Sobre a “Demora” da Vinda
Percepções escatológicas
Um dos meus textos escatológicos favoritos é 2 Pedro 3, que dá especial ênfase à Ekpyrosis Universal, a destruição completa da Velha Criação pelo fogo. É importante notar a sugestão do apóstolo Pedro de que pertencia ao ensino dos apóstolos a perspectiva da demora da Vinda, de maneira que ela será escarnecida por zombadores concupiscentes, à semelhança daqueles que viveram às vésperas do Dilúvio, questionando a eficácia da promessa: a demora da Volta, segundo eles, é indicativo de que a promessa é mentirosa, até porque não faz sentido que o Mundo acabe, uma vez que ele não foi abalado desde o princípio. Aqui está refletida uma doutrina cosmológica gentílica, de que cada coisa que existe tem o seu lugar fixo e perene dentro no Mundo e que o Mundo, portanto, não apresenta mudança.
A essa inclinação pagã, o apóstolo responde com a acusação de esquecimento proposital: paganizados, não reconhecem mais o fato de que o Mundo não é eterno e fixo, uma vez que teve um começo, tendo sido criado pela Palavra de Deus e quando o Senhor afastou o Oceano Primordial para o Abismo na medida em que levantou a Terra sobre seus pilares. E como o Mundo foi uma vez criado, ele pode apresentar mudanças e variações cataclísmicas que contradigam as sentenças gentílicas: tendo sido retirado do Oceano Primevo, voltou a ser imerso nas Águas do Abismo, que se reergueram na ocasião do Dilúvio, quando o Criador aboliu os limites dos Mares para destruir a humanidade ímpia e refundar a Terra. Desse modo, o Mundo não é eterno e imutável, como baseado numa cosmologia de leis naturais ou impessoais, mas é criado pela Palavra de Deus e seu curso é definido pelo arbítrio divino, porque Deus, pela Sua Palavra, sustenta agora os Céus e a Terra até o Tempo do Fim, porque reservou a Velha Criação à destruição derradeira pelo Fogo.
É notável, como demonstra Wendt (À Procura de Adão), que foram cristãos os defensores da doutrina do cataclisma universal e das revoluções terrestres e cosmológicas, baseados nas Escrituras, pela qual se fizeram oponentes dos naturalistas ilustrados, que desde, pelo menos, o Séc. XVII, apregoavam a doutrina da imutabilidade e fixidez perene do Mundo. O que se percebeu ao longo dos séculos, principalmente a partir da derrocada das explicações racionais para a existência de fósseis (um ar fertilizador que inseminou formas parciais e líticas dentro da terra virgem), é que, de fato, a história geológica da Terra é toda cheia de eventos dramáticos de larguíssima escala.
Para os cristãos primitivos, assim como para os judeus místicos e escatológicos, a Criação conhecia transformações substanciais a depender das distintas “dispensações”, donde a ênfase judaico-cristã no processo histórico enquanto progresso revelacional. Como vimos noutra ocasião, o livro do Apocalipse sintetiza sobremodo bem esse mistério: uma vez que a Criação é sustentada na Palavra de Deus, Ela vai sendo infundida gradualmente de novidade na medida em que se reflete, na Terra, aquilo que inicialmente fora realizado no Céu — com o fluxo reverso, com novidade no Céu a partir de mudanças na Terra, como vemos no Novo Cântico do Apocalipse 5. Donde ser de fato inequívoca, na Escritura, a distinção fundamental que existe entre o pensamento greco-romano e aquele cristão primitivo.
… quando o Dia do Senhor chegar, será de súbito, e eventos que transcorreriam em mil anos, mil mais mil anos, serão condensados em alguns dias, à semelhança do Dilúvio
Após o seu argumento contra os zombadores, o apóstolo se dirige à memória dos cristãos que permanecem: a “demora” da Vinda é relativa à perspectiva dos homens, porque Deus, que estabeleceu os céus “desde muito tempo”, não está preso às medidas temporais terrenas e não Lhe parece excessivo tempo a passagem de um milênio. Igualmente, Ele pode empreender uma obra de mil anos num único dia! É notável como essa sentença aparece após o argumento cosmogônico e cataclísmico, e é em parte cosmogônica e cosmológica a base veterotestamentária aqui assumida por Pedro: Salmos 90:2–6. Nesse sentido, a promessa não é retardada, embora seja julgada demorada por alguns, mas tem sido adiada para que, se possível, todos cheguem ao arrependimento. Esse adiamento, para o Senhor, pode ser mil anos, mil mais mil anos, como se fossem dois dias, mas quando o Dia do Senhor chegar, será de súbito, e eventos que transcorreriam em mil anos, mil mais mil anos, serão condensados em alguns dias, à semelhança do Dilúvio, e, pelo fogo, todos os elementos da Velha Criação serão abrasados.
Tudo será, num átomo, desfeito, e isso será como a vinda de um ladrão: sem demasiado aviso. Por essa razão, devem os cristãos, exorta Pedro, assumir desde agora uma vida virtuosa, que seja santa (consagrada) e piedosa, à espera da Vinda, mas também, pelo seu zelo, tornar a Vinda menos demorada — ou seja, podem apressá-la. A ideia de que a Vinda possa ser “apressada”, ligada ao entendimento anterior, de que ela pode estar sendo “postergada”, é-me altamente notável. Vê-se aqui o tamanho do arbítrio divino que o apóstolo Pedro identifica na regência da Criação: o Mundo não apenas não é fixo e perene segundo uma estrutura impessoal de leis naturais, mas, sustentados os Céus e a Terra pela Palavra de Deus, o seu curso, ou a sua finalidade, conquanto definidos desde antes do estabelecimento de seus pilares, estão suscetíveis aos comandos da vontade do Senhor — Ele tem o poder de decidir antecipar ou postergar o Dia do Juízo. A duração da Idade da Terra não está fixada, conforme Mateus 24:36–39, que igualmente equipara a Vinda com o Dilúvio [entenda-se a exclusividade de conhecimento do Pai a respeito do Dia e da Hora como uma exclusividade deliberativa]. Fica subentendida no pensamento petrino, que Pedro associa ao do apóstolo Paulo, a compreensão de que o Senhor atribuiu à Igreja um papel especial na emergência do Dia do Juízo, o que nos remete à fundação da Igreja em Mateus 16:18–19 — “… tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.” Porque a postergação da Vinda se liga à necessidade de arrependimento na Terra (que é uma atribuição da Igreja a partir da Grande Comissão) e a aceleração da Vinda se liga à intensificação da consagração, à espera do Cristo, da parte dos crentes.
Cristo, o Filho do Deus Vivo, é a Pedra sobre a qual a Igreja se fundamentou. O apóstolo Pedro o considera claramente em 1 Pedro 2:4–8, ao tomar Jesus como Pedra Viva, o fundamento para a edificação da Igreja através dos crentes, que são como seus tijolos, ou “pedras vivas”. Nesse trecho, o apóstolo cita Isaías 28:16, comparando o Cristo, Pedra Viva, com a Pedra Angular posta por Deus em Sião. Conquanto Isaías falasse profeticamente, a Pedra Angular de fato estava em Sião, no interior do Templo, no Santíssimo, junto da Arca da Aliança. Segundo Lundquist (O Templo), a Pedra Angular era como um pilar representativo de Javé, assim como um montículo santo simbólico do Sinai, e tapava a Fonte do Abismo, porque a tradição considerava que a Rocha de Sião, Topo do Mundo, descia até os Infernos, sendo os Infernos propriamente o Abismo, ou o Oceano Primordial, aprisionado por Deus abaixo da Terra no advento da Criação. Significa, por conseguinte, que o Templo, éctipo do Santuário Celeste, guardava sob si, tapadas pela Pedra, as Portas do Inferno. A Igreja é descrita por Pedro nos termos do Templo e os crentes, “pedras vivas”, ministros de Deus como sacerdotes, e quando Cristo diz a esse mesmo apóstolo que as Portas do Inferno não prevaleceriam contra a Igreja, está também doando para ela os símbolos da mística do Templo: a Boca do Abismo jaz selada pela Pedra Angular, o Cristo, abaixo da Igreja, e estão, d’algum modo, sob o arbítrio dela e uma vez recebidas as Chaves, certas determinações a respeito do Fim, quando as Portas do Abismo forem desobstruídas e as Janelas do Céu forem abertas para Juízo e Salvação.
A interface Céu-Terra encontra suficiente ilustração em Apocalipse 8:2–5, quando, no Santuário Celestial, o anjo que estava junto do Altar e portando um incensário transbordante de incenso, apresentou todas as orações dos santos da Terra ao Senhor e, tendo feito isso, encheu o mesmo incensário das brasas do Altar e lançou-as, desde o incensário, sobre a Terra, incitando trovões, terremotos, relâmpagos e vozes de multidão. Na Terra, veja bem, as orações dos justos, acompanhadas dos incensos aromáticos (entenda-se espiritualmente), são lançadas ao Céu junto da fumaça que sobe, e lá são apresentadas a Deus através dos incensos celestiais, e Deus as ouve. Em seguida, no Céu, desde o incensário alimentado de brasas, lança-se à Terra fogo de Juízo. Há um “fogo” que vai da Terra ao Céu, chegando ao Senhor como orações aromáticas, mas há também um “fogo” que desce do Céu para a Terra, chegando aos homens como terrores climáticos (das Águas Superiores) e geológicos (das Águas Inferiores [Abismo]). São essas as interpretações de Edward Edinger (Arquétipo do Apocalipse):
Em termos eclesiásticos cristãos, pode-se dizer que a operação de incensar simboliza o fato de que a Igreja tem à sua disposição uma certa quantidade do sagrado, do fogo divino
[…]
O que é que um turíbulo faz no céu? Na terra, é uma forma de sutil sacrifício no qual o incenso é colocado ao fogo; e uma fumaça perfumada ascende para as narinas de Deus no céu. Mas o que então faz um altar de incenso nas alturas? Parece que o altar de incenso celeste funciona na direção inversa: em vez de distribuir os efeitos do altar de incenso do fogo terrestre para cima, ele se move para baixo, distribuindo o fogo divino sobre a terra. — pp. 125–126
Na sua Primeira Epístola, João descreve os que aguardam pela Vinda como aqueles que se purificam, optando por um termo de uso litúrgico, aplicado às purificações rituais que tinham vistas à consagração ao Senhor, que é a separação do Profano. A purificação descrita por João é, portanto, um tipo de sacrifício baseado na prática da Justiça de Deus, que culmina em mortificação do corpo natural — é o mesmo sentido de Romanos 12:1. Essa mortificação também aparecerá em 2 Pedro, quando se vincula o “apressamento” da Vinda à santidade e à piedade cristãs. E se considerarmos o que foi dito ao redor de 1 Pedro 2 — os cristãos como sacerdotes da Casa Espiritual, encarregados da oferta de sacrifícios espirituais a Deus -, deveremos compreender que a Igreja, herdeira legítima de todas as prerrogativas do Templo, oferta sacrifícios aromáticos ao Senhor, desde seu “fogo terreno”, através de orações e da mortificação dos membros da carne, que são recebidos no Santuário Celeste, diante de Deus. Sendo sacrifícios aceitáveis ao Senhor, daqueles que se consagram à Vinda, podem suscitar, em retorno, a antecipação da descida do Fogo Celeste, que é de Juízo, e acelerarem a Vinda. O que me leva a entender o contrário, a postergação da Vinda, como a rarefação dos sacrifícios agradáveis que chegam a Deus, no Céu, da parte da Igreja, na Terra. Essa rarefação decorre do esmorecimento dos clamores pelo Fim, porque os crentes se consagram cada vez menos à expectativa do Dia de Deus.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 29 de Agosto de 2023.