Rei dos Homens, Rei dos Deuses
Cosmologia indo-europeia
Entre os indo-europeus se identifica a generalizada tendência, já muito antes das especializações em panteões bem delimitados, de falar dos deuses em conjunto, através de termos generalizantes equivalentes a “os deuses”, “todos os deuses”, “os imortais”… Por exemplo: “theos”, encontrado tão precocemente quanto o período micênico, indica o Divino enquanto categoria, por inteiro, na máxima potência — ou seja, como o coletivo das divindades, e mais. É intuitiva a sua vinculação com o Céu Diurno (diw — deiwós [donde theos]), visto primeiro como uma totalidade, que é maior do que as partes. Essa invocação do poder e do testemunho da Divindade, nalguns lugares, vem somada ao nome individual da divindade governante do Céu, como “Zeus e os outros imortais”. Em geral, theos e outros termos de mesma categoria, como “got”, ou “god”, são neutros e incluem divindades masculinas e divindades femininas.
Outro termo indo-europeu interessante referente ao Divino enquanto categoria é o germânico “Æsir”, cujo singular é “áss”. No inglês antigo, corresponde a “os” e ao título “anseis” ( = “semidei”), dado pelos godos os seus reis vitoriosos. Anseis parece vir do protogermânico “ansuz”, conectado ao hitita “hassu-”, que significa “rei”, ao védico “ásura-” e ao avesta “ahura-”, que são títulos aplicados a divindades. Esse detalhe é importante para entendermos a cosmologia indo-europeia ancestral.
Conforme M. L. West, e sabemos muito bem através de outras fontes, o desenvolvimento de uma rica teologia a respeito do pós-morte tende a ser tardio na maioria dos povos antigos. Os mortos, via de regra, habitavam no interior de suas tumbas, quando bem sepultados, ou vagavam desencarnados pelo mundo, quando perturbados, e a tendência, quanto mais voltamos no tempo, é o aumento da potência vinculada aos mortos, capazes de realizações sobrenaturais terríveis aos vivos — mais tardiamente, como já vemos em Homero, os mortos estão reduzidos ao resquício ou à sombra do que eram enquanto vivos. E mesmo entre povos não indo-europeus, como os semitas, encontramos um padrão parecido, porque os hebreus veterotestamentários demonstram uma visão muito pouco elaborada do pós-morte e do Mundo Ínfero — nos tempos mais antigos, como no período do reinado de Saul, os mortos eram espectros dos vivos e dormiam profundamente abaixo da superfície. Isso vai ao encontro do fato de que os indo-europeus primevos provavelmente não conheciam divindades que morassem n’algo como o Submundo — embora cressem na existência de dois ou três patamares cósmicos. É pressuposto que as divindades moravam todas no Céu, descrito sempre como o Olimpo grego, embora muitas delas atuassem nos elementos atmosféricos, terrestres e ctônicos, e quando os poetas antigos, como Ésquilo, falam dos deuses ínferos, “de ofícios pesados, que ocupam tumbas”, ou quando dizem no Rigveda que onze moravam no Céu (diví), onze na terra e onze nas águas, e quando os hititas bradam sobre “os deuses do céu e os deuses da terra”, aparentemente o fazem mais para fins estilísticos, para sinalizar a totalidade do Cosmos, do que como indicativos de uma doutrina clara. Pode-se pensar que as entidades ínferas, habitantes do Abismo, e o estabelecimento inequívoco do reino ctônico aparecem sobretudo após os movimentos de conquista, quando as deidades eminentemente femininas (mesmo as masculinas o são [W. F. Otto]) neolíticas e da Idade do Bronze são subjugadas pelo Divino Celeste e transformadas em demônios ou monstros cósmicos, ou redefinidas e absorvidas por divindades do novo panteão, que passam a habitar em seus reinos.
A grande divisão cosmológica dos indo-europeus ancestrais, essa maximamente clara, é a do Mundo Celeste e do Mundo Terreno — ela antecede em explicitude e cronologicamente o pormenorizado estabelecimento do Mundo Ínfero. O Céu e a Terra são os grandes reinos cósmicos e cada um é governado por uma raça, a dos deuses, no Céu, e a dos homens, na Terra. Enquanto os deuses, deiwos, são nominados pela substância luminosa que os compõe, o termo para “homem” significa “o terreno”, porque a sua matéria é terrestre. Em latim, por exemplo, “homem” é “homo”, que significa “humus”, ou “terra”, o que nos remete ao osco “humus”, ao úmbico “homu”, ao lituano antigo “zmuõ”, ao gótico e inglês antigo “guma”, ao nórdico antigo “gumi”… Também o homem é definido como “zmõgus”, lituano para “que anda sobre a terra”, título ou descrição comum entre os gregos — “aqueles sobre a terra”. Essa é a grande antítese indo-europeia, que se desdobra em outras antíteses derivadas, como “imortais x mortais”. Assim, os deuses têm sede ou habitação no Céu, o Olimpo, e os homens têm sede ou habitação na Terra, e são vistos como duas raças.
Da mesma maneira que os deuses, no Divino, são governados por um deus tutelar, os homens, na Terra, são governados por reis. O rei dos homens busca espelhar a estirpe Celeste. A sede dos deuses, ou a sua habitação, aparece, por exemplo, entre os irlandeses como “síd”, que significa “sede” e “assento”, e é utilizado também para os Lugares Altos, colinas e montanhas, em cujos interiores elevados estariam morando as divindades. Isso significa que a sede dos deuses é também o lugar no qual o Divino está assentado, entronizado, e esse lugar, naturalmente, é aquele que se aproxima do Céu — assentado nos Lugares Altos, o Divino se assenta sobre a Terra, como expressão de seu domínio e de sua regência cósmica. Similarmente, o rei se assenta em seu próprio trono, rodeado de auxiliares que constituem uma corte — o rei, entronizado, é o símbolo condensado de todos os poderes humanos, distribuídos entre seus sábios e oficiais. Daí as aproximações entre o título real e o título divino, e daí, pois, a historiogênese, que buscará raízes divinas para as genealogias reais.
Ao homem cabe, como Adão no Éden, Imagem de Deus no Jardim e sumo sacerdote do Divino, manter a Terra integrada
Segundo W. F. Otto, o termo grego para titã deve ter inicialmente significado apenas “rei”, não se referindo a uma categoria de deuses, mas “aos grandes” — os deuses per se, anteriores ao domínio indo-europeu do Divino Celeste. Os titãs, “os grandes”, ou “reis”, se assemelham, nesse sentido, aos Nephilim semíticos, descritos na tradição hebraica como “Senhores”, grandes varões, dominadores violentos da Terra. Podemos imaginar, à luz do que aconteceu com os titãs, que foram, de “reis” e deuses diurnos dos pelasgos, ao patamar ctônico de monstruosidades cósmicas elementais, filhas do Abismo, que os Nephilim se refiram a divindades primevas, rapidamente associadas a reis e senhores terríveis, sustentando a correlação entre os reis humanos e o Divino Entronizado, aqueles espalhados neste.
O Rei, primeiro representante da classe dos Guerreiros, é ungido e justificado pelos sacerdotes, cujo Santuário comumente se localiza junto do Palácio. O Rei é o primeiro representante da humanidade e o principal servo do Divino. Nos tempos mais remotos, antes de sua substituição por animais, ele era a vítima do sacrifício aos deuses, porque se acreditava que a ordem do Mundo Visível era garantida pela pureza ritual do Rei e pelo favor divino a ele concedido. Desastres climáticos, tragédias militares e outros cataclismos pediam o sangue real e a imolação do Rei pela mão sacerdotal.
Os reis primevos são, ainda, vistos como os grandes construtores — são eles os fundadores das cidades, como Ninrode, fundador de Nínive e Babel, e aqueles sob os quais são erguidos os templos, como o próprio Ninrode, arquiteto de Babel, ou Davi-Salomão e o Templo em Jerusalém. A Cidade, na qual o Rei jazia entronizado, e de cujo Palácio supervisionava o Templo, era considerada, afirma Lundquist, “a imagem exata da cidade celestial”, e se ordenava segundo formações astrais. Ela era sempre vista como assentada na Axis Mundi, no Umbigo do Mundo, o Monte Sagrado em cuja terminação, no coração do Santuário, se ocultava o Santíssimo — a primeira porção de Terra Seca que emergiu do Oceano Primordial e uma imagem do Divino e da Cidade Celeste. Como o Palácio repousava ao lado do Templo, o trono do Rei também estava no Topo do Mundo, donde seu domínio sobre a Terra era afirmado na medida em que irradiava do lócus sagrado e do Divino Entronizado no Céu.
É relevante notar como a afirmação dos dois reinos e das duas raças, com a estirpe dos deuses regendo a estirpe dos homens e com o Sagrado, no Complexo Templo-Palácio, manifestando o Divino aos homens através do Rei e do sacerdócio, conserva claros limites e rígidas fronteiras. Ao homem cabe, como Adão no Éden, Imagem de Deus no Jardim e sumo sacerdote do Divino, manter a Terra integrada, cosmicizada, unida e bem ajustada sob o Céu e através do ofício santo — a ordem no Mundo Terreal era garantida pela sua inteira deposição na sombra do Mundo Celestial, viabilizada pela santidade, pela obediência e pela submissão do Rei, o senhor dos homens e regente da Terra, e, por conseguinte, o representante da humanidade e da potestade terrena.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 27 de maio de 2023.