Pandemia e Escatologia
da fraqueza cristã à maturidade em Cristo
Não dá para se dizer que Nietzsche, apesar de todos os pesares (Chesterton que o diga!), não tenha percebido de modo relativamente acertado que a fraqueza do cristianismo e da civilização cristã está na compaixão, conforme segue:
“O cristianismo é chamado de religião da compaixão. […] O homem perde força quando se compadece. Por meio da compaixão a drenagem da força que o próprio sofrimento traz ao mundo é multiplicada por mil […] De maneira geral, a compaixão frustra a lei do desenvolvimento que é a lei da seleção. Ela preserva aquilo que já está maduro para a morte, luta a favor dos deserdados e condenados à vida.” F. Nietzsche, citado por Tucker, 2008, p. 104
É, de fato, uma fraqueza, se o pensarmos nos termos da virtú pagã de Maquiavel. Nessa perspectiva é que René Girard (2011) pensa o Holocausto e o Nazismo: é a revolta do estado neopagão contra o imperativo cristão histórico da necessidade de preservar a vida humana a todo o custo. Trata-se, pois, da verdadeira rebelião metafísica de uma nação no centro da Civilização, no cerne gástrico da Rainha Europa, contra o “Antigo Deus” e Seu povo — cristão e também judeu. É a revolta prometeica de um novo Júpiter contra o velho Saturno. Sob o governo do Filho, o Führer, o páthos cristão foi derrubado, horrorizando todo o Ocidente: a morte em massa, industrial, foi a afirmação de uma nova divindade, desenterrada das raízes da Floresta Negra. Similarmente, Tismăneanu (2015) afirma que o Holodomor teve como pano de fundo a busca por uma remodelação do Homem em termos distintos daqueles do cristianismo histórico: tratou-se do “uso racional da violência”, aplicando severo controle sobre o corpo humano para, ao solapar o cerne do homo economicus, mudar a estrutura emocional, sentimental e psicológica das necessidades humanas.
Só que, como Chesterton afirmou, toda a heresia é uma doutrina enlouquecida. O cristianismo pode ser fraco de um ponto de vista positivo, que é quando a sua defesa incondicional da vida humana está bem enraizada numa e dirigida por uma cultura cristã visceral — deve-se, aqui, ter em mente o que é “vida” e o que é “humana”. Se as condições de uma cultura cristã profunda, escatológica, não existirem, a influência cristã traz consigo sua fraqueza como problema, como maldição: a defesa incontornável da vida humana se perverte numa queda insana rumo ao colapso de todas as estruturas civilizacionais, destruídas de bom grado para a defesa daquilo que Agamben (2020) chamou de “vida nua”, abrindo as portas revolucionárias para a emergência de uma nova civilização, que vem com uma nova ordem. A sombra do ethos cristão, no nosso cenário ocidental secularizado, aparece, pois, como um problema em tempos pandêmicos, e não mais uma centelha de esperança, pois o cristianismo secularizado não é mais escatológico, mas progressista — que é para onde vai o apelo cristão por amor e comunidade quando o espectro do Fim e da Parusia se perde.
Sob influência direta da narrativa humanista das ciências naturais, influência essa que ficou mais do que evidente na elevação religiosa da Medicina e das Ciências da Saúde ao Trono durante a Pandemia (VALLI, 2021), a ideia do que seria “vida humana” se dissolveu na lama e nos seus vermes. O homem, um “macaco nu”, afinal, não é mais do que um verme em luta para a sobrevivência de seu corpo biológico — é isso que ficou explícito com a Pandemia e com a prontidão das populações em submeterem-se ao arbítrio do chamado Despotismo Terapêutico. Essa é a Vida Nua: não há nada mais “humano” e mais importante do que a preservação e o conforto do corpo físico, biológico, material — todos os prazeres do consumismo, todas as tradições, todos os valores, tudo quanto mais existe é deixado de lado quando a vida fisiológica está ameaçada. Essa visão do humano a partir do seu primitivismo mais elementar é uma herança do freudismo, que pensa a essência do indivíduo emergindo dos conteúdos recalcados na primeira infância, e do evolucionismo darwinista, e é também a base do identitarismo hipermoderno, pois aquela sensação visceral a respeito de si, emocionalmente pautada, ganha ares de autoridade absoluta, de modo que a autodefinição, absorvida dos oráculos intestinais, é a regra. Isso é o exato oposto da perspectiva antropológica cristã, que pensa o homem não a partir de sua partícula mais ancestral e do ponto mínimo irredutível, mas do resultado qualitativo de todas as suas potencialidades criaturais: a maturidade humana, a plenitude do homem, está no bom uso de suas faculdades propriamente humanas, e não é que seja ontologicamente menos humano quem não vive boa vida espiritual, mas é que este, mais próximo daquilo que Kierkegaard definiu como “estágio estético”, sobremodo sensorial e corporal, não consegue viver a plenitude daquilo que é dado ao homem ser e fazer. A régua da vida humana e de sua maturidade é Cristo, não o verme da terra.
Na condição estética, contudo, e sob o falso apelo, superficialmente cristão, da “salvação de vidas”, é posto no altar flamejante da retenção da contingência e da presunção de controle sobre a História (ELIADE, 1992) tudo quanto qualifica a vida propriamente humana. Nessa circunstância, a fraqueza do cristianismo se transforma no sepulcro de toda a boa humanidade, fazendo restar só terra arrasada. Há quem certamente se aproveite desse apelo tão enraizado nas almas ocidentais, de preservação da vida a todo o custo, para nos lançar num vórtice suicida de insanidades crescentes, visando uma ruptura revolucionária no próprio status espiritual e civilizacional do Ocidente — os teóricos de Frankfurt notaram bastante cedo que as nações cristãs devem cair de dentro para fora, explorando ao máximo seus pontos sensíveis. E não havia momento mais oportuno para tal: com a alma esmigalhada pelo consumismo, atiçador dos apetites mais corpóreos, e com a abstração e aniquilação do Outro enquanto Corpo/Lugar, substituindo-o, num momento, por um avatar de rede social, no outro, por uma identidade meramente verbal e, num terceiro momento, como uma fantasmagórica ameaça viral, estava dado o terreno da exacerbação dos humores cristãos destrambelhados e distorcidos.
“O que assinala a nossos olhos o demoníaco é que estes atos [nazistas e comunistas] foram realizados em nome de um bem, sob a cobertura de uma moral. A destruição moral tem como instrumento uma falsificação do bem tal que o criminoso, em uma medida impossível de precisar, possa manter a distância a consciência de que pratica o mal.” Alain Besançon, 2000, p. 40
Essa distorção de perspectiva deve muito à ideologia dos Direitos Humanos, chamada por Berthoud (2017) de uma “religião sem Deus”, mas que se aproveitou do próprio espírito cristão para se erigir. Deve-se, primeiro, considerar que A Declaração dos Direitos Humanos de 1789, fruto do Séc. XVIII e alicerçada sobre Hobbes e Locke, possui um fundamento iluminista, contrário às “trevas medievais” e, por conseguinte, ateu. Os conceitos sobre o homem e o direito ali elaborados não se relacionam organicamente com o pensamento tradicional do cristianismo histórico, pois pressupõem uma noção do homem como inerentemente bom e transformam a criatura humana numa abstração, subjugando-o à generalizações ideológicas muito distantes da realidade concreta do homem individual (Contrato Social x Pacto/Aliança). Noutros termos: os “direitos humanos”, deduzidos de uma abstração do que seria o Homem, ignoram a visão clássica do Direito (a das proporções justas na partilha de bens exteriores, baseada numa teleologia bastante clara, de base transcendente, verticalizada em Deus), em nome da submissão do indivíduo de carne e osso, com todas as suas particulares e seus direitos e deveres relacionados ao seu contexto local e presente, a uma natureza humana genérica e desprovida de Auctoritas, pois sem qualquer fundação no Auctor, que é o Senhor (CACCIARI, 2020). Desse cenário de ilegitimidade institucional, muito bem definido por Agamben (2015), toda a segurança jurídica do cidadão desaparece e o Estado pode facilmente assumir a estrutura leviatânica do despotismo, mas com a novidade de que essa tiranização tem vindo com o apoio inflamado da população civil, que infelizmente já assimilou bem a ideologia humanista do Homem hobbesiano.
Só há meios legítimos de assimilar o cataclismo na perspectiva do indivíduo consciente diante de Deus
Uma saída para esse cenário desolador, ou algo que teria garantido a preservação da autoimagem do homem ocidental dentro das diretrizes cristãs tradicionais, é a visão escatológica, como já anunciado. O judeus, para explicar e encontrar sentido no que lhes ocorreu com o Holocausto, recorreram ao termo Shoah, que é Holocausto e que na Bíblia Grega, holókauston, diz respeito ao sacrifício de fogo, ao qual uma vítima era submetida. A ideia de Shoah ajudou a consolidar um robustecimento da autoimagem e da identidade do povo judeu e enfatizou, por sua alusão à vítima individual dentro de um sistema sacrificial dotado de sentido, a pessoalidade e a individualidade de cada ser humano eliminado pelos nazistas, o que serviu para não permitir que a ideia de “genocídio” e de “morte em massa” transformasse as vítimas em uma abstração, em uma generalização, num “monte de carnes”, como era chamado o Inferno entre alguns ameríndios. E quando se pensa na vida individual, com sua personalidade e suas qualidades humanas, é inevitável que se veja a pessoa, na hora da sua morte, como partícipe de um processo narrativo — para o sujeito individual e religioso, o horror da morte tinha sentido em Deus (e isso Frankl [2017] percebeu bem nos campos de concentração). De fato, só há sentido possível, só há meios legítimos de assimilar o cataclismo na perspectiva do indivíduo consciente diante de Deus e integrado à sua comunidade — sem essas características, a morte se transforma numa generalidade fria, feita de puro terror, e seu combate se perverte numa missão estatal, sustentada por uma massa informe de pessoas sem rosto.
O cristão de estirpe paulina é incapaz de ver o desastre temporal e não perceber nele algo da incontrolável e irrefreável vontade de Deus, que dirige a História em direção ao seu Fim, que é a Parusia. Além disso, confiante do cuidado do Senhor e na Sua soberania, sem contudo recair na imprudência, não se desespera com a sua vida carnal e nem com o dia de amanhã. Ele sabe que a humanidade não é capaz de reter o Tempo (Katechon) e de impedir o Eschaton (CACCIARI, 2020). Pelo contrário: ele vê na aceleração do Tempo a iminência do Reino, que aguarda com alegria. Enquanto isso, ele respeita algumas diretrizes do Estado, aquelas que não sejam contrárias à sua fé, “como se” a vida presente fosse realmente importante, “como se” sua sobrevivência diária fosse a coisa mais urgente, “como se” os governos dos homens fossem realmente autoritativos (AGAMBEN, 2017). Nesse sentido, o cristão é um filósofo: ele suporta e vive todos os dramas sem apavorar-se, pois está consciente de que tudo o que é não passa, de algum modo, de uma ilusão, da pálida expressão de uma realidade anterior e mais profunda, com a vantagem de, ao contrário do filósofo, não correr o risco de cair num niilismo pessimista, já que entende que a História terminará, queira o homem ou não, dando lugar ao Paraíso Eterno, que é a Forma Invisível (que então será visível) do presente Mundo Sensível (que já não será mais visto). É nesse tipo de fraqueza que os cristãos são fortes.
AGAMBEN, G. O Mistério do Mal. São Paulo: Boitempo, 2015.
AGAMBEN, G. O Tempo que Resta. São Paulo: Boitempo, 2017.
AGAMBEN, G. Reflexões Sobre a Peste. São Paulo: Boitempo, 2020.
BERTHOUD, J. Uma Religião Sem Deus. Brasília: Monergismo, 2017.
BESANÇON, A. A Infelicidade do Século. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
CACCIARI, M. O Poder que Freia. Belo Horizonte: Ayiné, 2020.
ELIADE, M. O Mito do Eterno Retorno. São Paulo: Mecuryo, 1992.
FRANKL, V. Em Busca de Sentido. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2017.
GIRARD, R.; ANTONELLO, P.; ROCHA, J. Evolução e Conversão. São Paulo: É Realizações, 2011.
TISMANEANU, V. Do Comunismo. Campinas, SP: Vide Editorial, 2015.
TUCKER, R. Fé e Descrença. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
VALLI, A. Vírus e Leviatã. Curitiba: Danúbio, 2021.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 14 de junho de 2021.