Sobre a Ciência da Teologia e os Desvios Ideológicos de Nosso Tempo

Dos perigos da influência acadêmica sobre a Igreja

Natanael Pedro Castoldi
10 min readOct 3, 2024
Iluminura medieval de um leão, baseada em relatos e sem o conhecimento direto do animal

Talvez uma das maiores desgraças para a fé cristã de nosso tempo seja a inversão polar entre a vida da Igreja e a produção acadêmica no terreno da produção teológica. Estou com isso dizendo que parece que esta está a nutrir aquela, mais do que o contrário, no que concerne aos conteúdos teóricos mobilizadores definidores e fomentadores da práxis cristã.

Não se ignora, aqui, que o Culto e a Academia acompanham a vida da Igreja desde o princípio. Já o apóstolo Paulo abriu uma escola no ginásio de Tirano, em Éfeso, para instruir os neófitos. A tensão das partes, por conseguinte, sempre ocorreu e apresentou oscilações de fluxo de influência, mas o que historicamente se deu, no campo do encontro congregacional, foi a prevalência da tradição, bem consolidada na continuidade litúrgica e do ensino, respeitando a autoridade da antiguidade, por sobre a discussão teórica e teológica, filosófica, polemista e apologética dos centros de estudos — à exceção de períodos de singular complexidade, a influência desses lugares e de seus embates na vida da Igreja se deu orgânica, indireta e gradualmente, passando por diversas filtragens e purificações, adaptações e seleções. Evidentemente, nas crises existenciais da Igreja, no seu combate aos hereges ou em períodos demandantes de reformas internas, após o cotejante acúmulo de nocividades, polêmicas teológicas e litúrgicas de nível acadêmico, e alocadas em seus espaços de legitimidade, tiveram lugar e função. Mas casos tais são sempre exceções, não a regra — de regra, os divertimentos bizantinos dos teólogos em suas práticas universitárias, que envolvem a compulsão pela formulação e pela exposição de teses especializadas, responsivas a debates internos muito bem delimitados e de áreas bastante específicas, devem ficar o mais bem guardados que for possível dentro dos muros da academia, onde conservam sua liberdade expressiva e onde se tornam virtualmente inofensivos à Igreja.

O fato é que a teologia, enquanto ciência, possui suas leis, métodos e objetos próprios. O objeto da teologia é a Igreja, mais do que a Escritura, porque por Igreja se faz referência a todo o cabedal documental da história eclesiástica, dos Apóstolos e da Patrística em diante, e de como o judaísmo de até o Séc. II, incluindo o Antigo Testamento, foi assimilado pela Igreja desde o Séc. I. A Escritura entra na teologia a partir da Tradição — isto é: de seus usos consagrados ao longo dos milênios e das diversas ressignificações e aplicações de seus conteúdos nos diferentes tempos, nas diferentes culturas e nas variadas confissões. Nenhum teólogo sério poderá ficar sem participar da própria tradição de sua ciência e da história interna de seu objeto, jamais lhe sendo permitida a inovação despropositada, sem método e alheia a qualquer precedente. Para tanto, ele deverá receber uma preparação especial em capacidades linguísticas, retóricas e argumentativas, dispondo de instrumentos exegéticos e hermenêuticos e do acesso a uma ampla cultura erudita e humanística, assim como da habilidade de se localizar e de pesquisar dentro desses meandros, para que possa elaborar registros de valor científico, conforme a linguagem e a discussão própria de sua área — o que quer dizer: que esteja em diálogo com seus pares. E mesmo que se possa considerar a Escritura em si como a fonte primeira da Verdade, porque nela está a Revelação verbal de Deus, o uso acadêmico da Palavra demanda um esclarecimento epistemológico, ou metodológico, que não está contido nela mesma.

… o uso acadêmico da Palavra demanda um esclarecimento epistemológico que não está contido nela mesma.

Ainda assim, a base vitalizadora da teologia é a vida da Igreja, que é o seu objeto, como já dito. Suas leis e métodos, enquanto ciência, são descobertos dentro dela mesma, baseados que estão na maneira de ela ter se definido e conformado historicamente e na sua própria natureza enquanto área do conhecimento — em todo o caso, essas leis e métodos devem ser adequados ao seu objeto, e não é o objeto que deverá se adequar a ela. Alguém poderá objetar que a teologia terá por objeto a realidade por inteiro, pois se refere a toda a existência, ou Criação, e discorre sobre todas as demais ciências, sendo ela a rainha dentre elas e acima delas. Correto! Todavia, o alcance universalista do Evangelho é anterior à teologia propriamente dita — é a Igreja, enquanto lócus da Verdade, que se impõe sobre todas as coisas e que considera toda a Criação como orientada ao Cristo, em Quem também convergiram todas as partículas de verdade no sistema legal e sacrificial judeu, assim como nas filosofias e sistemas éticos greco-romanos. Quanto a teologia se dirige a todas as coisas, ela está o fazendo através da natureza de seu objeto, que é a Igreja, e respondendo à vocação universalista da própria Igreja e do Evangelho — não poderia ser diferente, pois o propósito de a teologia fazê-lo não é genérico, como se ela se deferisse indiferentemente a tudo quanto existe, mas implica na maior glória de Deus, donde se reafirma que o seu objeto não é a realidade indistintamente, mas a Igreja. É através da Igreja e de sua comissão que a teologia assume a sua própria vocação. O fato de servir ao seu objeto, a Igreja, e de assumir a sua perspectiva universalista (em sentido do abarcamento de toda a Criação), deveria conservar a teologia relativamente autônoma, ou não implicada ou condicionada por interesses externos, pragmáticos e materialísticos, de outras áreas ou de motivações eminentemente políticas, horizontalizadas e ideológicas.

Outros podem objetar aqui que o objeto da teologia não é a Igreja, mas Deus. É verdade que o objeto último da teologia é Deus, como é a definição etimológica de seu próprio nome, mas, na prática, o acesso a Deus por vias unicamente racionais, sem o recurso à tradição eclesiástica, não seria diferente da metafísica filosófica pagã, desprovida da clareza que temos a respeito do Criador e Senhor Jesus nas Escrituras — sem as quais atingiríamos o Divino genérico e não teríamos exatamente teologia, em sentido estrito, mas filosofia. Agora, se usamos a Escritura para acessar a Verdade e o conhecimento do Verdadeiro Deus, o Senhor Jesus Cristo, e se intentarmos fazê-lo desde a perspectiva acadêmica, isto é: teológica, não poderemos prescindir da tradição eclesiástica e dos seus usos históricos e consagrados, porque é na história que as doutrinas foram desenvolvidas, destrinchadas desde a raiz da Palavra, muitas das quais sendo-nos óbvias apenas porque somos herdeiros naturais dessa mesma tradição, mas que não seriam necessariamente óbvias na leitura crua e inédita da Escritura — que, inclusive, jamais foi lida dessa maneira, sendo acessada sempre com o suporte de intérpretes, de partícipes da Igreja e de sua tradição, desde evangelistas e profetas até mestres e pastores. Neste sentido, o objeto último da teologia é o Deus da Igreja — a Igreja, portanto, e Deus através dela, donde ser o Deus o Criador, Único e Triúno (Pai, Filho Encarnado e Espírito Consolador). Deus de uma forma mais direta e altamente individual é um objeto mais apropriado para a Mística e para a sua própria tradição.

Ademais, se vê já como as igrejas eram fundadas sobretudo pela transmissão oral do Evangelho e da Sã Doutrina…

Pode-se objetar, aqui, que os próprios apóstolos, fundadores da teologia cristã, não tinham o mesmo acesso a uma tradição consolidada e nem ao instrumental característico da teologia, mas mesmo assim a fizeram. Impõe-se, todavia, o fato de que eles estiveram em contato direto com Deus através de Cristo, no Ministério, sendo instruídos por três anos pelo Senhor (Paulo na Arábia), e, depois, acompanhando-O Ressurreto (Paulo na teofania da estrada de Damasco). Cristo mesmo fundou a Igreja, sendo Ele a Pedra Angular e pondo-a, a Igreja, por sobre Pedro, o Primeiro Fundamento, e a sua confissão, e desde a transmissão de Jesus aos apóstolos, e do consenso dos Doze, formulou-se a chamada Sã Doutrina, desdobrada do ensino de Cristo e da experiência concreta, visionária e mística com o Senhor, que deu bases de qualidade carismática para diversos desdobramentos teológicos e doutrinários — desenvolvidos, primeiro, da ancestral tradição judaica, de seus próprios documentos, de seus próprios métodos e do conhecimento de suas expressões culturais (Paulo mesmo foi treinado rabino e demonstra domínio dos modos de leitura e de argumentação rabínica, assim como conhecimento da tradição oral), e, logo em seguida, de termos e de estruturas lógicas extraídas da filosofia gentílica, abrindo o precedente que imperou nos séculos subsequentes e que definiu a teologia enquanto ciência. Ademais, se vê já nas cartas apostólicas, contidas no Novo Testamento, como as igrejas eram fundadas sobretudo pela transmissão oral do Evangelho e da Sã Doutrina, com um acesso muito limitado a uma quantidade reduzida de rolos do Antigo Testamento, e que estavam sendo munidas de Escritura neotestamentária gradualmente, a maior parte dela motivada por questões emergentes na vida da Igreja, como respostas a um cabedal de necessidades pertinentes à Igreja, ou às igrejas — donde se reforça a perspectiva de que o objeto originário da teologia é a Igreja, porque é a partir do diálogo com as circunstâncias e problemáticas manifestas que os apóstolos produziram melhores elaborações e sistematizações doutrinárias, de maneira que, hipoteticamente, se outras coisas tivessem acontecido, embora certamente a Verdade seguisse sendo a mesma, as formulações e as denominações doutrinárias poderiam ter encontrado outros formatos.

Eis o ponto da minha elucubração: a teologia é serva da Igreja e deve buscar sua nutrição na vida da Igreja, considerando que a sua existência vigente, atualizada cotidianamente pela repetição do encontro da congregação dos fiéis e pela repetição das liturgias e das formas cúlticas, invariavelmente sustentadas pelo ensino consagrado, que é aquele que reforça o sentido espiritual do culto e da vida cristãs, continuamente refluindo para o Evangelho puro e simples, que é a base da doutrina e o fundamento histórico e sapiencial da Igreja e de sua comissão escatológica, é fruto de uma continuidade ininterrupta e a forma atual de todos os desdobramentos históricos, aos quais os teólogos buscam nas documentações reconhecidas. Neste sentido, a Igreja segue tendo a legitimidade de ser o objeto vivo da teologia. O que significa que os teólogos devem ser pastoreados, se eles mesmos não forem pastores, e devem estar em contato direto com o campo, com o lócus objetivo, que está presente em fenômeno agora mesmo, do nascedouro de sua ciência, vivendo eles próprios a vida da Igreja e tecendo contato devocional com o Senhor Jesus, que é a Fonte. Formar-se-á um bom biólogo e naturalista que desconhecer e que não visitar recorrentemente o território propício de sua ciência, isto é: a floresta ou o campo? Preso em seu gabinete, só lidará com antiguidades mortas e com atualidades frias, jamais aprendendo a respeitar o objeto de sua área, donde a tentação de tentar modificar o objeto para que ele se adeque às suas abstrações — então ele transgride os princípios empíricos de sua ciência e subverte os seus métodos, transformando as suas próprias ideias em objetos da biologia, e não o contrário, razão pela qual ele não pode mais ser considerado exatamente um biólogo, mas alguma outra coisa, talvez um philosophe ou um ideólogo.

… como acontece, hoje, com a TL e a TMI, e algo de neocalvinismo…

O mesmo pode ser considerado entre os teólogos, quando estes não estão submetidos à vida da Igreja, que é o objeto propício de sua ciência e a fonte carismática do sentido de todo o seu trabalho. Preso em sua biblioteca, ele poderá saber muitas coisas, ser um colecionador de arcaísmos, e, preso em seu computador, poderá estar atualizado de todos os debates recentes e, ainda assim, nada disso ter valor real para a sua própria área, porque o contato com o objeto está perdido. Não haverá vida alguma em sua atividade, restrita que estará à emulação sofística de técnicas retóricas e de termos vazios, aos quais sabe descrever, mas que não compreende verdadeiramente, porque não os vê e não os sente em sua expressão viva na realidade. Por isso, bitolado em seu universo de especializações e de achismos, ainda mais se estiver inflamado pela soberba presunçosa tipicamente acadêmica, poderá se tornar um agente nocivo na vida da Igreja, se tentar influenciá-la ou transformá-la. Porque essa é a tentação natural de toda a área científica do terreno das humanidades, quando perdido o respeito pelo objeto: seu propósito se perverte e se torna, à luz da horizontalização política, ideológica e militante, transformar o próprio objeto artificialmente, propositalmente, em lugar de entendê-lo e de acompanhar in loco os seus próprios desenvolvimentos e os seus próprios mecanismos — se os entende, tenderá a usar tal conhecimento para manipular a infraestrutura do objeto, visando o seu redirecionamento para a realização de propósitos que lhe são exóticos e que são apropriados aos interesses da classe acadêmica e ideológica. Quer dizer: o perverterá para fins praxiológicos e políticos, servindo a algo que lhe é externo, imanente e temporal. Porque a própria formação de uma classe acadêmica possui inclinações políticas viscerais e se move por interesses de classe — se uma classe tal absorve parte da vida da Igreja, porque sequestra para si a produção teológica legítima (a Universidade tende a se considerar o lócus exclusivo da produção de conhecimento aceitável), retroagirá sobre a Igreja desviando-a de seus caminhos, como acontece hoje, no Brasil, com a TL e a TMI, e algo de neocalvinismo, sem se ignorar outros muitos exemplos possíveis.

O fato é, ao fim e ao cabo, que o largo da produção teológica histórica se deu desde dentro da vida da Igreja, como é o precedente já apontado dos escritos apostólicos neotestamentários. Os grandes teólogos eram bispos e cristãos ativos, alta e pessoalmente implicados na tradição e no fenômeno da fé. Se há um espaço legítimo para escolas teológicas, ou academias, esse espaço não necessariamente é análogo à Universidade, podendo estar radicado no próprio seio da Igreja, como geralmente foi o caso, embora parcialmente destacado do fluxo cotidiano e cúltico, para não interferir nele com questões de menor valor existencial e de menor interesse comum, evitando incomodações e escândalos desnecessários, ao mesmo tempo em que se mantém perto o suficiente para ser disciplinado e reorientado no caso de fomentar tendências excessivamente desviantes e viciosas — com a permissão de admoestar e polemizar com a Igreja maior, se percebidas inclinações perigosas e heterodoxas. Assim deveria ser, embora infelizmente não esteja mais sendo em incontáveis lugares, se a teologia é serva de seu objeto, ao qual ama, e não senhora, para tiranizá-lo.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 3 de outubro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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