Sobre a Luta e o Carisma Mágico

Elementos do simbolismo marcial

Natanael Pedro Castoldi
3 min readJun 22, 2023

Conforme vimos no estudo publicado há pouco, a transição da Guerra em seu sentido cósmico para a Guerra Interior, que é a vereda do místico, respeita a dinâmica interna de seu simbolismo e é um fenômeno visível na Índia, na Palestina do Segundo Templo e na Europa cristã. Todo o instrumental bélico é assumido simbolicamente como armas favoráveis ao ascetismo e ao disciplinamento da mente, que intensificam as suas potências através da autocontenção e as canalizam na direção dos logismoi, dos “demônios” das paixões interiores, vencendo a dispersão e as ilusões pela imposição de ordem. Essa intensificação, essa impregnação do guerreiro por potências ígneas, é dividenda de um outro ramo de símbolos associados à Guerra: o da Luta.

Os partícipes do ritual são os canais pelos quais as potências genesíacas irradiam

Do ponto de vista ritual, as mímicas marciais, as encenações e representações de Luta estimulam as forças genesíacas e vegetativas do Cosmos, por isso as lutas cerimoniais têm lugar, em toda a parte, sobretudo na primavera e no tempo da colheita. A crenças arcaicas assumem que os golpes, as investidas, os jogos brutais entre grupos polares, sobretudo sexos diferentes, estimulam, aumentam e intensificam as energias do Universo. Como diz Eliade no Tratado de História das Religiões, esses combates rituais são atualizações da Cosmogonia, uma repetição dos gestos e do modelo nascitural do Tempo Forte, quando a luta do primogênito dos deuses, a Divindade da Vegetação, enfrentou e derrotou a Mãe, o Caos da Terra, impondo ordem ao Mundo. Pelo repetição do arquétipo, as mesmas forças cosmogônicas são mobilizadas e infundidas no campo para promover o renascimento do Mundo e o revigoramento de sua fertilidade. Os partícipes do ritual, aqueles que combatem e jogam, são os canais pelos quais as potências genesíacas irradiam e ficam, pois, impregnados de potência.

A qualidade fertilizante e fundadora da Luta está dada no combate de Jacó ao Anjo, que algumas tradições pensam ser o Anjo da Morte. Tratou-se, evidentemente, de uma luta simbólica, pela qual Jacó enfrentou as trevas da Noite e venceu a Morte, visando a obtenção da bênção. Tendo combatido por um longo período, e vencido, Jacó ficou como que impregnado daquela potência viril que o tornaria o fecundador de Israel, o Pai das Doze Tribos (Chevalier e Gheerbrandt, Dicionário de Símbolos). Lutas outras, como caçadas e pescas, lutas reais entre homens e exércitos ou lutas cerimoniais, quando bem-sucedidas, transmitiam ao vencedor uma espécie de carisma mágico, dividenda daquela potência mobilizada no combate, capaz de garantir-lhe vitórias futuras — ele ficava impregnado de poder. Antes da luta, ainda, a gesticulação preparatória era uma forma de atrair uma parte dessa força mágica, garantidora da vitória. É notável a descrição dos espartanos na preparação para a Batalha das Termópilas: faziam flexões, alongavam seus corpos e penteavam seus cabelos e suas barbas.

É dessa imagética que temos em profusão os muitos relevos antigos que mostram os reis e as comitivas reais adentrando desde os portais dos muros da Cidade, vitoriosos de guerra, trazendo consigo os espólios e sendo aclamados como refundadores do Mundo — porque o Rei mesmo, Príncipe dos Guerreiros, é o construtor da Cidade e do Templo. Também é desde essa crença no carisma potente do guerreiro que Edinger descreverá certos procedimentos rituais entre povos primitivos, que visavam o esfriamento ou o apaziguamento da potência inflamada daquele que retornava da guerra, como meio de dessacralizá-lo e reinseri-lo na vida profana, dos afazeres domésticos — assim evitando, também, a incitação da ira divinal que havia sido magnetizada pelo lutador. É uma imagem que lembra o aspecto glorioso da descida de Moisés do Monte, que demandou a cobertura da face resplandecente para não aterrorizar o povo. A ideia de um corpo impregnado de carisma em decorrência da Luta é, de fato, uma constante na Mística, que ali aparece na forma de Combate Espiritual.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 16 de junho de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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