Quando a Cidade Dorme

Da morte da Noite nas cidadezinhas interioranas

Natanael Pedro Castoldi
5 min readJul 13, 2023

Moro num dos pontos altos da cidade, a maior do Vale do Taquari, e tenho vista para boa parte da região baixa do Vale, com seus pequenos municípios interioranos. Nos últimos anos tenho notado uma tendência desanimadora na paisagem distante, que deveria ser eminentemente rural: à noite, com o passar do tempo, sempre mais luzes brancas estão despontando e matando a escuridão, e a iluminação pública de cidades inteiras está sendo desfigurada. Na praça aqui do lado de casa, que também dá para essa vista, as luzes amarelas estão sendo gradualmente substituídas e é notável o efeito que isso têm causado no ambiente — que deixa de conservar aquele ar intimista, tranquilo, de conforto arbóreo, na margem do onírico, para se perder em fachos ofuscantes e frígidos, impregnados de certa hostilidade insalubre e artificiosa, que em nada remete a imaginação à luz crepuscular e à cor dos ancestrais lumes de fogo. A luz da Noite, quando não lunar, da qual nos refugiamos em nossos lares, é-nos naturalmente ígnea, quente e amiga.

Essa “revolução de LED” se baseia em interesses utilitários, porque a luz branca ilumina melhor e é mais econômica. Isso eu entendo. Ao iluminar mais, sugere-se melhorar a segurança pública, também. Que má notícia, não? Ela nos remete à ideia de que nossa sociedade tem degenerado em violência sistêmica, de modo que o ambiente público, ultrailuminado, amplia a sua hostilidade luminosa à presença humana ao bombardear nossa vista com iluminação hospitalar ou industrial, deixando-nos alertas, irritáveis e desejando sair da área comum o mais rápido possível. Ela está ali para nos ajudar a manter o Outro afastado, como o perigo que potencialmente é, ao contrário da luz amarela, pela qual a lâmpada replica o arquétipo da fogueira, que sugere a aproximação do Outro e a busca do calor e da luz protetivas, que tornam culta a Noite selvagem. A sua extinção é prenúncio de que a via pública está se tornando, na realidade, terra de ninguém. Uma lástima essa seta metropolitana estar alcançando as distantes cidadezinhas. Porque as grandes cidades são fundadas na negação dos ciclos naturais e na superação de todas as amarras ambientais, substitutídas pelo arbítrio titânico e prometeico do planejamento, da logística e do consumo febril, das quais o LED e a inundação de luz artificial à noite são meros sintomas — partícipes de um empreendimento multissecular e todo-abrangente de superação da Noite.

… o mundo derredor, esvaziado pelo sono medicalizado e sem sonho, não é mais do que palco para tentativas de autoafirmação

A Noite literal é símbolo da Sombra do Ocidente, da contraparte telúrica e lunar do éthos iluminista, que nos persegue até hoje em todas as áreas e que assume aspectos solares como síntese de tudo quanto pertença à nossa civilização: a razão cartesiana, o progresso universal, a máquina e a técnica, a substituição das coisas por palavras e abstrações, as ideologias diversas fundadas na Imaginação Idílica e mobilizadoras da Imaginação Demoníaca… O espírito das Luzes é aquele que jaz subjacente ao democratismo e à civilização diversitária, de inclinação irrestrita e universalizante nos termos de uma revolução cósmica e civilizacional que culmine numa totalidade suprarracional e ultrainformada. Esse ideal assume o espaço público como um problema a ser superado, porque se baseia no imperativo logístico e informativo, que vislumbra a extinção do tempo e do espaço em favor da velocidade da Luz, e quer-se cibernético e algorítmico. Transparência e translucidez são igualmente imperativos da Luz — não deve haver qualquer obstáculo à difusão da informação, que é monetizável e comercializável. Não pode haver Sombra, ou Noite, nem nas vias públicas, corredores de passagem a serem superados o mais rápido possível, e nem nas vidas privadas, expostas quase por completo na internet — ou manipuladas virtualmente, para que se pareçam idênticas ao politicamente correto, que na realidade é a submissão completa aos comandos do éthos metropolitano, que já é que megalopolitano e que está invadindo o mundo inteiro, que se pretende assumir como uma única e imensa Cidade. As pessoas são, então, inundadas de luz branca nas ruas e dentro de suas casas, desde as telas de seus celulares, computadores e televisores. Mantém-se perene e simultaneamente vinculadas, via aplicativo, a todos os ambientes aos quais pertencem, comprometidas com seus trabalhos dia e noite, e com todas as demais áreas, sem respeito pelo tempo e pelo espaço. E assim, sobrecarregadas por demandas ininterruptas, considerando que a construção e a manutenção da própria imagem online já é um tipo de árduo trabalho, que domina as viagens e todos os lazeres, quebrando quaisquer possibilidades de sagrada intimidade plena, já não conseguem mais dormir adequadamente — e se não dormem bem, já não mais sonham bem, e vão perdendo, assim, o contato onírico, natural e espontâneo com a sua própria Sombra, com sua interioridade profunda, e veem secadas todas as fontes vitais capazes de dar legitimidade, densidade e realidade às experiências vivida (parece que já nada do que se faz é justo, real e significativo, porque não há ação que pareça autêntica e veraz, ou honesta). O que significa, também, que o mundo derredor, desprovido de profundidade arquetípica, porque esvaziado pelo sono medicalizado e sem sonho, não é mais do que palco para tentativas de autoafirmação, já que o valor das coisas deixa de residir nelas mesmas, como o veria o poeta, mas no “hype”, ou no seu valor em termos de capital afetivo, ou identitário — que é o valor consensual das redes e da propaganda.

O homem deve conseguir dormir e conseguir sonhar, permitindo-se mergulhar na Noite, porque a alma precisa da Noite para se reabastecer espiritualmente, assim como o corpo dela necessita para se regenerar. A Noite, em nosso tempo, será silêncio e solitude, intimidade e ócio, ludicidade e nostalgia, o sabático e o festivo, o Mistério e o Sagrado. É quando podemos nos entregar às demandas de nossa natureza mais visceral, sucumbindo à dormitação e revisitando aquilo que jaz em nosso cerne, e dali irmos ao Dia prenhes de possibilidades que queiramos tornar manifestas, ou ato. Uma cidade humana deverá respeitar os fluxos e refluxos, as sístoles e as diástoles, as inflações e deflações da respiração do Mundo, em seus ciclos de Vida e Morte, Dia e Noite, Ação e Inação, ou Ato e Potência. Uma cidade humana respeitará a respiração do Mundo, porque esta é também a respiração da alma do homem. Uma cidade humana, não maquínica, saberá dormir à Noite e acordar ao Dia, cobrindo-se do véu da intimidade noturnal e lunar, que convida os homens a reencontrarem a si mesmos em suas passagens, e descobrindo-se à luz do Sol. Se não souber fazê-lo, definhará em toda a sorte de violência e degeneração, morrendo junto da morte espiritual daqueles que nela não mais conseguem dormir e nem sonhar.

Por isso a metrópole não tem salvação. Mas a cidade do interior, não titânica e não dada ao gigantismo grotesco, tem — se os filisteus não a continuarem assaltando desde seus centros administrativos.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 13 de julho de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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