Raiz e Sepultura da Cultura

O Mito como origem e fim

Natanael Pedro Castoldi
3 min readMar 7, 2023

Unamuno já disse afirmou, a respeito do cristianismo, que o que há de mais universal precisa ser também o que há de mais íntimo. O que é visto aparecendo sempre, em todo o mundo, em toda a história, e que tende a emergir espontaneamente mesmo em solo estéril, deve ter raízes das mais viscerais e em cada pessoa. Me parecer ser assim que Furio Jesi vê o Mito, descrevendo-o como estando ligado aos instintos mais selvagens e irracionais do homem, de modo que pode ser despertado desde o atiçamento de certos afetos profundos, podendo liberar consigo torrentes de euforia e de violência.

A forma do Mito é herdeira do impacto fundador dum assassínio primordial

Ocorre que, se descermos na genética do Mito, chegaremos sempre a uma longínqua fonte originária, homicida. A forma do Mito é herdeira do impacto fundador dum assassínio primordial, evento embebido em culpa e primitividade avassaladoras, e é essa a forma que ficou cristalizada no Rito. E se não se trata apenas de um homicídio auroral, certamente possui o perene traço da emergência do “deus momentâneo”, que se eleva teofanicamente diante dos olhos de selvagens aturdidos, levando-os ao terror e à euforia. De toda a maneira, no Mito estão guardadas as fontes religiosas da humanidade, que fizeram nascer a Cultura e todo o mais, incluindo a própria linguagem. Os símbolos presentes no Mito, assim como seus mitologemas, estão afetivamente impregnados das mais básicas e viscerais inclinações do homem, de maneira que é pelo Mito e pelo Rito, ambos portadores do Símbolo, que os ímpetos mais implacáveis podem ser despertados. Daí no Mito estarem casados, em gérmen, os extremos da condição humana: o que há de mais bárbaro e o que há de mais elevado.

Se há no Mito a receita para a formação da Cultura, nele também habita o segredo de sua destruição ou reformação. A Cultura nasce no Mito e se mantém pela sua recapitulação no Rito. Contudo, conforme a Cultura se desenvolve, a presença do Mito passa a representar uma ameaça à sua sobrevivência, pois é conhecido o seu poder de atiçar os ânimos para além de toda a racionalidade, e a Cidade precisa, para se sustentar, da previsibilidade que só a técnica e a burocracia fornecem, artefatos que vão, aos poucos, ocupando o lugar do complexo ritual. Uma das grandes tarefas da Cultura, uma vez nascida no Mito, é domesticá-lo, torná-lo olimpiano, citadino, e expurgar sua face mais obscura e indomável para fora dos muros, nos ermos, onde aparece na figura dos demônios, das bruxas e das bestas. Todavia, essa face noturna característica de toda a mitologia não cessa de pressionar a ordem social, desde os corações dos homens, aparecendo através de distúrbios da psique e de desejos violentos. Daí os idealizadores da Revolta e da Revolução, dentre os quais o próprio Jesi, defenderem o resgate do Mito, ou de sua face selvagem, como um meio de, atiçando multidões à ferocidade, destruir o status quo.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 21 de fevereiro de 2022.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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