Os Rudimentos do Mundo e o Sono dos Gentios

Uma análise geral de uma doutrina paulina

Natanael Pedro Castoldi
10 min readJan 16, 2024

O apóstolo Paulo, na apresentação de sua doutrina quando da pregação aos gentios, parece apresentar uma equivalência entre a Lei e o sistema litúrgico judeu e a ética e certos rigores religiosos pagãos, como preparações pré-cristãs ao desvelamento do Eschatos, o Cristo. Aparente nas argumentações de Colossenses 2 e de Romanos 1 e 2, está bastante clara em Gálatas 4:3, numa expressão expressão técnica que se repete outras vezes em Gálatas e em Colossenses: “rudimentos do mundo” (stoicheion). Por “rudimentos do mundo”, deve-se pensar nos princípios estruturantes de um tipo de filosofia ou de sistema religioso, aplicado por Paulo para a Lei e o sistema litúrgico israelita, como também para filosofias, ascetismos e doutrinas religiosas gentílicas predecessoras do Messias, que vigoraram no tempo da ignorância enquanto “paidagōgos”, formando a consciência moral e a disposição religiosa com as quais os judeus e os gentios foram descobertos quando da Plenitude dos Tempos. Esse é o exato sentido de “stoixeíon”, conforme o Strong, com a problemática de que, entre os gentios, esses rudimentos estavam vinculados a e guardados por deuses. Deus, todavia, não toma em conta esse tempo de ignorância idólatra, oferecendo o Seu Filho ao Mundo para que os gentios virtuosos, que já haviam desnudado sua ética e de sua filosofia dos deuses, depois de tanto tatear no escuro à cata do Deus Verdadeiro, finalmente O pudessem encontrar em Cristo Jesus.

Nesse sentido, o apóstolo Paulo de Atos 17 parece assumir os filósofos atenienses, em especial os platônicos e estoicos, como tendo atingido o limite do Intelecto, ou da razão humana, e da Sabedoria disponível ao homem natural, comprovada pela sua robusta doutrina moral. Ainda assim, ele prossegue, não estavam satisfeitos ou plenamente seguros, na medida em que o monoteísmo cósmico ao qual chegaram por dedução não lhes dava mais do que uma abstração, ou um conceito de divindade criadora inominável, impessoal e pouco apelativa aos ávidos escrúpulos morais, que não se justificavam ou sustentavam de todo, como bem sabiam os epicureus. O Deus Desconhecido, estabelecido em Atenas desde o tempo de Epimênides, continuava sendo o horizonte último. E se o Deus Criador, doutrina já discutida entre os atenienses, não podia ser Ele mesmo feitura da imaginação humana, traduzida em artifício de metal e pedra, deveria, pois, ser Aquele que a Si mesmo se apresentou à humanidade, Encarnado como Homem, por isso não obra de imaginação humana, e Ressurreto em Corpo Glorioso. Note: o argumento de Atos 17 é uma elucidação paulina dos caminhos internos da vanguarda do pensamento gentílico até os umbrais do Evangelho, por meio da Razão, da mesma maneira que os judeus foram apresentados ao Mistério de Deus através da Lei, de todo o drama litúrgico do Templo e dos Profetas, que vislumbraram claramente o Messias — ou seja, por meio da Revelação. Ambos, gentios e judeus, conquanto por vias distintas, mas no escopo dos “rudimentos do mundo”, chegaram à soleira do Reino.

Romanos 11, especialmente ao final, deixa claro que o Mistério de Deus em Cristo estava escondido no coração da Lei, e que nela permanecera oculto aos judeus, como que inapreensível, para ser revelado apenas na Plenitude dos Tempos, quando o fundamento de Fé pela Graça, que é o esteio da Lei, foi tornado conhecido em Cristo Jesus, na Sua Morte e na Sua Ressurreição. Noutro sentido: a Lei, que é tal como conhecida pelos judeus no tempo da ignorância, sempre fora incompleta e, enquanto rudimento ou sistema de tipo farisaico, tinha por princípio a sua prática integral — o que significa que era efetivamente impraticável. A falha em um ponto, como Paulo demonstra em Gálatas 5, representava a quebra de toda a Aliança firmada com Deus, da mesma maneira que a aderência à Aliança por meio de uma só prática, como a circuncisão, pela qual se firmava o pacto integral com Deus, implicava no imediato imperativo de obediência a todos os mais de seiscentos preceitos — donde a sua necessária função pedagógica, por assim dizer, na imposição ao homem do conhecimento inequívoco de sua natureza falha, imunda e terrivelmente pecadora e na subsequente geração de uma ardente expectativa de salvação de si mesmo, o que implica numa transformação sobrenatural de sua natureza.

… “voltar à escravidão”, já tendo sido liberto por Cristo pela Fé e através da Graça, é recair numa condição que só tem um curso possível: o do Juízo de Morte, negada a Cruz.

Para o judeu do tempo do rudimento, os sacrifícios no Templo eram retificações possíveis e relativas à transgressão da Lei, e eram de fato ligeiramente efetivos por sua conexão ontológica ou espiritual, de tipo tipológico, com a eficácia garantida do vindouro Sacrifício de Cristo, conhecido “desde antes da fundação do Mundo” (1 Pe 1:19–20). Todavia, sendo todo o sistema litúrgico do Templo uma sombra da redenção cabal no Salvador, veículo da Graça pela qual o “escrito de dívida”, pautado na impraticabilidade da Lei, é pago, uma vez que Cristo é Revelado e Morto na Cruz como o Sacrifício por excelência, tipificado pelos sacrifícios veterotestamentários, seus ecos tênues, não resta eficácia soteriológica alguma no sistema litúrgico israelita. Note: do conhecimento ao Mundo do Cordeiro de Deus, Ele estando efetivamente presente aos olhos da humanidade, não há mais sombra ou tipo e não há meios paliativos ou alternativos de expiação relativa que continuem válidos. Por essa razão, tendo sido Deus Filho revelado, a aderência à Lei por meio da circuncisão por mãos humanas impõe ao indivíduo um compromisso de pacto com o Senhor que, impraticável, deve ser consumado sem erro algum, uma vez que não há meios expiatórios eficazes dentro do rudimento judeu que possam retificar a transgressão da Lei, como era “possível” antes de Jesus e por cumulação no Seu Sacrifício futuro, ocorrido de uma vez por todas. Por conseguinte, “voltar à escravidão”, já tendo sido liberto por Cristo pela Fé e através da Graça, é recair numa condição que só tem um curso possível: o do Juízo de Morte, negada a Cruz.

Veja bem: Jesus Cristo, Morto na Cruz, resgatou-nos da inimizade de Deus e anulou o poder condenatório da Lei, vertendo o Santo Sangue e desviando de nós a vindoura Ira Divina, sepultando-nos com Ele no Sepulcro para que ressuscitemos, pela Fé, com Ele de entre os mortos. Nesse drama teodiceico, Ele esvaziou o poder dos principados e das potestades, tornando ineficazes os seus reinos e os seus rudimentos, e fez-nos morrer para os rudimentos, ou “princípios do mundo”, para viver, n’Ele, a vida do Reino. Por esse motivo, volver à observação alimentar, à guarda de dias e a toda uma miríade de atos privativos de matiz ascético, semeando na carne ou na aparência para agradar aos homens ou atingir méritos diante de Deus, donde se obscurece a eficácia da Cruz pela atenuação da Fé através da Graça, é voltar a viver no principado dos rudimentos, tornando-nos escravos de suas potestades, nossos velhos senhores, e não mais escravos de Cristo — a semeadura na carne é a semeadura na Morte e na corrupção, naquilo que se gasta pelo uso e que, tendo aparência de sabedoria, não tem efetividade contra aquilo que é de sua própria substância, portanto, toda a vigilância ética e religiosa, quando substitutiva da Fé pela Graça da libertação em Jesus, não tem mais função alguma, e sua única serventia será a satisfação da carne mesma, o que quer dizer, n’última instância, o definhamento devidos à mortalidade, cria do Pecado.

Nota-se que nesse argumento, que está em Colossenses 2, Paulo equivale as práticas ascéticas e certas crenças gentílicas à circuncisão e à aderência as preceitos da Lei — tanto os gentios quanto os judeus tem seus velhos reinos, dos quais foram salvos por Cristo e nos quais podem ser novamente encerrados, se foram mais uma vez seduzidos pelas suas aparências. De fato, pode-se sugerir que, com a revelação do Eschatos, a Lei já não ostenta superioridade ontológica frente aos rudimentos dos gentios, e mesmo a sua sabedoria já não parece superar a deles — não é de surpreender que Paulo considera os rudimentos dos gentios, aqueles conhecidos pelos gálatas, nos mesmos termos que considera os rudimentos dos judeus: tutores para meninos, assenhorando-se deles até o tempo da maturidade, quando da chegada da Plenitude da Vida, que é análoga à Plenitude dos Tempos, e o homem já pode ser livre das amarras disciplinadoras de seu pedagogo. Reitera-se: chegada a maturidade e ofertada a liberdade, a sua negação em favor da conservação nos domínios do tutor, já superada a época da indulgente ingenuidade infantil, é um ingresso na condição degradante de escravo de tirano.

… se a questão está no marcador físico, então os pagãos são melhores do que eles!

O mais surpreendente da exposição paulina em Gálatas 5 é a indicação de que aqueles gentios que, por temerem a sina da perseguição ou da Cruz de Cristo, se permitem persuadir pelos judaizantes e aderir à circuncisão, conforme são cortados fisicamente, são também “cortados da corrida” (v. 7). Verdadeiramente, a aderência à Antiga Aliança é uma efetiva ruptura com a Nova, porque por ela se nega a Cruz, preferindo a sombra à realidade. Caem da Graça, separados de Cristo (v. 4), como já caídos estão os que os “inquietam”. Nesse ponto, o apóstolo tece uma provocação tremenda: estes circuncisos que procuram circuncidar os gentios, na medida em que se ocupavam em semear na carne, ou no corpo, que se espelhassem nos sacerdotes pagãos da Frígia, junto da Galácia, que arrancavam de todo os seus g3nit41s em honra do serviço de Cibele — porque se a questão está no marcador físico, então os pagãos são melhores do que eles! Eis é o pano de fundo que Barclay impõe ao versículo 12.

Eu penso que podemos identificar nessa exposição doutrinária de Paulo o motivo que está presente em Hebreus 10: uma vez que o Sacrifício de Cristo é derradeiro, realizando como forma ou realidade os tipos e sombras sacrificiais da liturgia levítica, a semeadura na carne, ou o retorno aos “rudimentos do mundo”, já que nega a Cruz, põe o sujeito sob um incorrigível decreto de condenação — não há absolutamente nada mais a ser feito por ele, porque o sistema sacrificial antigo é de todo inepto e o Sangue Santo de Jesus foi negado. Esse é dos que se “cortam” da congregação e que caem, pois, numa condição de endurecimento. Tal endurecimento deve ser similar ao descrito por Paulo em Romanos 11, quando da discussão ao redor da rejeição de Israel ao Evangelho — chegou a tomar conhecimento do Cristo e O rejeitou, por isso agora é posto por Deus numa condição de cegueira e de sonolência espirituais irreversíveis, até o atingimento escatológico da “medida dos gentios”, quando Israel será novamente despertado por Deus, nos momentos finais da Era, para que se arrependa.

Se esses gentios que, enxertados na videira abraâmica em lugar de Israel, caíram, estão sendo postos no mesmo sono espiritual que os judeus, como parte da Israel endurecida, e se com eles conhecerão um despertamento no final, é uma questão que conservo em aberto, porque só Deus o sabe. O fato é que se foram removidos os ramos originais da videira, com mais facilidade serão removidos os ramos de espinheiro que foram nela enxertados! Como são eles removidos, ou cortados? Quando, cortados na carne, ou reinseridos nos rudimentos do mundo, negam a Cruz.

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Uma das prerrogativas dos judaizantes, baseada na distorção de uma verdade, era a da superioridade da cultura e da religião judaicas, assim como da nação de Israel, frente aos gentios, sua cultura e suas doutrinas. Essa autopercepção deu a tônica do gênio judeu e de seu exclusivismo, que soube sustentar Jerusalém como mais sagrada do que Roma, “Babilônia”, e fazer frente multissecular a um povo de gênio similarmente obstinado: os romanos. De fato, o povo de Israel era eleito e, segundo a tradição, recebeu a Lei e firmou Aliança com Deus quando todos os povos da Terra O haviam rejeitado, donde o seu acesso primeiro e privilegiado a uma parte substancial da Verdade. Mas os judeus não puderam antecipar algo do Mistério de Deus escondido na Lei e na fronteira da Aliança Mosaica: a de que a Aliança com Abraão, o Pai da Fé, pela qual todas as famílias da Terra seriam abençoadas e que faria de Sião e do Filho de Davi, o Messias, o eixo ao redor do qual as nações orbitariam, pois sedentas de Sabedoria, se cumpria em Cristo Jesus e desde o acréscimo dos gentios, objetos da Graça pela Fé. Por não lhe ser dado discernir esse Mistério, Israel, o último a receber a oferta da Antiga Aliança e o primeiro a receber a oferta da Nova, rejeitou o Evangelho, e os gentios, os primeiros a receber a oferta da Antiga Aliança, estavam ingressando no Reino através da aderência à Nova, em lugar de Israel.

Para os judaizantes, essa preferência por Israel, ou essa oferta do Evangelho primeiro aos judeus, significava que o gentio deveria, primeiro, tornar-se judeu para, então, estar apto a receber o Evangelho. Muitos cristãos gentios, vindos do paganismo, estavam sendo convencidos à conversão ao judaísmo para a aquisição de uma “fé completa” e justificada. Isso também bebia da visão supracitada, de que a fonte ou o tipo de rudimento do qual saíram os cristãos gentios era insubstancial, muitíssimo inferior ao judaísmo e, por conseguinte, um ponto de partida ilegítimo — que se fosse primeiro judeu para depois ser verdadeiramente cristão. Contra isso, o apóstolo Paulo defende um certo nível de equivalência entre os rudimentos pagãos e judeus, com o zênite em Atos 17: as vanguardas dos sábios pagãos chegara, pela via da filosofia, a uma apreensão notável da porção de Verdade acessível através da razão natural, ou do Intelecto, e desenvolveu doutrinas filosóficas e sistemas éticos altamente sofisticados, que lhes servem, como a Lei e a liturgia salomônica aos judeus, como legítimos tutores para a chegada aos umbrais do Evangelho, na Plenitude dos Tempos. Noutras palavras: Paulo defende a legitimidade própria da sabedoria gentílica e de sua preparação moral e religiosa, de maneira que não é necessário ao gentio que parta do mesmo rudimento do qual partem os judeus. Se observe que ambos os pontos de partida, sombras ou tipos da Realidade, que é o Corpo de Cristo, são, conquanto legítimos, igualmente descartáveis enquanto fundamentos de vida, quando da revelação do Eschatos.

Textos de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook em 16 de janeiro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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