete Poderes (Zeus Helipolitano), entendido por Quintis Valerius Soranus, de Roma, como Júpiter transcendente e aludido nos Sete Pilares Planetários de Esparta. Conserva a qualidade do número Sete, como totalidade do Tempo e dos princípios da ordem, mesmo que os gregos o tenham substituído formalmente pelo Doze zodiacal, um símbolo mais expressivo do Tempo cósmico, o qual inclui os Sete Planetas.

Ambas as qualidades transparecem em YHWH, cuja transcendência está associada à posse dos Sete Poderes Planetários da Semana, representados no Templo pela Menorá e pelos Sete Pilares da Sabedoria, e do Doze zodiacal, bem marcado em todo o simbolismo referente às Tribos de Israel. O Zodíaco, “Zodiakos Kyklos”, ou “O Círculo dos Animais”, é fartamente identificado com o próprio Trono de Deus no Céu, conforme o diz Odon Vallet (Jesus e Buda) a respeito das presenças angelicais teriomórficas em Seu Trono, presentes nas descrições do mesmo nos profetas Ezequiel (Ez 1) e João (Ap 4) — no caso da Visão de João de Patmos, acrescente-se a presença dos Sete Espíritos de Deus, as Sete Estrelas, que são o Candelabro que está diante do Trono, os Sete Poderes que o Cordeiro Imolado absorve através dos méritos de Sua Vitória sobre o Inferno e que aparecem em sua face como Sete Olhos e, em sua cabeça, como Sete Chifres. A Visão de João é do Templo Celestial, cujo éctipo estava no Templo Salomônico de Jerusalém, em Sião, cuja arquitetura e mobília replicavam a cosmogonia apresentada a Moisés no Monte Sinai, inscrita em Gênesis 1, redundando num cosmion, ou em uma síntese prototípica da cosmologia, com o teto simbolizando o Céu. O profeta Isaías, não por outro motivo, viu o teto do templo se abrindo diretamente para o Terceiro Céu, onde vislumbrou o Trono do Senhor e se viu cercado dos Sete Espíritos, que são os Serafim — lembremos, com corroboração de Jó, que os anjos eram comumente entendidos como estrelas. De Enoque também é dito que teve uma Visão no teto do Templo: divisou ali uma senda, um verdadeiro caminho de estrelas, um caminho que seguia pelo comprimento do Santuário até o Santíssimo, onde está o Trono do Deus Invisível no Eterno e dentro do qual, é dito fartamente na literatura judaica, o sumo sacerdote era um com a multidão de anjos que rodeiam o Trono. De tudo isso, que se sustente a imagem do Trono disposto diretamente acima das hostes angelicais e do Círculo dos Animais, que é o Caminho das Estrelas, como demonstrativo de Seu poder absoluto sobre o Cosmos.

… o Trono disposto diretamente acima das hostes angelicais e do Círculo dos Animais, que é o Caminho das Estrelas…

Na base da Menorá que está esculpida no Arco do Triunfo de Tito, em Roma, jaz o relevo de pequenos painéis com monstros marinhos. Robert Graves (Mitologia Hebraica) argumentou que os motivos decorativos da Menorá dos macabeus devem ter existido já na Menorá salomônica e, segundo a sua interpretação, neles devem estar indicados, nos monstros marinhos divisados no Arco de Tito, os Seis “titãs” que YHWH subjugou antes de iniciar a Criação. Esses painéis trazem: dois Leviatãs — a Serpente Enganadora e a Serpente Má -, criaturas com rabos de peixe e cabeças felinas — os Grandes Dragões de Gênesis 1:21 -, o dragão Rahab e um monstro indistinto, provavelmente Tehom ou Efes. Numa outra seção dessa Menorá aparece Um par de querubins (o Sete). Isso nos aproxima ainda mais do motivo aqueu da “absorção” de Zeus dos Sete Poderes, corroborando a ideia de uma transmissão oriental e egípcia, passando por Israel, desse motivo, até a sua chegada aos gregos. A transcendência absoluta de YHWH se sustenta nesse domínio, assim como no Trono Cósmico, porque esses Sete Poderes são descritos em Zacarias 4:10 como “os olhos de YHWH [os Sete Planetas] que percorrem todo o universo”, estando de fato como os Sete Olhos do Cordeiro de Deus, no Apocalipse.

Repete-se, enfim, o outrora já demonstrado: que a vitória de YHWH sobre Tehom e seus rebentos aparece, nas mais antigas tradições, como a narrativa de Sua conquista da soberania absoluta sobre o Submundo, a Terra e o Céu. Aqui está refletida a tradição babilônia que remete à luta de El contra Tiamat, com o diferencial compatível com o nível de sofisticação da reforma mosaica de Tiamat (tehom), Caos (tohu va-bohu) e Trevas (choshech) aparecerem como abstrações amorfas, despidas de qualquer aura divinal e dispostas tão somente como a Matéria-Prima da ação criadora de YHWH-El, o Eterno. Segundo Graves, arcaicas divindades cosmogônicas e cosmológicas de matiz feminino, tornadas Nada. Não se ignora, por outro lado, que diversos motivos mitológicos orientais e egípcios devem ter adentrado e permanecido no imaginário hebreu pré-mosaico, sendo resgatados por figuras como os salmistas e os profetas como apelos imagéticos de algo valor vocativo, prenhes de sentido metafísico, porque apelos simbólicos. De todo o modo, tal como ocorrera com Zeus entre os pelasgos, o Mito não se presta a contar a biografia “literal” da divindade, tampouco descreve o seu processo evolutivo, servindo mais para justificar a sua condição teológica prévia nos termos da ordem do Cosmos. Isso nos quer dizer que a presença dos mitologemas relativos ao combate de YHWH contra os Monstros do Oceano Primordial e do Caos não indicam uma necessária aderência hebreia à crença de que YHWH-El alguma vez não tenha sido onipotente e transcendental e que literalmente conquistou esse posto, pelo contrário: é pressuposto que YHWH-El fosse já onipotente e transcendental para demandar o Mito que justificasse a crença — nem tanto para dizer o que Ele fez, mas, principalmente, quem Ele É. O mesmo princípio, por conseguinte, com relação a Zeus, Júpiter e Theós. O Pai Dia dos indo-europeus, vertido no Zeus do Mito explicativo de sua absorção de todas as qualidades divinais e reinos cósmicos dos autóctones do Mediterrâneo oriental, foi salvo da progressão natural da divindade criadora de tipo uraniano à condição de “Deus Otiosus”, tão transcendentalizado e distante ao ponto de se tornar inativo — isso ocorreu com El entre os cananitas, por exemplo, que dão a Baal, divindade ativa de matiz atmosférico, o posto de regente do Universo (lembre do que já dissemos de Marduque). Os hebreus, desde Abraão e da reforma mosaica, resgataram e conservaram El no seu lócus uraniano e criador originário, e o Gênesis é o Mito que justifica a Sua monarquia absoluta sobre a Totalidade, através da “história” de Sua conquista do Tehom e do Efes, ou dos Seis Monstros Primitivos — obviamente, para os hebreus, não houve sete qualidades de monstros do Caos -, que é também a “história” de como Ele dominou as divindades cananitas e do Oriente Próximo, derruindo os seus santuários, dilapidando seus ídolos e matando seus profetas e sacerdotes, já tendo, para os hebreus do Êxodo, destronado as divindades egípcias nas Dez Pragas. A narrativa cosmogônica da vitória de YHWH-El, o legítimo “Elohim”, alimentou a imaginação e o fervor de juízes, de reis e de profetas, sustentando as campanhas do Êxodo e da Reconquista e as reformas reais e proféticas do Antigo Testamento contra a idolatria e os inimigos de Deus.

O Mito conta a “história” dos Princípios, o que, para os antigos, não corresponde a uma série de eventos lineares e passados.

O Mito conta a “história” dos Princípios, o que, para os antigos, não corresponde a uma série de eventos lineares e passados. O Mito, ao falar dos Princípios, estabelece a cosmologia e, portanto, os eventos nele narrados refletem os fundamentos perenes e a verdade profunda da Criação — é o Tempo Forte o tempo de sua realização. Por essa razão e a partir do conhecimento dos Princípios, isto é, de quem é YHWH-El e do que é o Mundo, os hebreus da Reconquista atualizaram a história genesíaca no ato de seu avanço contra os pagãos e seus demônios. Um exemplo notável é o da associação dos senhores ciclópicos de Canaã, os filhos de Anaque, ou anaquins, com os Nephilim (Nm 13:33) — do ponto de vista mítico e simbólico, eles eram de fato Nephilim e, como tais, tiranos sobre a Terra Prometida, usurpadores ilegítimos da herança de Abraão. Essa estirpe dos “valentes que houve na antiguidade” e de “homens de fama” aparece em uma carta egípcia do Séc. XIII a.C. na qual eles são descritos como guerreiros cananeus que mediam entre 2,10 e 2,70 metros de altura — de fato, foram encontradas na Transjordânia as ossadas de duas mulheres do Séc. XII a.C. com cerca de 2,10 metros. Golias era um anaquim, mas também um nephilim!

… são descritos como guerreiros cananeus que mediam entre 2,10 e 2,70 metros de altura…

Os descendentes de Anaque foram chamados também de hurrianos e foram citados em Deuteronômio 2:11, Josué 15:14 e 2 Samuel 21:16–22 — este último texto é especialmente interessante, pois fala do abate por Davi de um gigante com seis dedos nos pés e nas mãos (não se ignore a presença do número Seis). Em Deuteronômio 2:10 fala-se dos emins ou refains como sendo um povo ancestral de gigantes, ou Nephilim, habitantes da região de Ar, sendo considerada essa a casa ancestral dos gigantes do Mundo Antigo — no tempo da redação de Deuteronômio, assim como no tempo do retorno dos hebreus à Canaã, já eram considerados extintos, de glória passada, tendo deixado para trás resquícios, marcos geográficos e ruínas que foram identificadas como suas antigas moradas. Uma vez que falamos de moradas ou sepulturas de Nephilim em marcos geográficos e tumbas megalíticas, devemos considerar o divisado pelos israelitas nas redondezas de Ar dentro da imagética da prisão dos Caídos de Gênesis 6 no Submundo, quando do Dilúvio. A nota arqueológica de Deuteronômio 2:10 é importante para a sustentação da recapitulação, através do Seu Povo, do combate de YHWH-El com os Nephilim antediluvianos e de como, derrubados os ciclopes de seis dedos, YHWH-El impõe Seu domínio universal em Canaã, absorvendo em Si, como no Mito, os Sete Espíritos — sito é: a soberania absoluta. Os Nephilim de Canaã são, no Mito, os Nephilim do pré-Dilúvio que, por sua vez, são como os Seis Monstros do Abismo, o que torna a Reconquista de Canaã uma atualização ritual, através da Guerra, que miticamente é uma Guerra Cósmica, do Tempo Forte e da Cosmogonia. Seu análogo, da qual é tipo, será a Grande Guerra Santa da Escatologia, a qual repete o Mito genesíaco do Batalha Cósmica contra os Nephilim (Is 24:21–23, Ez 32:21 e 27, 2 Pe 2:4, Jd 5 e Ap 20:1–3). Doutro modo: como com os Titãs, os Nephilim são representativos dos deuses demoníacos do Mundo Antigo, do Caos, rebentos da Antiga Serpente do Mar (Is 27:1), portanto, a vitória de YHWH-El sobre eles no pré-Dilúvio, na Reconquista e nos Últimos Dias é a vitória de Deus sobre os deuses ou as potestades espirituais, manifestadas política e religiosamente por meio de tiranos e anticristos em todos os tempos e definidoras do “sistema de trevas do Mundo” ao longo de todas as eras.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 11 de agosto de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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