Sacerdócio, Sacrifício e Espírito Profético

Das oposições entre Aarão e Melquisedeque

Natanael Pedro Castoldi
7 min readMay 22, 2023

O herdeiro direto do xamã e dos ministros do Sagrado do paleolítico é o sacerdote, não o monge. Não há mística nas comunidades primitivas, porque não há doutrina ou prática para uma carreira religiosa desvinculada do Santuário — não há “espiritualidade” propriamente dita, portanto, uma vez que o simbolismo sacral segue muito compactado e centrado no lócus hierofânico, no local da efusão do Mito (esse é um território necessariamente comunal). O xamã, de imediato vinculado ao líder tribal, é aquele que assegura a conservação e a renovação do Cosmos, associada à repetição simbólica dos gestos e das ações dos heróis fundadores e do drama cosmogônico — essa conservação e renovação cósmicas determinam a inteireza de sua obra, abrangendo as curas (que são segundo o Mito), o retorno dos animais de caça (porque se comunica dos os Senhores dos Animais) e os rituais coletivos para revigoramento do Mundo, por ele ministrados sob a forma de sacrifícios, que vão dos bacanais (um retorno ao Caos Primevo) à imolação cruenta (no tempo mais remoto, do próprio chefe tribal, o homem por excelência). Pode-se dizer que a única verdadeira função do xamã é cosmológica — ele sobe e desce o Umbigo da Terra, conectando o Mundo Visível ao Mundo dos Espíritos, ou ao Sagrado. Isso é garantido pela meticulosa repetição de atos cosmogônicos e pelo pronunciamento de palavras de poder (estamos no campo metafórico/hieroglífico), quando o xamã perde sua face humana e a própria consciência, e fundamenta o intrincado sistema litúrgico, impregnado de regras e de processos, que caracterizará a função sacerdotal no Templo, cujo zênite será sempre o sacrifício.

Toda a religião tradicional que se firma sobre bases cosmológicas ancestrais conserva um sacerdócio. Na medida em que o Mito, no qual a coisa concreta era a manifestação literal da realidade transcendente, foi sendo superado, via progresso abstrativo, pelo Símbolo, quando a coisa é apenas uma representação sensível da realidade invisível, o sacrifício do chefe tribal, o idêntico mimético de toda a tribo, pôde ser substituído pela imolação de animais e de prisioneiros de guerra. Girard defende que a domesticação de animais de rebanho nasceu dessa necessidade cúltica, porque se passou a acreditar que o convívio do animal junto à comunidade dos homens, sendo servido como um rei, o humanizava, tornando-o um viável substituto do chefe e, portanto, uma representação expiatória de toda tribo. Algo similar com os prisioneiros de guerra, que eram integrados à tribo como se fossem príncipes, muito bem alimentados e servidos em todas as necessidades, para que pudessem representar o coletivo das pessoas que os capturaram. Esse tipo de progressão abstrativa, que vai se dirigindo às oblações vegetais, decorrentes do simbolismo atribuído aos tubérculos (partes do corpo do Filho da Corte Divina [o Céu e a Terra]) e cereais (cujas semeadura, colheita e moedura acompanhavam o Mito do Filho morrente e nascente, e o banquete comunal das massas, como se todos se servissem da morte expiatória e revitalizante, era análogo ao banquete canibal dos primórdios), pede por uma complexibilização ritual: novos gestos e novas fórmulas verbais devem ser mobilizados para garantir a transubstanciação dos elementos e a sua transformação do Profano em Sagrado, de particular em Absoluto, ou Símbolo do Divino.

A função cosmológica do xamã, vertida na obra sacerdotal, de vital importância para a estruturação da sociedade, viável na irradiação do Sagrado, progride para técnicas cada vez mais elaboradas, mas também demanda que os oficiantes do ritual sejam eles mesmos ritualmente puros e legítimos ministros expiatórios. Desde os primórdios, a figura do xamã foi separada da vida comum, para conservar sua condição fronteiriça, no limite da realidade, e as técnicas e segredos dos mitos e dos ritos ficaram restritos ao seleto grupo sacral, progredindo transgeracionalmente por transmissão oral e por unção dispensada dos anteriores aos posteriores. É por essa razão que as diferentes religiões clássicas, sacerdotais, desenvolveram diferentes formas de hereditariedade, seja sanguínea, por linhagem, seja por iniciação e integração formal a uma linha sucessória ininterrupta.

Conservada a condição cosmológica tradicional, do Templo como lócus hierofânico, como Espaço do Sagrado, e do rito, no Templo, como manifestação do Tempo Forte, o ritual, sempre sacrificial, é o que há de mais importante — não existe nada no Mundo que poderia ser mais real do que o Ponto Quente, teofânico, de transubstanciação do Divino, porque é desse canal que a ordem social e ordem cósmica se alicerçam. Por isso a literatura antiga associa desgraças climáticas, derrotas em guerras e outras tragédias ao problema da legitimidade sacerdotal, de desvios litúrgicos e corrupções no ofício expiatório, da profanação ou dessacralização do Santuário. Questões de tão vasta importância solicitam a conservação de um sacerdócio ritualmente puro e justo, para que possa ser justificador do povo, e uma das principais garantias insta no pertencimento à genealogia autorizada, que vai buscar raízes no herói fundador e na própria delegação do Divino. Quem mais poderia, senão o último representante aarônico, garantir ser real e representativa a transubstanciação dos elementos?

Por isso, onde há sacrifício expiatório, precisa haver sacerdócio, e onde há sacerdócio, há necessariamente linha sucessória. O ataque ao sistema sacrificial é um ataque à classe sacerdotal, que não tem função própria e exclusiva fora do Santuário. Repito: a sustentação da necessidade de atualização do sacrifício expiatório pressupõe o sacerdote autorizado. É essa prerrogativa, detentora de importância capital, que tornou as classes sacerdotais de todas as religiões clássicas supremamente poderosas e detentoras de um massivo poder secular, quase sempre maior do que o dos reis, que estão à mercê da legitimidade que aquela pode lhes garantir. O exemplo mais claro é o do sacerdócio egípcio, detentor de colossais complexos de templos e dono de uma próspera Economia do Sagrado, capaz de derrubar Aquenáton e destruir por inteiro o seu projeto reformista, que visava um monoteísmo cosmoteísta. Outro exemplo é o do budismo e do jainismo, este em sentido contrário: contra o bramanismo e a antiga religião védica, com seu sacerdócio todo-poderoso, reis e príncipes de pequenos reinos se tornaram financiadores de uma nova modalidade religiosa, que se pode chamar de mística, porque rejeitava o sistema sacrificial e a natureza cosmológica da religião tradicional, optando por uma vereda pessoal, independente dos santuários bramânicos. A mística será, pois, uma interiorização moral do sistema sacrificial, porque apregoa sacrifícios individuais através de um rigoroso e austero ascetismo, pelo qual o místico transforma a si mesmo em sacrifício “santo e agradável”, preferindo o ermo genesíaco, ou o ajuntamento em comunidades de iguais, à visitação ao Santuário. Este se tornará monge, não sacerdote.

Não sendo descendência de Aarão, são da estirpe de Melquisedeque

É notável como já em Números o carisma profético se manifesta em Israel, aparecendo fora da Tenda, do complexo Templo-Palácio. O Poder Carismático, da descida do Espírito Santo “entre o Povo” e independentemente do ofício sacerdotal, será mais um crítico do que um aliado do sacerdócio, sempre alertando para os desvios litúrgicos, para a corrupção e para o esquecimento da pureza auroral do Deserto, passíveis do Juízo de Deus. Os profetas manifestam o poder do Senhor por meios não litúrgicos, e são mais emissários da tragédia e da dissolução da Ordem, decorrentes do Pecado, do que ministros do revigoramento cosmológico, que seriam os sacerdotes — na realidade, eles vêm proclamar a sombra da ruína em vista da ineficácia do sacerdócio, dos crimes dos reis e da idolatria do Povo. E o fazem sem a legitimidade hereditária, genealógica, embora com a legitimidade carismática, da infusão direta do Espírito Santo sobre si ou pela transmissão direta da própria unção ao seu sucessor. Não sendo descendência de Aarão, são da estirpe de Melquisedeque, sacerdote de El antes de Abraão e do Tabernáculo, do qual Cristo herda do sumo sacerdócio e de quem, Corpo de Cristo, somos nós mesmos “sacerdócio real”.

Essa é a culminação do espírito da Profecia no lócus da Escatologia: o herodiano Templo não é mais habitado pelo Espírito de Deus, e no Tempo do Fim, que caminha para o término dos Tempos e a conclusão da Era, o Espírito de Deus estará descendo sobre toda a carne. Consumado, de uma vez por todas, o Sacrifício do Cordeiro de Deus, do qual o sistema sacrificial veterotestamentário era apenas um tipo, não há mais ofício sacrificial, e todos os crentes são também sacerdotes melquisedóquicos. O Mundo é, agora, todo ele um Campo de Sangue, o território da Guerra Apocalíptica entre a linhagem de Caim, filha da Serpente, e suas hostes de demônios, e a semente da Mulher, ao redor da qual acampam os exércitos angelicais. O Mundo, todo ele, é agora hierofânico, porque o carisma do Espírito desponta em toda a parte e as obras do Diabo estão visíveis aos olhos dos santos de Deus, e proliferam por todo o lado. É Tempo Suspenso, é Limiar. Tendo sido revelado o Eschaton, a fronteira entre o Mundo Sensível e o Mundo Invisível é tênue, sempre colapsando. Não há mais outro sacrifício que sustente e revigore a ordem deste Mundo Morrente. Agora é só o Mundo Vindouro, Eterno, que já é, mas que nos será quando nele ingressarmos pelas Bodas do Cordeiro.

Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar.
Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem. Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade. — Jo 4:19–24

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) publicado no meu perfil pessoal do facebook em 22 de maio de 2023.

--

--

Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

No responses yet