Pobreza e Legitimidade

das possibilidades do orgulho humilde

Natanael Pedro Castoldi
4 min readJul 24, 2021
Viejo Pescador, Tivadar Csontváry Kostka

Como escrevi recentemente e estou refletindo nas últimas semanas, conquanto não se possa romantizar a pobreza, como fazem os ricos culpados, e nem deixar de se assombrar com o sofrimento humano (pobreza é relativo [se é pobre com relação ao que?], miséria é absoluto [a falta do mínimo é sempre indiscutível]), deve haver espaço para que o símplice possa orgulhar-se de si mesmo, para que o pescador, o artesão, o coletor… possam se sentir satisfeitos. O vigente sistema cultural, político e econômico, de estirpe racionalista, tomará a pobreza e o pobre como “erros”, como categoria e ente que não deveriam existir, que não podem existir. O vazio de significado que passa a permear a vida rústica e do pouco estimula, na medida do alastramento das tecnologias e de todo o fomento de uma conduta consumista, um abandono do status originário para uma vereda fluída, de ascendência material, rumo aos objetos de consumo da moda, que possam proporcionar algum tipo de validação pública. Essa condição de maior volatilidade, que torna materialista o coração de quem talvez não fosse, é esterilizante de diversas maneiras.

Há contos gaúchos sobre os peões que desdenharam da pessoa do próprio imperador do Brasil

Wilhelm Reich (2001) encontrará entre o proletário e o proprietário uma similaridade: aquele, que não é necessariamente o dono da propriedade deste, de algum modo controla o processo produtivo — seu caráter é definido, como o de seu superior. Entre as partes, está a classe média, que é um produto do contexto industrial: “não possuindo os principais meios de produção nem trabalhando neles, não pode ser a força motriz permanente da história e, por isso, oscila invariavelmente entre o capital e os trabalhadores” (Psicologia de Massas do Fascismo). A classe proletária é, igualmente, um produto do período industrial, como bem afirma Belloc (2017) em seu estudo sobre o Estado Servil, mas preserva um aspecto pré-moderno que o membro médio da classe média perdeu: uma consciência de fraternidade interna, entre os pares, que desconhecem a necessidade de concorrência, já que não competem entre si, algo um tanto quanto próximo do modus operandi feudal (é, pois, a mão de obra disponível desse antigo sistema agrário que se reunirá nas indústrias). É claro, como bem demonstra Schuon (2002), que o espírito do ferro, do fogo e do óleo na linha racional e desumana de produção, aos poucos vai embrutecendo o operário. Contudo, a sua índole gregária, focada menos na família mesma (já que não terá muito o que administrar e herdar), lhe dá um alívio e uma possibilidade de consciência de participação nalgo mais amplo — um tipo humano muito parecido, de escravos e humildes das insulae romanas, inundou as igrejas cristãs do tempo primitivo. Também entra aqui o perfil do pequeno proprietário, que é pequeno demais para desejar e almejar crescimento por competição, viabilizando aquelas pequenas propriedades comunitárias e fraternas que Belloc identifica na Inglaterra pré-Industrial. Essa não é, ainda, a classe média que conheceremos e que, como eu disse, é propriamente industrial. O pequeno camponês assume, em diversos relatos, uma posição de orgulho pessoal, familiar, local, nos quais resiste à presença e à exigência de uma autoridade externa, perante a qual nem sempre se curva. Há contos gaúchos sobre os peões, os ginetes das estâncias, que, conquanto respeitassem o estancieiro, desdenharam da pessoa do próprio imperador do Brasil (LOPES NETO, 1998).

O perfil da classe média industrial, que não está no chão da indústria (aliás, tem um pavor imenso de acabar lá), que se baseia nas pequenas empresas familiares, concorrentes entre si, e no funcionalismo público (cada vez mais comum no Estado crescente e burocrático), é a de excessiva reverência ao aristocrata, ao grande proprietário, ao rico, ao rei, ao Poder, pois ela se vê fugindo da base e em direção ao topo. É, pois, um espaço médio, um lugar indefinido, de transição, onde as famílias e as pessoas vão se afastando umas das outras e se estranhando numa rotina competitiva e numa busca cada vez mais frenética por crescimento, por elevação na carreira, ampliação do status, para o que, com frequência, se bajula quem “já está lá” e se procura favores superiores. Isso cria, numa distorção tardia, o estranho fenômeno que vimos nos últimos dias, da reverência do sujeito da baixa classe média pelo bilionário da Amazon, a quem defende.

Sempre disposto a se adaptar à autoridade, o indivíduo da classe média baixa acaba criando uma clivagem entre a sua situação econômica e a sua ideologia. A sua vida é modesta, mas tenta aparentar o contrário, chegando, frequentemente, a tornar-se ridículo. — Reich, p. 43

O fenômeno que temos presenciado, hoje, é esse, mas numa escala máxima. A pobreza se tornou um “não-lugar” e todos, em maior ou menor grau, assumiram a mentalidade acima descrita, iludidos de um crescimento em status e patrimônio que muito dificilmente será obtido. Enquanto isso, para chegar muito pouco longe em termos de bens materiais, gerando todo um desordenamento e um adoecimento psicológicos, permeado de estresse, frustração e sentimento de inferioridade, abandonaram, em muitos casos, algo de consistente e de densamente espiritual, que já teria sido suficiente.

BELLOC, Hilaire. O Estado Servil. Curitiba, PR: Danúbio, 2017.

LOPES NETO, Simões. Contos Gauchescos e Lendas do Sul. Porto Alegre: L&PM, 1998.

SCHUON, Frithjof. O Sentido das Raças. São Paulo: IBRASA, 2002.

REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas e do Fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 23 de julho de 2021.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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