Senhor Deus da Destruição

Uma análise literária dos capítulos iniciais de Gênesis

Natanael Pedro Castoldi
7 min readMar 18, 2024

A análise literária empreendida por Miles (Deus: uma biografia) dos capítulos iniciais de Gênesis nos põe diante de dois Nomes Divinos, representativos de duas expressões, ou de duas faces, do mesmo Deus: Elohim, “Deus”, e YHWH Elohim, “Senhor Deus”, ou “Senhor”. Independe da chamada Hipótese Documental a perspectiva de que “Deus” e “Senhor”, quando aparecem, entregam, cada qual e em seus respectivos textos, características suficientes para evidentes distinções de tipo literário, como se fossem duas “personalidades” pelas quais o Criador Se faz conhecer. Do Gênesis 1 em diante, Elohim, “Deus”, apresenta todas as marcas da divindade uraniana em seu sentido mais elevado, quase otiosus: como geômetra celestial, é encontrado em pleno trabalho, impondo precisas ordem e medida na Criação, numa disposição decidida, irrefreável, conquanto não apressada e altamente benevolente — nada do que cria parece atingi-Lo, perturbá-Lo, demonstrando um absoluto controle sobre Tudo e uma despreocupação notável com os caminhos das criaturas, que devem seguir o previsto até a sua máxima exuberância. Por essa razão não O vemos impondo quaisquer limites ao Homem. Gênesis 2, e dele em diante, YHWH, “Senhor”, uma vez aparecendo, sempre traz consigo as marcas da divindade atmosférica — tempestuoso, temperamental e muitíssimo interessado com os caminhos das criaturas, sobretudo com os caminhos do Homem.

As colorações de Gênesis 1 e Gênesis 2 são demasiado distintas para que se ignore o que significa a presença de Deus e a presença de Senhor nos relatos. Sob Elohim, no capítulo primeiro, não há ainda Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e toda a Terra, toda a Criação é dada ao domínio do Homem, que deve se multiplicar abundantemente. Sob YHWH o Homem é posto numa região, numa parte da Criação, a partir da qual, guardando-a e cultivando-a, cumpre a sua comissão. Ele é produto de uma intervenção muitíssimo direta do Senhor, que o molda, como oleiro, diretamente do Pó e que lhe sopra Seu fôlego nas narinas. E está inicialmente sozinho, solitário, entre a animália. O entendimento de Imagem e Semelhança de Deus, do que se pode apreender apenas em Gênesis 1, é aquele da replicação, enquanto semelhança de Elohim, do ato criativo divinal através da geração de filhos, que são segundo a imagem dos pais e conforme a Imagem de Deus, e do domínio régio sobre a inteireza do Mundo, à semelhança do monarca celestial, o Criador. Em Gênesis 2, pois, entendemos que a Imagem e a Semelhança de YHWH correspondem à forma interna e vital do Homem, que exteriormente é feito de Pó, e que elas se expressam segundo uma disposição moral, baseada em uma limitação ou restrição que conserva o Homem dentro de fronteiras bastante rígidas: ele não deve comer do Fruto do Conhecimento. Somos apresentados, então e pela primeira vez, a uma espécie de dialética Elohim/YHWH: Aquele dá, Este impõe limites à e circunscreve a doação, porque o Homem é Imagem e Semelhança de Deus, mas não pode ser exatamente como Ele, segundo a argumentação da Serpente e aquilo que o Senhor diz em Seu diálogo interno a respeito do Homem — tendo Pecado e tomado para si o Conhecimento, só faltaria viver eternamente.

Gênesis 3 é uma continuidade javista de Gênesis 2 e ali vemos como, sob a égide da Morte, o domínio do Homem sobre a Criação, expulso de seu domínio primeiro, o Jardim, desce ao nível da subordinação às intempéries, e que a sua capacidade reprodutiva é refreada pela perspectiva dos sofrimentos excruciantes vinculados ao parto da Mulher. Do quadro ideal apresentado em Gênesis 1, estamos agora num cenário análogo ao da realidade humana como a conhecemos, sob a Morte, que é fruto do Pecado, da transgressão do Primeiro Limite, conhecido em Gênesis 2. Digno de nota é que, apesar do belíssimo ato criacional descrito em no versículo 7, Gênesis 2 não chega a falar abertamente do Homem como “Imagem e Semelhança de Deus”, ou, no caso, “do Senhor” — antes, neste capítulo a Semelhança do Homem é encontrada em Eva, não no Senhor, de Quem contrasta notavelmente no capítulo 3: o Homem, subvertendo a Ordem, se tornou “como um de Nós” no que diz respeito ao Conhecimento, de maneira que, para que não seja também Eterno, teve de ser afastado do Jardim e da Árvore da Vida.

Em todos os relatos eloístas se conserva a ideia do Homem como “Imagem de Deus”…

Gênesis 6 desenvolve a trama dos embates do Deus/Senhor com o Homem em vista da alarmante fecundidade humana. Contra as limitações supracitadas, a profusão fecunda do Homem decorre do desvio tecnológico, que reclamou domínio titânico sobre a natureza e suprimiu o largo das limitações naturais impostas ao Homem achado em condição primitiva e pastoril. De Caim, assassino de Abel e objeto especial da maldição adâmica — como um inimigo da Terra, que não lhe restituirá o esforço do trabalho e sobre a qual andará errante - há o intento de afastamento da Face de Deus e, desligado da Terra, de agarrá-la artificialmente com cidades e maquinações, e então tem descendência transbordante, tiranizando sobre todo o Mundo — quase como uma versão diabólica daquilo que fora comissionado ao Homem em Gênesis 1. Segundo Miles, essa característica de multipliação pujante, tal como a descrita em Gênesis 6:1–4, que fala dos “filhos de Elohim”, de fato repercute traços de Gênesis 1. Em todos os relatos eloístas se conserva a ideia do Homem como “Imagem de Deus”, tal qual se lê em Gênesis 5:1–3, quando Caim é excluído da posição de primeiro filho de Adão, substituído por Sete, considerado “imagem de Adão” assim como Adão é apresentado enquanto “imagem de Deus” (daí o cerne da qualidade do Homem como Semelhança de Deus, porque transmite a imagem divina aos seus próprios filhos); todavia, no relato javista do capítulo 4, não há menção à “imagem de Deus”, mas apenas à coabitação entre homem e mulher para a geração de Caim.

… no relato javista não há menção à “imagem de Deus”…

Dá-se a entender na análise literária de Miles que Gênesis 6 é um capítulo misto, um ponto culminante da dança “eloísto-javista” dos capítulos predecessores. O relato javista é melhor perceptível nos versículos 5–8, descritivo do anúncio do Senhor a respeito do Dilúvio, decorrente, pois, do Seu “arrependimento” de ter criado os animais e os homens. O Dilúvio, aqui, é visto como um ato explosivo, de ira transbordante, para a limpeza da Terra através da sua destruição. Em Gênesis 6:11–22, por sua vez, o “mito” eloísta predomina: Deus nele jaz como em Gênesis 1 — não é temperamental e não age a partir de “emoções”, parecendo nutrir perfeito conhecimento e perfeita previdência de tudo o que está para realizar, em vista de uma nova aliança a partir de uma nova humanidade noáquica, e o faz com precisão certeira, passo por passo, com total objetividade e economia de movimentos, refazendo a bênção e a comissão de fertilidade, de povoamento e de domínio sobre toda a Terra, nos versículos 1 e 2 do capítulo 9. A coloração diverge daquela que vemos em Gênesis 8:20–21, quando o Senhor abençoa Noé em resposta ao aroma do sacrifício de primícias que ele ofertou no altar, prometendo não mais amaldiçoar a Terra — o coração do Homem é, ao fim e ao cabo, incorrigível.

Após o Dilúvio, no sexto versículo do capítulo 9, que é essencialmente eloísta, Deus impõe um mecanismo lapidar à humanidade: “Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu.” Essa sentença divina, que parece legitimar a violência humana como medida justa à violência humana, é proferida logo depois do Dilúvio, que foi justificado em Gênesis 6:11–13 como resposta à violência do Homem. Como isso pode ser entendido, seguindo a ordem do texto? Segundo Miles, embora o redator e o leitor originários pudessem ter em mente que a importância que Deus dá ao Homem, no sentido de inibir o derramamento de sangue de homem contra homem, decorre do fato de o Homem ser portador da Imagem de Deus, de maneira que a reverência à vida humana reflete a reverência a Deus, não há, no texto em si e até o ponto ao qual chegamos em Gênesis 9, nenhuma ordem clara de Deus/Senhor no sentido da prestação de culto e de reverência a Ele — todas as demonstrações cúlticas são, até agora, espontâneas e dirigidas voluntariamente do Homem para Deus. Isso significa que, em termos literários, a validação de algum nível de violência na sociedade humana não vem exatamente para constranger a violência de homem contra homem em sentido cúltico/teológico, mas como um meio de restringir o potencial destrutivo do Homem enquanto criatura — a ausência de retribuição ao homicídio de Caim contra Abel incorreu num aumento vertiginoso do potencial destrutivo humano em geral, já que o circuito da violência não foi amenizado ou sanado diretamente contra Caim, ao ponto da humanidade pré-diluviana ter se tornado monstruosa. A permissão ao ciclo da violência retributiva viabilizou a diluição e o anestesiamento do potencial destrutivo do Homem, cindido em rivalidades diversas e fragmentárias, em divisões de clãs, tribos e reinos, enfraquecedoras da humanidade — donde a rebeldia de Ninrode em Babel e o esquema escatológico ligado ao Quarto Império, que é o Reino do Anticristo.

Isso é assim porque, se Deus é o dispensador das bênção de multiplicação e de domínio do Homem sobre a Terra, Ele, o Senhor, é igualmente Aquele que impõe limites ao potencial reprodutivo do Homem e ao seu poder, porque, n’última instância, apenas Ele pode ter o verdadeiro “monopólio” dos poderes Criativo e Destrutivo. Ele, de fato, não tolera rival ou igual — quer Criador, quer Destruidor.

CASTOLDI, Natanael

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.