Realeza e Aristocracia Natural
Posse pelo dever e liberdade das paixões escravizantes
A imagem fomentada em nossa cultura a respeito do rei e dos monarcas é rasa, decorrente de séculos de rebelião prometeica contra todo o princípio hierárquico, que é ancestral e psicologicamente necessário. Não se trata da leitura de casos individuais, mas do significado apropriado, que desce até as cidades mesopotâmicas, da figura do rei, e ali se verá que nela não há o que se costuma imaginar dentro da mentalidade igualitária e materialista: não se trata de poder frio e bruto, de liberdade absoluta e opressiva, como uma espécie de “super-homem”. Pelo contrário: o próprio fato de os reis antigos terem evoluído de uma condição de divindade encarnada, os coloca, mais do que qualquer outra figura, na condição de possessão pelo arquétipo — o principal dentre os homens não era livre de maneira alguma, porque constrangido à aderência, em todas as áreas da vida, ao imperativo do nome real e do trono do rei, necessário para dar suporte a toda a estrutura social e à psique coletiva. Por isso, um rei era antes servo do que livre, e quando não se submetia às demandas da natureza de seu posto, preferindo satisfazer seus próprios caprichos, era tomado por tirano e responsabilizado por toda a miséria nacional, para ser rapidamente derrubado.
Eles são ‘as cabeças coroadas’ do povo, tradicionalmente indivíduos exaltados por possuírem aparentemente maior ou singular ‘mana’, personalidades superiores ou por serem os melhores em termos de poderes e capacidades essenciais para o bem-estar da tribo — O Livro dos Símbolos
A elevação do Novo Rei era como a recolocação do Centro no cerne da psique coletiva
Primeiros dentre os homens, realizam funções mediadoras entre as esferas terrena e supraterrena, por isso seus adornos sinalizam o governo sobre o mundo terreno, através do orbe e do cetro, sob os auspícios do mundo celeste, através do manto cravejado de joias. Em tudo, rei e rainha trazem motivos solares e lunares, respectivamente, que simbolizam a reta e justa visão, o império da lei e da ordem e o regime cíclico da fertilidade e prosperidade do reino, conforme as imagens do Pai e da Mãe. O peso da função real, que transubstanciava o príncipe na ocasião de seu coroamento, era tal que, em tempos ancestrais, o rei deveria ser morto para que se pudesse regenerar o Cosmos, o que depois foi alterado para uma mortificação ritual, associada à morte do Rei Velho, imediatamente sanada pela sua substituição pelo Rei Novo — um possível hiato entre reinados era sentido como uma perda momentânea da ordem jurídica, com uma recaída dos homens na ilegalidade, e uma dominação das forças caóticas sobre as potências virtuosas (é como se o regime do Mundo se invertesse no tempo de trevas). A elevação do Novo Rei era como a recolocação do Centro no cerne da psique coletiva.
Esse é o próprio éthos da aristocracia, tão firmemente enraizada no imaginário da realeza. O homem massificado é que, ao fim e ao cabo, é livre, no sentido de não ser constrangido por nada maior do que ele — do ponto de vista vertical, portanto, e não de suas amarras materiais. Ele não terá freios para conter a própria vontade, para segurar seus apetites e dirigir os seus desejos, a não ser que tenha em vista punições ou recompensas de ordem visceral, de ordem concreta. O rei é apreendido pelo Divino e pela Nação, na medida em que é um tipo de encarnação tanto do coletivo dos homens, enquanto da divindade. O aristocrata (no sentido clássico de aristocracia natural) é cativado pelo Absoluto, nalgum de seus aspectos, e constrangido pela Grandeza, pela Perfeição (donde sempre perseguido pelo sentimento de falta e insuficiência), e deve disciplinar-se para atingir as excelências moral, técnica e intelectual. A profunda diferença entre rei e aristocrata, donde a sua rivalidade histórica, está na perspectiva generalizante do primeiro, em vista do coletivo, ou cosmológico, e na perspectiva individualizante do segundo, em vista da magnanimidade própria, ou axial (o que não significa, necessariamente, “egoísta”).
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Ser criado em um lugar estimado; não ver nada de baixo e de sórdido na infância; aprender o respeito pelo próprio eu; ser habituado a uma inspeção censória aos olhos do público; olhar primeiro a opinião pública, permanecer em um plano elevado de modo a poder ter uma visão ampla e generalizada das combinações infinitamente diversificadas de homens e de assuntos na grande sociedade; ter tempo livre para ler, refletir e conversar; ser capaz de agradar e de chamar a atenção dos sábios e eruditos onde quer que esteja; habituar-se nos exercícios a comandar e obedecer; ser ensinado a desprezar o perigo em busca da honra e do dever; ser formado no maior grau de vigilância, de previdência e de circunspecção em um estado de coisas em que não exista falta impune e os menores erros levem às mais ruinosas consequências; ser levado a guardar e regular a conduta, no sentido de ser tido como um instrutor de seus concidadãos nos mais altos interesses e de agir como reconciliador entre Deus e o homem; empregar-se como um administrador da lei e da justiça e estar, assim, entre os primeiros benfeitores da humanidade; ser professor de alta ciência ou de arte liberal e inventiva; estar entre os ricos comerciantes, os quais, pelo sucesso, supõe-se que tenham visões agudas e vigorosas e que tenham as virtudes da diligência, da ordem, da constância, da regularidade, e que tenham cultivado especial consideração pela justiça comutativa: essas são as circunstâncias dos homens que formam o que eu chamaria de aristocracia natural, sem a qual não existe nação. — Burke, An Appeal for the New to the Old Whigs, citado por Kirk, A Mentalidade Conservadora, pp. 156–157A alta ciência, com efeito, se acha reservada aos homens que são senhores de suas paixões e a casta natureza não dá as chaves de sua câmara nupcial a adúlteros. Há duas classes de homens, os homens livres e os escravos; o homem nasce escravo de suas necessidades mas pode libertar-se pela inteligência. Entre os que são libertos e os que não o são ainda a igualdade não é possível. À razão compete reinar, aos instintos obedecer. De outro modo se você der a um cego outro cego para conduzir, cairão ambos no abismo. A liberdade, não o esqueçamos, não é a licença das paixões libertas pela lei. Essa licença seria a mais monstruosa das tiranias. A liberdade é a obediência voluntária à lei; é o direito de cumprir seu dever e só os homens razoáveis e justos são livres. Então, os homens livres devem governar os escravos, e os escravos são convidados a libertar-se; não do governo dos homens livres, mas dessa servidão das paixões brutais, que os condena a não existir sem senhores. — Alphonse Louis Constant, História da Magia, p. 55
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 22 de junho de 2023.