Saúde como Teologia

novas doutrinas de uma nova igreja

Natanael Pedro Castoldi
3 min readSep 4, 2021

O jacobino do Supremo disse que liberdade de expressão não garante a sustentação de “posições anticientíficas”.* Quando Aldo Valli, Vírus e Leviatã (2021), definiu o tipo de Estado que desponta na Pandemia como Despótico-Terapêutico, ele tinha em vista esse tipo de afirmação antiocidental: trata-se de uma Democratura na qual o Estado, sob o comando da “Ciência” e das demandas sanitárias, a Saúde, assume poderes supraconstitucionais. Nesse contexto, o cidadão se torna um paciente e o governo se perverte numa somatocracia. Segundo Valli, o Despotismo Terapêutico é, também, um regime dogmático e fideísta: a Saúde, conduzida pela Ciência, é panaceia na qual todos devem confiar e a qual todos devem se entregar.

Cada poder, em cada dispensação, assume um mito, determina uma base existencial que é pressuposta, axiomática, suprajurídica

Essa última característica, a do dogmatismo que pede por fé, é especialmente importante para entender a afirmação do jacoministro. Cada período da história ocidental foi regido por um de três poderes civilizacionais: Eclesiástico, que é Sacerdotal, Monárquico, que é Militar, e Burguês, que é Comercial. Cada poder, em cada dispensação, assume um mito, determina uma base existencial que é pressuposta, axiomática, suprajurídica ou a própria matriz de determinação da Lei. No contexto de predomínio Sacerdotal, como o Medieval, no qual reis e imperadores eram legitimados e ungidos pelos sacerdotes e pelo papa, a preocupação máxima residia na economia da salvação da alma individual, na garantia de sua participação diante de Deus e na sua “fuga” do Inferno. Dessa base, podiam ser relativizados e suspendidos certos ordenamentos jurídicos habituais e reformulados regimentos de exceção. No contexto do Estado Nacional militarizado, o cumprimento da missão da Nação, rumo à máxima magnitude, pedia por patriotismo e devoção cívicas e viabilizava quebras da Lei. Dentro do desenvolvimento do próprio Estado ocidental em sua “Imperialização” globalista, vemos a dispensação mudando e a legitimidade do Poder passa a residir numa abstração bastante ampla e de caráter internacionalista: a máquina consumista pede por um controle cada vez maior dos corpos, de seus apetites e de suas inclinações, e a superexcitação de corpos hiperestimulados, reduzidos ao momento presente e sem qualquer resiliência moral e cognitiva, abre o terreno para a deposição de todas as garantias civis no altar da Democratura, caso as pessoas sejam suficientemente apavoradas. Essa é Vida Nua, conforme Agamben: à flor da pele e de peito vazio, as populações só querem saber de salvar a própria carne, de sobrevivência biológica, tal como de prazer fisiológico. Em nome dessa sobrevivência, a Saúde ganha status de Teologia e a Ciência adquire o caráter de Igreja.

A relativização da liberdade de expressão já é um sinal da ruptura da polaridade Estado/Igreja e do agigantamento do Estado, que não tem mais rival (PRODI, 2017). Mas o Estado, ou rivaliza com a Igreja, ou é ele mesmo a Igreja. A Saúde, na Ciência, é o passo largo para uma nova religião, uma religião civil. É sobre essa base teológica que a Lei pode ser repensada e que a Justiça pode ser reformulada. Eis a nova matriz de autoridade e de legitimação: se está em acordo ou não com o presente dogma e com seu “vaticano”. É aqui que se separam os cidadão dos párias.

*Ministro do STF “diz que posição contra a ciência não é liberdade de expressão” — notícias uol, 19 de agosto de 2021

PRODI, Paolo. Profecia, Utopia, Democracia. In: CACCIARI, Massimo; PRODI, Paolo. Ocidente sem Utopias. Belo Horizonte: Âyiné, 2017.

VALLI, A. M. Vírus e Leviatã. Curitiba: Danúbio, 2021.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 20 de agosto de 2021.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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