Sobre a Psique no Ocidente Moderno

as causas de nossa miséria civilizacional

Natanael Pedro Castoldi
7 min readMay 10, 2022

Elaine Aron, em seu estudo sobre a sensibilidade (Pessoas Altamente Sensíveis), identifica um percentual constante de cerca de 15–20% de pessoas especialmente sensíveis no contexto de nossa cultura. Por sensibilidade, não se trata propriamente de emotividade, mas de sensibilidade nervosa e sensorial, verificada como transmitida transgeracionalmente e estimulada pela configuração da cultura local.

Tal percentual, confrontado com um universo de cerca de 40% de pessoas consideradas insensíveis, é bastante válido e elucidativo. Para compreendê-lo, é importante observar que as chamadas “pessoas insensíveis” não são menos emotivas, mas talvez mais, porque mais impulsivas. Existem dois sistemas básicos em nosso sistema nervoso, que chamo de Ativação e Avaliação. Nalgumas pessoas um ou outro são mais fortes, noutras ambos o são. O sistema de Ativação, característico dos insensíveis, é baseado no comando para a ação: a pessoa recebe estímulos ambientais ou interiores e, ao invés de absorvê-los, reverte-os numa ação imediata. Essa impulsividade, ou menor absorção de estímulos, caracteriza aqueles que suportam com relativa folga toda a qualidade de excessos sensoriais e de informação — participam do jantar de família, depois madrugam numa festa para, então, irem ao trabalho pela manhã. Uma maioria da população deve ser capaz de suportar uma maior dose de pressão ambiental, sobrevivendo a trabalhos mais insalubres e a circunstâncias menos aprazíveis. Num contexto de horda, essa maioria constituirá o pelotão de ataque e pilhagem. Todavia, nessa mesma horda existirão alguns mais sensíveis a todo o tipo de estímulo, que acordarão ao menor ruído ou avistarão mais facilmente sinais de ameaça. Os vigilantes, que em geral não são os mais fortes, cumprem um papel vital em todos os ambientes gregários e podem explicar como criaturas menos robustas, mas mais astuciosas, foram salvas durante o processo evolutivo (se o considerarmos).

Aqueles que possuem qualificações especiais para a vigília, porque são mais sensíveis aos estímulos e, portanto, apreciam a solitude da sentinela, estão entre a minoria que conhece um sistema de Avaliação mais ativo. Esse sistema é o que dá a todos, mediante os estímulos, o comando da pausa para verificação ao invés daquele da ação impulsiva. Os mais cautelosos, que tendem mais à Avaliação do que à Ativação, demandarão a captação do maior número possível de informações do ambiente, porque, na ausência de recursos ativos suficientes, quererão se precaver, antecipar e formular uma melhor resposta comportamental. Essa hipersensibilidade e a maior demanda por trabalhar toda a informação absorvida, os torna mais dependentes de momentos de isolamento para reflexão e descanso, porque tendem a se exaurir muito rapidamente em cenários sobrecarregados de barulhos, cores, cheiros e coisas. Numa cultura saudável, que saiba distribuir funções conforme as qualidades individuais, esses, que suportam muito melhor todo o tipo de privação, da solidão à nutrição, acabarão ocupando papéis sacerdotais, de ensino e de erudição.

Aron aplica suas análises sobre a sensibilidade à Civilização Ocidental, observando o papel que desempenharam os sábios da corte e os conselheiros reais, ligados ao complexo Templo-Palácio, na contenção dos impulsos dos reis e dos generais. De matiz indo-europeu, baseados linguística e imageticamente na vida rústica dos cavaleiros do Cáucaso, os povos europeus se organizaram em três classes: Guerreira, Sacerdotal e Comercial. Vê-se que os guerreiros estão no topo, porque esse é o tônus do espírito indo-europeu, de tal modo que o rei era o representante máximo dessa classe. Todavia, a unção do rei e sua distinção dos outros guerreiros era realizada pelos sacerdotes, indicando a simbiose profunda, no Ocidente, entre o Poder Político e a Autoridade Espiritual. Numa civilização gestada sobre a dominação militar, a existência de sábios junto ao trono real é de importância incomensurável. Os reis, de fato, se cercavam de eruditos, sejam bardos, menestréis e cronistas, sejam astrônomos e astrólogos, sejam representantes dos mercadores, conhecedores de economia, sejam filósofos e místicos. Em Israel, o profetismo cumpria esse papel.

No Oriente, defende Aron, a sensibilidade possui um lugar ainda mais destacado e proeminente. Campbell estabelece a distinção entre o espírito ocidental e oriental no tipo de formação do substrato cultural. A Europa conhece um paleolítico mais profundo e embrutecedor do que a Ásia, e o europeus ancestrais formaram sua psique profunda num nomadismo de pequenos grupos de caçadores da macrofauna (a Grande Caça), que acompanharam as manadas por cerca de trezentos mil anos. A Ásia possui uma pré-história menos extensa e a presença humana, em termos substanciais, é melhor conhecida já no período da formação de aleias seminômades ou de regime agrícola, estabelecendo uma psicologia menos individualista e mais coletivista, menos heroica e mais burocrática. À exceção das estepes asiáticas, sobre as quais ainda falaremos, a Ásia distante, ordenada a partir da China, mas com um horizonte longínquo alocado na Suméria, conheceu civilizações de índole citadina, nas quais o indivíduo era diluído no Estado e as pessoas se acostumaram a uma semiescravidão baseada numa cosmologia impessoal (Huberto Rohden). Um tal terreno é fértil para o máximo florescimento dos sábios e dos conselheiros de Estado.

Nesse comparativo, o Ocidente se formou muito mais como uma civilização da ação, supervalorizando a força física e o poder concreto. Nota-se como a Grécia tratou seus filósofos inaugurais, que conheceram o martírio e foram constantemente perturbados pelos interesses palacianos. Sobretudo no território da Pequena Tradição, da vida local, a predisposição ao isolamento, às ideias, aos estudos e à análise teórica da vida, sempre foi vista com desconfiança, com desprezo e como desperdício. À exceção do sacerdote, o homem menos prático, talvez menos vigoroso, sempre foi tratado como partícipe de uma subcategoria, tomado por lunático e excêntrico. Em raros casos, talvez em função da magnanimidade de seus trabalhos, foi posto em lugar mais favorável. Uma cultura assim, não sabendo encaixar seus membros excepcionais em lugares nos quais suas habilidades possam ser bem aproveitadas, perde não só bons cérebros, mas também sanidade, porque o sábio, enquanto portador de autoridade espiritual, tende a sanitizar a psique coletiva, alertando para os riscos potenciais de seus desvios e de seus frenesis, sobretudo quando consegue acessar os espaços mais elevados do poder. Carente de sábios, cuja perspicácia aguçada e ritmo mais lento representam freios à velocidade e à loucura do consumo, nossa sociedade tem se dirigido à degeneração espiritual e ao suicídio cultural.

Talvez um exemplo ilustrativo, embora insuficiente, seja aquele dos impérios da estepe asiática, sobretudo o dos mongóis. De uma cultura tribal, que supervalorizava a caça, a guerra e o potencial destrutivo do cavaleiro no campo de batalha, os mongóis ascenderam prematuramente à condição de império de vastidão continental. Um tal império, de bases pouco abertas à sabedoria e à erudição, mas muitíssimo abertas à potência viril, se deparou com as maiores dificuldades e não perdurou o tempo necessário para se consolidar. É cabível irmos rapidamente à psicologia junguiana para identificar aqui a ausência de mecanismos iniciáticos capazes de transicionar os homens guerreiros, fundados no arquétipo do herói solar, para a domesticação da “exuberante virilidade” a partir do retorno à deusa e ao lar, na velhice. Essa limitação mantinha os cavaleiros das estepes eternamente presos à condição de dominadores e conquistadores, com a única opção de se tornarem, quando idosos, tiranos, e não sábios. Por isso os imperadores mongóis foram buscar sábios fora de seus domínios, os importando dos chineses, dos árabes e dos cristãos, para ampararem uma corte real que fosse realmente civilizacional. Todavia, isso se mostrou insuficiente, e a índole guerreira e tirânica não impediu que a casa real mongol caísse de dentro para fora, despedaçada por disputas internas. Segundo Eliade, os mongóis e outros cavaleiros das estepes estavam retidos na imaginação caçadora, ou predatória, que lhes impedia de assentar raízes duradouras na terra.

O Ocidente Moderno, da Máquina, da Guerra Total e do ressurgimento do selvagem paganismo do Norte, pôs de lado o significado da Grande Síntese Medieval, que incluía a canalização da violência bárbara, bem aproveitada pelas ordem de cavalaria. Nietzsche se opôs a essa “latinização” dos alemães, semeada nos sermões das igrejas e na estrutura civilizacional cristã, considerando-a uma domesticação dos pagãos, que tiveram de submeter a Força ao Amor, porque Cristo, o Sacrificado, e Maria, a Mãe, imobilizaram os germânicos num cativeiro de fraqueza, dalgum modo feminino. O regresso pagão, do indo-europeu profundo e cruento, foi a porta de entrada, na minha opinião particular, para a insanidade da Modernidade, com toda a inquietação alucinante que tomou forma no Ocidente revolucionário e industrial. Nesse ínterim, a Sabedoria foi relegada à periferia e falsos eruditos, impostores néscios, ocuparam posições de conselho e orientação do Poder e do “Povo”.

O Ocidente beligerante adentrará sempre mais fundo numa relação neurótica e doentia com o mundo

A supremacia do Estado, viável pelo seu alastramento por sobre a Igreja, que reduziu à condição de apenas mais uma esfera de soberania da sociedade ao lado de todas as demais, engolfando também a Autoridade Espiritual, o tornou demente, cego e tirânico, porque desprovido de realidade e de sabedoria. Nossa cultura certamente sofreu, e tem sofrido cada dia mais, nas mãos do Estado Total, porque ele, no Ocidente neopagão e guerreiro, não deixa de funcionar como o bastião de uma horda de conquistadores violentos, que assumem o Poder nos moldes descritos por Rothbard: como “sequestradores” da sociedade. Isso é muito bem descrito por Lobaczewski no Ponerologia, ao discorrer sobre o comunismo soviético nos países periféricos: quando dominada uma nação, uma hoste de aliados e partidários do Kremlin assumia todos os cargos relevantes, inclusive no ensino, mesmo sem qualquer mérito, legitimidade ou qualificação — enquanto bárbaros dividindo o espólio e interessados em manter o controle, distribuíam posições como prêmios ou moedas de troca. Isso teve consequências terríveis na estrutura da psique coletiva, que adoeceu, pois regida por psicopatas, e na cultura como um todo, por razões óbvias. Noutros termos: uma sociedade dominada pelo Estado Total, no Ocidente beligerante, será, na verdade, controlada por um clã de dominadores tirânicos que, desprovidos de uma classe de sábios e profetas contestadores (classe Sacerdotal / Autoridade Espiritual), adentrará sempre mais fundo numa relação neurótica e doentia com o mundo, potencialmente destrutiva para a humanidade.

Esse sistema, subvertendo toda a ordem natural, ao deixar de atribuir os papéis adequados para seus membros conforme suas potencialidades, não deu lugar de honra ao sábio. Por isso enlouqueceu.

Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 10 de maio de 2022.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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