Pandemia e Crise Espiritual
Afrodite Pandêmia no Mundo Moderno
É de conhecimento geral que uma doença viral não é apenas física: quando o corpo humano declina, a luta para manter a saúde mental se intensifica. Somos, como já disse Viktor Frankl (2019), uma Unitas Multiplex, uma multiplicidade una: corpo, psique e espírito. As duas “camadas” primeiras são autorreferentes, ou seja: o corpo priorizará a própria sobrevivência e a satisfação de seus apetites, mesmo que isso custe a saúde mental e, de semelhante modo, certo bem estar psicológico se quererá, ainda quando o corpo físico é agredido no processo. Em nossos espectros somático e anímico, portanto, somos cindidos, polarizamos entre dois entes que antagonizam entre si. Mas não sucumbimos, pois, não sendo animais, somos espírito. O espírito é compreensivo e autotranscendente: é aquela faculdade que consegue conjugar corpo e mente, rompendo o conflito em função de um propósito maior e mais significativo, exterior e superior ao indivíduo mesmo. É por sermos espirituais que podemos optar por não satisfazer nossas necessidades físicas e certos prazeres psicológicos em favor do sacrifício por outrem ou no empreendimento de tarefas construtivas, realizadoras. A totalidade do homem, a unidade dessas camadas, é o que podemos tomar por Self e aquilo que Dooyeweerd (KALSBEEK, 2019) chamará de Coração, que é a inteireza do homem, unívoco em toda a sua multiplicidade estrutural e aberto “no teto”, para a Transcendência, donde encontrará significado para si e integração para o Self. Toda a doença que acomete o corpo, portanto, abala o anímico e, também, o espírito. Sempre nos abalamos enquanto pessoas completas.
Michael Eigen (2016), psicólogo americano, acrescenta que somos constituídos de outras duas qualidades: temos em nós uma pulsão individualizante, que possibilita que falemos a nosso próprio respeito nos termos de um “eu”, mas também temos uma pulsão coletivizante, donde nossa sociabilidade visceral e inescapável. Jonathan Haidt (2020), outro psicólogo americano, descreverá isso nos termos de um “macaco abelha”: somos indivíduos, mas também somos colmeia. Foi observado que essa pulsão de “colmeia” é ativada em momentos de elevada tensão coletiva, como entre os soldados em um campo de batalha: a consciência de si é amortecida em favor de uma conexão intensa com os colegas de farda, de maneira que o pelotão passa a se comportar como um organismo e o sacrifício pessoal é natural. Isso significa que a doença é, também, um fenômeno social, de psique coletiva, principalmente quando a mesma doença atinge todos — esse é o significado exato de pandemia (pan-todo; demos-povo). Eventos de grande escala são contagiantes e o contágio psicológico é mais rápido do que o próprio contágio viral, já que as notícias e as narrativas nos chegaram muito antes do vírus mesmo. Não há, portanto, doença que não afete o indivíduo inteiro, tal como não há doença generalizada que não abale a própria estrutura espiritual da sociedade.
A Peste é uma imagem e uma realidade que assolou o Ocidente inúmeras vezes nos últimos dois milênios. Tanto é que assumiu nome maiúsculo, quase como uma entidade, desde a Peste Negra (séc. XIV), que devastou entre trinta e sessenta por cento da população europeia de então. Na ocasião, carecendo de explicações empíricas, os cristãos europeus só conseguiram entender o alastramento da moléstia em termos espirituais: juízo divino e/ou ação do Império de Satã através de não-cristãos e, sobretudo, de bruxas. Esse entendimento já estava antecipado no Apocalipse de João, quando o Cavalo Amarelo traz consigo peste e morte. A velocidade de alastramento da Peste não podia ser descrita em termos diversos desses: ela vem à galope, engolindo as terras sem descanso, varrendo o mundo sem trégua, como que contra o próprio Tempo. Desde a Peste Negra, outros surtos epidêmicos europeus foram acontecendo ao longo dos séculos e todos acabaram entendidos como retornos da Peste, desse demônio vil que, depois de ter chegado uma primeira vez, jamais abandonou o Velho Mundo. Delumeau (2009), ao descrever a Peste na Europa dentro de sua história do medo no Ocidente, apontou para o terror coletivo que era instaurado assim que a sombra do Mal começava a se reerguer: quando uma cidade infectada era posta em quarentena, os que podiam escapar de seus muros em tempo, o faziam, mas muitos eram recebidos à tiros nas aldeias interioranas, que temiam que os fugidos da Peste estivessem contaminados; os que ficavam aprisionados nas cidades iam se brutalizando, mantendo distâncias entre si e morrendo em suas casas; muitos mortos eram deixados em seus leitos e as casas eram isoladas, outros eram empilhados nas ruas, até serem recolhidos por carroças e levados à valas, onde eram enterrados. A descrição desses horrores mostra como a Peste, em sua ameaça mortal e estimulada pela agitação coletiva, vergava o espírito dos homens: matava primeiro a hospitalidade, pois os citadinos fugidos eram mortos por camponeses, depois deixava os mortos com um mínimo cuidado cristão, abandonados e empilhados. Há relatos de pessoas contaminadas que enterraram a si mesmas. O impacto psicológico, espiritual e cultural da Peste foi tão grande no continente europeu, que em muitas cidades viram erguidos os Pilares da Peste: estruturas esculturais que continham os bubões, que a Peste causava na pele dos homens, abaixo de uma figura sacra, como Maria, sinalizando o clamor pelo cuidado divino e maternal para os fiéis em tempos de cataclisma.
Vimos acima como a Peste, atingindo os corpos, acaba curvando os espíritos dos indivíduos e das comunidades. Mas o processo pode também ser inverso: em nosso tempo ocorreu de o homem já estar espiritualmente fragilizado antes de o Vírus crescer. Aqui as consequências podem ser ainda piores, pois o tipo de homem que enfrenta o Vírus hoje é diferente daquele que, no passado, enfrentou a Peste: enquanto este realizou procissões litúrgicas dentro de cidades em quarentena, visando consagrá-las para o Senhor e clamar pela piedade divina, aquele tem achado natural que os serviços religiosos sejam as primeiras coisas dispensáveis; enquanto este fazia todo o esforço para, apesar de todas as dificuldades, honrar aos seus mortos enterrando-os sob a terra, aquele tem achando normal que seus doentes sejam isolados de todo o contato humano e familiar e que, sedados, morram sem dignidades cristãs. Aqui reside o questionamento de Agamben (2020):
Como pudemos aceitar, apenas em nome de um risco que não era possível precisar, que as pessoas que nos são queridas e que seres humanos em geral não somente morressem sozinhos, mas que — coisa que jamais tinha acontecido na história, desde Antígona até hoje — seus cadáveres fossem queimados sem um funeral? — p. 25
A maneira como o homem contemporâneo lidou com a Pandemia só é explicável por meio de uma leitura de sua deterioração espiritual em favor de uma crescente e generalizada estimulação dos apelos mais elementares de seu corpo e de suas emoções e desejos. Kierkegaard (FARAGO; ALVES, 2011), filósofo dinamarquês, classificou em três os estágios da existência: Estético (quando o homem é movido pelos apelos mais vulgares do baixo ventre, estando às voltas com estímulos fisiológicos [é o consumista, viciado em entretenimento, em sexo e em álcool]), Ético (quando o homem se preocupa com sua posição no mundo, com sua relação com os outros e opta por um caminho moral, cumprindo seu dever com a sociedade) e Religioso (quando o homem, atingindo uma base transcendental para a pensar sua vida, lê seu comportamento não mais nos termos de obediência ou desobediência à lei dos homens, mas de obediência a Deus ou pecado — aqui ele já é capaz de desobedecer aos homens quando a vontade humana é contrária à do Senhor). Esses três estágios se parecem bem com o que dizem Brito e Swait (2014) a respeito dos apetites da Carne, dos apetites da Alma e dos apetites do Espírito. Tudo parece indicar que o ocidental pandêmico vem de décadas sendo anestesiado em seus apetites espirituais e hiperestimulado em seus apetites carnais, acabando por aprisionar-se no estágio Estético. Como esse processo aconteceu? Serei maximamente sucinto.
A mentalidade ocidental mudou dramaticamente a partir da implementação do espírito racionalista, primeiro na filosofia, depois na ciência e na política e, enfim, na cultura. Oakeshott (2016) qualificou o racionalismo como uma ruptura com tudo o que é tradicional, com tudo aquilo que não foi testado por um método lógico. Além disso, o racionalismo, pois metodológico, se interessa obsessivamente por resolver problemas — precisa, portanto, de um meio de encontrar (ou criar) problemas, de um método para saná-los e de um ideal que se pretenda atingir. Do racionalismo nasceram as ideologias que conhecemos, produtos de um esquema ideal abstrato a ser concretizado pela práxis política. Em geral, essas ideologias pensam em mundos sem dor e sofrimento e com máximos prazeres. Becker (1995) encontrará essa transformação no Iluminismo: rompida a sociedade tradicional, que contava com matrizes transcendentais de sentido, um Outro Mundo espiritual, donde se legitimava a totalidade da vida secular, entrou-se na “era da razão”, na qual o indivíduo se viu desprovido dessas narrativas coletivas significativas — o mundo sem transcendência se torna um emaranhado de fenômenos caóticos, vazios e aterrorizantes, ou seja, um oceano de problemas. O espírito racionalista é, portanto, horizontalizante: quer impor uma ordem abstrata e lógica num cenário de caos e miséria, remanejando o mundo material de uma maneira ótima e a partir da equação perfeita. Isso impregnou os indivíduos, já deslocados do coletivo e de seus mitos aglutinadores e isolados em si mesmos. Assumindo a mentalidade racionalista, o homem ocidental, moderno, não tem mais transcendência, embora esteja embebido de uma visão do mundo e de si como um problema a ser resolvido. Ele quererá uma vida ótima, a concretização de um cálculo perfeito no qual os prazeres são maximizados e os sacrifícios e as dores são minimizados. Daí seu enveredamento na doença consumista e no caminho hedonista — pois hedonismo nada mais é do que a busca pelo prazer máximo através da fórmula perfeita (HADJADJ, 2017).
Anda ao lado desse ethos hedonístico, que superficializa o homem e aumenta sua preferência temporal, preso à urgência cada vez maior por prazeres imediatos (HOPPE, 2014), há a semeadura perene do terror crônico. Wim Malgo (1999), citando W. S. Schlamm, já alertou no tempo da Guerra Fria sobre o uso do medo como arma de controle social:
A vontade política e humana dos nossos dias não é formada por convicções ou reconhecimentos, mas pelo medo. Medo, puro medo, medo realmente físico, determina o comportamento pessoal, tanto no ambiente privado, como no ambiente social. Medo do câncer, medo do átomo, medo de conflitos sociais. Medo de bactérias. Medo de Sequestros. Medo de comprimidos e medicamentos. Medo de ser diferente. Medo de ficar velho. Medo dos impostos. Medo de discórdias. Medo de chuva, neve, seca e calor, de gases no ar e mercúrio em frutas, de poluição marítima, de ‘explosão demográfica’ e retrocesso do crescimento populacional. Medo de falhas no automóvel, ‘estado policial’, aparelhos de escuta e novas eleições. Medo — medo puro e ininterrupto.
Esse medo é estimulado, com método e de modo consequente, por todos os ‘meios’. Não se pode abrir um jornal ou ligar um televisor sem encontrar algo que provoca medo. […] Estar ‘informado’, ter ‘bom senso’, ser ‘racional’, significa ter medo. — p. 21–22
Segundo Malgo (1999), se o homem, reduzido espiritualmente, para de temer a Deus, acabará temendo qualquer outra coisa. Agamben (2020) considera a mesma coisa: o homem ocidental foi colocado por seus governos em um estado de exceção permanente ao longo de todas as últimas décadas, de maneira que este passou a tomar a exceção por normalidade e a viver sempre no limite das tensões fisiológicas e psicológicas, perenemente no limiar entre a hipervigilância receosa e o colapso, o pavor e o desespero, bastando um empurrãozinho. Conforme o filósofo italiano, os homens se acostumaram tanto a viver em condições de crise ininterrupta que já nem mais percebem que a sua existência foi reduzida ao biológico, à chamada “vida nua”, perdendo toda a dimensão superior. Isso explica a velocidade com a qual, no menor sinal da chegada do Vírus, entregaram todas as suas liberdades, toda a sua dignidade, toda a sua humanidade, tudo apenas em nome da “segurança”, em nome da sobrevivência dos corpos. Eis a concretização mais literal da somatocracia descrita por Foucault (2021). Eis o que não é uma existência no estágio Religioso: nem mesmo os cristãos, em grande parte, conseguiram dizer não às leis dos homens em favor daquilo que se sabe constar na vontade do Criador. Ao homem pandêmico, outro filósofo italiano, Aldo Valli (2021), chamou de homo timorosus, o homem medroso.
Como bem percebeu Haidt (2020), contudo, o ser humano tem como que um “paladar moral”: Justiça, Cuidado, Lealdade, Autoridade e Santidade. Essas são inclinações morais que todos os homens têm e que precisam suprir, encontrando objetos legítimos para nutri-las. Se eu superenfatizo a Justiça e o Cuidado, tal como faz o progressista na ideia de “justiça social”, criarei um déficit no que diz respeito ao espectro “mais conservador”, ligado à santidade leal sob a autoridade e o temor de Deus e das autoridades instituídas. Uma inclinação moral não satisfeita ficará flutuando sem objeto e será uma paixão moral disponível para ser capitalizada por alguma narrativa política e ideológica (POLANYI, 2003). O homem ocidental, carente de transcendência, de santidade, logo canalizou sua paixão moral flutuante para a Ciência enquanto Religião (a base ontológica) e para a Saúde enquanto Teologia (os dogmas da fé para a práxis). Valli (2021) definiu esse fenômeno pandêmico nos termos de um Despotismo Terapêutico. É despotismo, pois democratura, que é autoritarismo sob uma falsa roupagem de democracia. Nesse cenário, o “homem nu”, alarmado, corre ao Estado para lhe conferir toda a espécie de poderes supraconstitucionais, pondo o regime republicano em suspenso para fins “sanitários”. Em tal contexto, os políticos se fazem médicos e cientistas, enquanto os médicos e os cientistas se transformam em políticos. Em nome da Ciência e pela reta Saúde, os cidadãos, seguindo em Valli (2021), voluntariamente se fizeram súditos — por isso esse regime foi por ele entendido como um despotismo compartilhado. E é Terapêutico por ser todo embasado na sanitização da sociedade, na higienização e esterilização da população. Nesse cenário, o cidadão deve chegar à autoridade pública na persona de um paciente e, como tal, perde a autonomia de questionar os procedimentos médicos que o Estado lhe está impondo. Toda a sociedade virou hospital.
Dr. Dahlke (1999) descreveu a ideia moderna de hospital como herdeira do culto greco-latino a Esculápio, divindade curadora: o hospital substituiu o templo, mas não perdeu a liturgia, nem os sacerdotes e nem os procedimentos cúlticos. Toda a atmosfera hospitalar, de silêncio, de espaço vazio, de sacerdotes e assistentes de semblante severo, serve para calar o paciente, fazendo-o se sentir pequeno e vulnerável para que se entregue aos cuidados sem rebelião e com toda a fé. O paciente, não importa o seu tipo de sofrimento, deve ficar sentado ou deitado e também deve esperar pelos tempos, que são todos regulados por outros, tal como sua alimentação. Quem viu as sombrias cidades vazias da Quarentena, impregnadas de um tipo de terror metafísico, não pôde deixar de pensá-las como imensos hospitais de corredores largos que davam para portas trancadas, dentro das quais as famílias, apavoradas, estavam grudadas nas televisões e ouvindo os especialistas. Aliás, a transformação de especialistas em oráculos públicos é uma das características de Oakeshott (2016) para o modus racionalista.
Valli (2021) de fato observou caracteres religiosos na narrativa pandêmica, que qualificou como dogmatista e fideísta, visto demandar a submissão total do paciente — é mais importante confiar do que entender. A deposição de expectativas religiosas do civil aos pés do Estado ficou clara num detalhe que Valli percebeu: o slogan “Tudo ficará bem”, espalhado pela Itália nas janelas e varandas, vem da mística cristã Juliana de Norwich (1342–1416). A questão é que, tendo a Igreja e seu sacerdócio se alinhado ao Estado e ficado sob sua sombra, o Sagrado deslocou-se para o espectro do Médico-Cientista. Vale notar, como bem destacaram Boukovsky (1976) e os irmãos Medvedev (1972), o Médico e a Medicina, sobretudo a psiquiatria, sob o cetro do Estado soviético, foram fartamente utilizados enquanto instrumentos de poder e de alastramento das prerrogativas do governo totalitário, que sempre é somatocracia. Um sistema similar de silenciamento de opiniões adversas foi implementado na Itália pandêmica: a caça às bruxas, ou às “notícias falsas” e seus heréticos disseminadores, foi, e é, procedimento dignificado com todos os méritos.
Acrescento às leituras de Agamben e de Valli um terceiro elemento, conforme o que temos discutido em Haidt e Polanyi: com seu paladar moral atrofiado, o homem ocidental carrega uma carência enorme de satisfação cívica e espiritual — seu espírito está doente (estágio Religioso) e sua posição no mundo social está indefinida (estágio Ético), de maneira que não se trata apenas da vida nua, do desespero crônico e neurótico, de medo intenso do Mundo, mas de uma sede de engajamento e de fundamento. Backer (1995) dirá que, do abandono das narrativas coletivas e tradicionais, pré-modernas, a respeito da vida, que impunha sobre o mundo visível um Outro Mundo, uma parcialização da realidade capaz de dar sentido e previsibilidade aos fenômenos, restou apenas a natureza bruta, sem razão e sem profundidade. O indivíduo, isolado de uma cosmovisão compartilhada, está sozinho diante do peso de uma realidade hostil, que não é capaz de entender, e acaba neurotizado, pois vai se fechando em si mesmo para se proteger daquilo que lhe apavora. Até as pequenas coisas do cotidiano são acometidas do terror de um mundo implacável, ameaçador, esmagador, com o qual não se pode contar: verifica-se se a porta foi trancada dez vezes, lava-se as mãos a cada dez minutos… Esses são sintomas pontuais de uma concepção de mundo fragmentada e, por conseguinte, de uma fragmentação da própria estrutura interna do sujeito.
Toda a neurose, ao fim e ao cabo, acaba adquirindo caracteres noogênicos (doenças do espírito [FRANKL, 2019]), afinal, o fechamento em si inviabiliza a entrega a objetivos maiores e a objetos transcendentes que forneçam bases sólidas de sentido e de sustentação para os valores. Sem energia existencial para sair de si, o neurótico reter-se-á na repetição cíclica de pequenas ações, sempre ao redor dele mesmo. Nos termos de Becker (1995):
[…] chamamos de neurótico qualquer estilo de vida que comece a restringir demais, que evita o livre impulso para a frente, as novas escolhas, e o crescimento que uma pessoa possa querer ou do qual possa precisar. — p. 179
O neurótico, portanto, na ausência de uma visão completa e compreensiva da realidade (KOLAKOWSKI, 1981), se apegará compulsivamente a pequeníssimas coisas que estão ao seu alcance, e isso pode conduzi-lo à idolatria. Ele estará sedento por uma pessoa ou por um sistema de pensamento que, lhe aparecendo, sugira poderes superiores, além de sua compreensão, que sejam capazes de dominar o seu mundo, dando-lhe ordem e redenção. O objeto, a tábua de salvação, acabará se transformando no Todo da sua vida. É por isso que, assim que a Revolução Francesa explodiu, os manicômios parisienses logo ficaram vazios (BECKER, 1995): uma narrativa ideológica, a absolutização de um elemento parcial da realidade, foi semeada e capturou as paixões morais flutuantes daqueles que estavam disponíveis. E mais: como o neurótico se entende incapaz de lidar com a complexidade do mundo e por isso nega a realidade, mentindo para si mesmo, cresce em seu coração um sentimento de culpa, de insuficiência e de frustração existencial, que pede por uma compensação heroica. Mas como ele não possui uma narrativa abrangente sobre a vida, que legitime as pequenas ações diárias, como a paternidade, o trabalho bem feito e a caridade, dependerá de ofertas revolucionárias de grande magnitude, buscará completude pela participação sacrificial em eventos grandiosos, como a Revolução Francesa. Está acometido, pois, pela nostalgia do absoluto (STEINER, 2003).
Apavorado com a realidade, existencialmente em falta, culpado e, portanto, se sentindo injustificado e impuro, [o homem contemporâneo] estava pronto para se engajar em qualquer “grande história”
Se considerarmos o homem contemporâneo como generalizadamente neurotizado, facilmente compreenderemos a sua disposição “heroica” frente ao Estado pandêmico: apavorado com a realidade, existencialmente em falta, culpado e, portanto, se sentindo injustificado e impuro, estava pronto para se engajar em qualquer “grande história” através da qual pudesse dignificar a própria vida, satisfazer suas inclinações cívicas e espirituais e expiar seus pecados, mesmo que ao preço do “martírio”. Rushdoony (2018) de fato colocou a Culpa na matriz da psique individual e também da civilização: o homem carrega uma consciência visceral de sua falta e pede por propiciação (juízo) e expiação (perdão). Como disse Backer (1995), é impossível ao sujeito satisfazer-se em sua própria imaginação, pois não pode escapar de perceber a ilegitimidade e a irrealidade de uma autoglorificação fantasiada — nenhuma “convicção é possível para o homem, a menos que venha de terceiros ou de fora dele mesmo” (p. 185). Isso significa que o processamento da culpa individual pede por um organismo ritual e narrativo de ordem coletiva, societal: o Estado é, ao fim e ao cabo, um mecanismo de administração da culpa, um maquinário justificador da sociedade e do indivíduo. Mas para o Estado ser justificador, ele primeiro precisa ser considerado justo — sua autoridade deve beber de um Autor, de uma fonte legítima (CACCIARI, 2016).
É nisso que consistem a legitimidade e a legalidade das instituições. Como percebeu Agamben (2016), contudo, as instituições ocidentais todas degeneraram e já não mais conseguem legitimar e justificar as nações e as sociedades, donde a hipertrofia do direito, tão presente na democratura, procurando sustentar burocraticamente um poder que já não é mais aceito com naturalidade. Isso abriu um vazio ontológico que na primeira crise severa foi preenchido pela oferta de uma cruzada global contra uma ameaça invisível. Foi ali que cada Estado recuperou provisória e artificialmente sua autoridade e legitimidade, não a partir de uma regeneração dos fundamentos republicanos, mas do potencial de uso de suas estruturas para estabelecer uma boa logística e uma rígida legislação para o alastramento do “evangelho” da Saúde em nome da Ciência. Após isso, os Estados precisarão procurar outros pretextos para sua existência como veículos para entidades maiores, sempre ao preço de maiores restrições das liberdades, que serão rapidamente aceitas em troca de novas aventuras morais para multidões ciclicamente carentes de expiação.
Devo concluir esse extenso estudo sobre as diversas dimensões da Pandemia, como um vírus primeiro espiritual e cultural e, só no final, propriamente orgânico, com um antigo mito que condensa todo o conceito, demonstrando que não é novo o entendimento de que moléstias coletivas nunca são apenas fisiológicas. Para os gregos, Afrodite, divindade que condensava toda a simbólica feminina (mar e terra, fertilidade e Eros), era dupla (FORNORI, 2017): Urânia e Pandêmia. Afrodite Urânia (ouranós significa Céu) personifica o amor espiritual, platônico e límpido, baseado na apreciação contemplativa da Beleza, enquanto Afrodite Pandêmia (pan-todo, demos-povo) está ligada ao caos e às paixões da multidão. A Afrodite Urânia é comumente retratada emergindo do Mar sobre uma concha aberta e isso representa a mente iluminada pela sabedoria, retirada do caos aquático da inconsciência e da indefinição e, por isso, individualizada. A Afrodite Pandêmia, por sua vez, é retratada em terra, junto de frutos e de um carneiro, que é o símbolo do deus do caos terrestre Pã (Pan), selvagem carneiro dos bosques, dado aos desmandos dos instintos e dos desejos do baixo ventre. Afrodite Pandêmia, ao contrário da iluminação pela sabedoria, que retira a mente individual da desordem oceânica, despersonaliza o sujeito, levando-o de volta ao caos da multidão, à mistura com a terra e à entrega aos prazeres viscerais. Aqui Afrodite é Pandêmia também no sentido de ser causadora de doenças venéreas que se alastram em decorrência da embriaguez coletiva, que é perpetradora de outras tragédias, originadas e fomentadoras da ignorância espiritual. Descreve, em resumo, a devastação pessoal obtida pela satisfação de desejos vulgares. No lugar da concha, Afrodite Pandêmia pode ser ilustrada como montada num dragão, imagem do caos terrestre e aquático, que dirige com firmeza e vigor.
O símbolo da Afrodite Pandêmia é a definição mais completa da Pandemia como temos discutido: um retorno ao caos precedido pela ignorância espiritual, que tem devastado o Ocidente nas últimas décadas e destruído as individualidades em nome da coletividade e dos prazeres fáceis da multidão, que é sempre mais bestial do que iluminada. O vírus veio e se alastrou pelo mundo, mas as reações de grossa fatia da população sinalizam, como bem nos mostraram Agamben e Valli, uma doença generalizada que aflige as almas desde muito antes — essa é a verdadeira Pandemia.
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Artigo publicado originalmente no blog da Revista Fé Cristã em 10 de outrubro de 2021 — Pandemia e Crise Espiritual, por Natanael Pedro Castoldi