Sobre a Medida dos Pequenos Prazeres

Uma crítica à “neurocientifização” de si

Natanael Pedro Castoldi
9 min readJun 8, 2024

uma peculiaridade a todo o hedonismo, e assim ele é em nosso tempo: sempre se presta a algo de ascético. Se hedonismo for essencialmente autointeresse idolátrico, visando a maximização do alcance do prazer, então não há nisso verdadeira contradição nos termos. Até porque ele é, como já dito por Hadjad, soberbamente superegoigo — uma vez que se pretende alcançar o prazer mais intenso e da maior qualidade possível, não pode deixar de ser calculista e de se valer de toda uma parafernalha técnica que possa bancar esse empreendimento. Isso faz entender que hedonismo existe mais propriamente enquanto fenômeno social de larga escala, sendo impossível que ele exista num contexto material, tecnológico e psicológico (coletivo) que não o suporte — via de regra é assim, e seu alastrar mimético jaz indissociável de momentos de decadência civilizacional, quando as riquezas cumuladas pela sociedade passam a verter em criatividade demoníaca, para a oferta de instrumentos adequados ao orgiástico.

Donde o próprio ascetismo de tipo “estoico online”, partícipe do ethos empreendedor cujo zênite é o “coach”, poder ser enquadrado como hedônico. Mesmo vertentes extrovertidas (demasiado focadas no homem exterior) que se apregoam conservadoras podem estar recaindo no largo do genérico desse espírito decadente, principalmente quando passam a se servir de uma sobrecarga de novidades “neurocientíficas”, estatísticas…, indo na mesma fonte do “coaching”, para falar de potencialização de recursos, de autorrealização mundana, de todo aquele pragmatismo que ousará transformar em utilidade de regime horizontal a Literatura Universal e as Escrituras Santas — o que é visado, ao fim e ao cabo, é a vitória pessoal dentro do mundo das aparências, sob pretextos de suposta guerra cultural contra o “mundo moderno”. Assim, dentro de roupagens de piedade e de virtude, realizam por outros meios os desmandos ou a vocação materialística da nossa sociedade naufragada. Mudando os objetos, não se exorciza o zeitgeist — a agitação ansiosa, a inquietação inflamada, a ânsia por quantidades, os excessos todos em vista de tesouros terrestres, se mantém. Em certos meandros supostamente “didireita”, os jovens são persuadidos por líderes carismáticos à vereda ascética para felicidade terrena, a ser obtida através de uma formação “imaginal” (crerem crer que fazem “trabalho intelectual”) e virtuosa em favor de potencial enriquecedor, que também pede por definição muscular notável (deve-se assinar uma “smart”) e pela multiplicação irrestrita dos filhos (como máximas do autossacrifício). É cheia de passos, de receitas, de métodos, de deveres estereotipados, de implicações, de formações e de medalhões a serem ostentados (porque correspondem ao que é valorizado coletivamente) a vida em meandros tais. Trabalho sem fim, e trabalho para muito além daquele que já é o trabalho formal! Achar isso ruim não é entendido como uma percepção lúcida, mesmo quando intuitiva, de que há algo errado ali — o queixoso é de pronto divisado como infantil, vicioso, preguiçoso… Dirá Pieper, todavia, é coisa da modernidade burguesa a transformação de tudo em “trabalho” — ao que Oakeshott atribuirá a morte das antigas artes de ofício, transformadas pelo imperativo racionalista em meras técnicas.

… todas as coisas, e até mesmo os menores lazeres, estão sendo absorvidos por uma lógica de “trabalho”…

Alarma-me, nesse quesito, o interesse crescente na e a generalização do conhecimento de vocábulos da neurociência. As pessoas falam de si mesmas, hoje, em termos de “dopamina” e “serotonina”, de “sistema límbico” e de “neurotransmissores”, e qualificam suas ações a partir de suposições neurológicas e de expectativas metabólicas. Vícios e virtudes estão transformados em biologia e química, e chamados “hábitos”. Há obsessões com o tema da “rotina” e da qualidade hormonal das tarefas escolhidas, assim como toda uma equação para conseguir garantir, por aversão ou recompensa, que o “cérebro” queira esquecer ou gravar determinado comportamento útil. Então são comidos hambúrgueres pensando na recompensa hormonal e no bem-estar decorrente, para que se consiga compensar os sacrifícios estressantes do empreendimento diário e visando uma cumulação de “capital psíquico”, o qual dará reservas futuras e vantagens posteriores — mas não hambúrgueres demais, porque o excesso fará o corpo absorver toxinas e gorduras além do que o desejável, implicando em menor energia e, da hiperestimulação, em tendências depressivas posteriores por vício dopaminérgico. Embora existam verdades importantes nesse exemplo, você percebe como todas as coisas, e até mesmo os menores lazeres, estão sendo absorvidos por uma lógica de “trabalho”, precisando de justificativas utilitárias em termos “capitalísticos”, a serem buscadas em uma miríade de abstrações de apelo vocativo e tornadas rodas dentadas num mecanismo que aparentemente existe para perdurar o máximo possível, com maior rendimento possível?

Existem vocabulários que são necessários e úteis dentro da clínica psicológica, e penso que eles deveriam permanecer restritos ao espaço no qual fazem real sentido, porque correspondem à proposta terapêutica específica do encontro analítico. Não faz o menos sentido que, em um contexto não terapêutico, a pessoa se conserve como objeto de estudo e de intervenções de tipo clínico. Preocupa-me demais ver como as pessoas estão transferindo para a praça pública, quando não para a sacralidade de seus lares, a lógica de trabalho que se lhes é demandada nos restritos territórios do emprego e da terapêutica — com esta mais determinante do que aquela, no sentido de que impõe a lógica do trabalho interior e da colocação de si enquanto sujeito e objeto desse trabalho. Como já vivemos numa sociedade de tipo terapêutico, é uma esperada infelicidade que a sua porção representativa esteja o tempo inteiro ocupada em fazer de si algo que, na realidade, não se é. Será outra coisa se não dissociativa e neurotizante uma autoabordagem nos termos de partes do corpo, hormônios e circuitos metabólicos, não nos termos do Eu, tratando-se como máquina a ser calibrada para melhor produzir? Pergunta-se, agora: produzir exatamente o que? O “trabalho interior” de tipo autocentrado é a produção egoística de si mesmo — o sujeito se pensa em processo de conquista da autenticidade, do próprio potencial e da autorrealização, marcada, evidentemente, com evidências materiais vinculadas aos objetos de desejo (em geral compartilhados).

A obra perde o valor dos resultados óbvios e objetivos…

Não é outra coisa o que Dawson vê quando o mundus urbano sobrepõe o modus vivendi rural em uma sociedade — os apelos dos ritmos naturais, cosmológicos, correspondentes ao compasso das plantas e dos animais, não mais dominam a economia temporal dos homens, que, perdidos de referências exteriores inflexíveis para organizarem a vida (mesmo a interna), precisam “inventar” arbitrária e artificialmente seu microcosmo. A obra, não mais correspondendo a concretudes inequívocas, perde o valor dos resultados óbvios e objetivos — a lida do gado leiteiro dá leite e dá queijo — e carece de objeto verdadeiro — então o objeto se torna o próprio obreiro, que faz tudo tendo em vista um referencial subjetivo, de modo que todo o trabalho acaba sendo um trabalho para si e sobre si. Donde ele escolherá e arranjará suas ocupações segundo critérios altamente pessoais, buscando não mais o queijo, mas a saúde, a felicidade, a plenitude… e outras platitudes e abstrações.

O hedonismo aqui presente se vê em todo o verniz logicista, objetificador, superficializante e “tecnológico”. O que se quererá através do ascetismo pasteurizado que se apreende na autorregulação — e na lida consigo nos termos quantitativos de calibração hormonal e metabólica — é uma perduração vigoréxica da vida biológica, corporal, para que se possa viver tanto quanto for possível a experiência de prazeres minguados e a recolocação de expectativas de realização para o futuro, cujo horizonte deve se manter sempre suficientemente longe. Não há nenhuma transcendência aqui, nada maior do que o Eu em função do qual viver — donde a repetição cíclica, de tipo autoerótico, ao redor da sobrevivência e da coleção de experiências satisfatórias, seja na casa dos vinte, seja na casa dos setenta anos, sem nenhuma virada de tipo ontológico e existencial determinante. Uma verdadeira monotonia, como é a agitação da superfície do lago profundo.

Em ponto algum desta discussão sugeri que se ignore o autocuidado e a realização de si. O que quero dizer é que realização de si, no homem, que é espiritual, pede pela progressiva capacidade de autoesquecimento, de entrega autotranscendente à Beleza, à Verdade, à Bondade. A realização de si estará principalmente no trabalho exterior, na dedicação autossacrifical não para si mesmo, mas para outros — o cuidado do cônjuge e dos filhos, a realização do artifício, a honra nos tratos profissionais, a boa aderência à comunidade local. Mais: a capacidade de dar-se para a feitura de qualquer espécie de arte, de Obra, como resultado da capacidade de esquecer de si pelo magnetismo da Noção, que vem do Alto, embora possa transparecer nas miudezas da Criação. É para bem conduzir a dedicação ao Elevado, que vem principalmente pelo Trivial, que o homem responsável quererá manter-se saudável — mas nunca à custa do viver genuíno, com toda a coloração vívida e pulsante da vida espiritual.

Como Scruton diz muito bem em seu Confissões de Um Herético, não há sentido ser dotado de um corpo que sirva apenas para si mesmo, para sua própria imortalização biológica e para suportar uma mente que, via de regra, não vence ilesa seis ou sete décadas. Devemos aprender a usar o corpo e a submetê-lo aos imperativos da vida moral e do dinamismo do espírito — que saiba ser movido à chuvarada em dia frio se for para o bem do próximo, que possa ser fustigado pelo calor se for para galgar a boa vista do vale verdejante, que possa suportar um bom vinho tinto quando a ocasião e a alma o pedem. E que não se esteja reticente mediante as convocações da Vida, aos chamados do mundo lá fora, com base em cálculos calóricos e hormonais — a não ser que eles se façam mesmo necessários. O bom queijo e o bom pão não são só gorduras e carboidratos — são imperativos da boa vida espiritual e devem ter seu lugar à mesa, com gratidão, quando a ocasião os solicita!

… estar aberto às convocações da realidade e saber responder adequadamente a elas…

A verdadeira sabedoria estará, então, em discernir o kairós de Eclesiastes 3: o tempo de cada coisa. Isto é o mesmo que estar aberto às convocações da realidade e saber responder adequadamente a elas — apenas uma intelecto afiado por um espírito vivo dá margem a esse discernimento e apenas uma inteligência vívida encontrará o modo adequado de reação. Estamos, então, mais perto da sabedoria hebraica, que lembra algo do Tao Te Ching, do que do estropiado estoicismo de nosso tempo, que não é mais do que uma versão apequenada do “salfe-made man” liberal — este desde o princípio um dominador titânico (no sentido ‘deamoníaco’) do mundo exterior, movido pela racionalística índole de quem inventa um mundo seu e quer obrigar o mundo lá fora a verga-se àquele.

As vidas dos homens mais exemplares estão recheadas dos “pequenos vícios” de quem aprendeu a “colocar a cabeça no Céu” (e a não querer o Céu “dentro da cabeça”). Aqueles dotados de personalidades notáveis entenderam que a vida não é apenas sobre si mesmos — o que não entendem o glutão e o ascético, ambos os quais, aos seus modos, hedonistas. Todos nós, para que vivamos boa vida, que é vida profunda e sensorialmente rica, porque espiritualmente movediça, devemos saber conservar conosco disposições ao sofrimento necessário e ao prazer gratuito, típicas daqueles que sabem viver o contentamento e que aprenderam o autoesquecimento, que é saber nutrir uma medida aceitável de desinteresse por si e pelos tesouros da terra.

É não somos outra coisa que não o velho centauro, que tem no topo da cabeça humana abertura espiritiva ao Absoluto, enquanto galga pés selvagens no pó da terra. A vida no Intermédio só é genuinamente humana, porque não angelical (como de certa forma querem os behavioristas [E. Gellner]) e nem bestial (como pensam os psicanalistas [“besta-fera” — E. Gellner]), se houver consciência das e coexistência entre as partes. A doença do espírito estará no esquecimento da condição humana tal como ela é, daí a boa vida estar mais perto de quem consegue conservar bons, mas não excessivos escrúpulos, e sabe dar uma margem aos seus apetites, quando da ocasião oportuna, e dominá-los vigorosamente quando já hora for outra. Só poderá fazê-lo bem, todavia, na medida em que a Inteligência que discerne a realidade e a ocasião também discernir-se e discernir o homem interior. Só poderá fazê-lo bem, portanto, se conhecer a si mesmo.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 08 de junho de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.