Sobre a Reconstrução da Autoimagem

Caminhos da Individuação

Natanael Pedro Castoldi
3 min readMay 17, 2024

A imagem que temos de nós mesmos é, via de regra, uma interiorização da função social inerentemente humana. O chamado self-conceitual, ou autoimagem, se baseia no acúmulo mnemônico de referências exteriores: sentenças ouvidas, experiências vividas e o valor social, afirmativo ou desafirmativo, dessas experiências, desde aquilo que é demonstrado pelos outros como resposta aos menores atos. Dirá Burrow que a grande obra da cultura no indivíduo é a formação daquilo que se chama “Face”. Mais do que a persona social, a Face corresponde a um verdadeiro treinamento neuromuscular, de tipo sobretudo inconsciente, que vem corresponder aos valores sociais, principalmente aos valores recebidos na família. Sentimentos de potência e de impotência têm ligação direta com o senso de legitimidade e de segurança apreendidos no modo das relações familiares, de seus valores e de sua constância, aos quais a interface psicossomática procurará se adaptar — donde o desenvolvimento dos gérmens da neurose quando esse processo adaptativo se mostrar impraticável, dada a falta de afirmações e a sobrecarga de críticas, a pouca objetividade na orientação transmitida, a inconstância nas atitudes e outras dificuldades de ordem material e afetiva.

Se pode saber de Nesturque, Montagu e Sheldrake o quão completa e profundamente o indivíduo é formado pelo espelhamento mimético dos menores traços comportamentais, expressivos e gestuais das figuras de referência e o quanto se moldará, por comandos empáticos viscerais, aos jeitos e trejeitos do seu entorno. Jordan Peterson o verá também, com ênfase, todavia, no processo dialético e verbal. O fato é que o ser humano é sobrecarregadamente social, chamado por Haidt de “macaco-abelha”, uma vez que se comporta como um “primata” altamente individualizado de pequeno grupo enquanto, veja só, age e reage, principalmente em situações críticas, como se dotado de um “cérebro coletivo”, como parte de uma colmeia, donde a virulência com que ideias e comportamentos se disseminam nas sociedades amalgamadas e, hoje, globalizadas. Aqui não estamos longe do Inconsciente Coletivo, de Jung.

… a maturidade está atrelada à autoconsciência, ao conhecimento de si mesmo e ao domínio do processo formativo da autoimagem…

O ponto é que formamos o substrato de nossa autoimagem de maneira automática, orgânica, natural, a partir de um complexo de sinais mnemônicos absorvidos de referências externas, aos quais procuramos introjetar e corresponder mimeticamente. A autoimagem que desenvolvemos espontaneamente se baseia em ações na medida em que essas ações correspondem ou não aos valores sociais firmados no entorno. E o modo como nos vemos internamente é parte da projeção que lançamos para fora de nós: vemo-nos como achamos que os outros nos veem ou verão. Por essa razão, a maturidade está atrelada à autoconsciência, ao conhecimento de si mesmo e ao domínio do processo formativo da autoimagem, para que ela não seja apenas o resultado do espelhamento mimético e de um acúmulo de memórias, mas de um laborioso trabalho da vontade e da imaginação, que deverá contar com a transcendentalização da triangulação mimética, para que saia da prisão do comparativo horizontal com outros e se desloque, ainda que parcialmente, ao “comparativo” verticalizado com Deus e com representações mais elevadas e menos localizadas. Este é o afamado processo de Individuação, que conta com a espiritualização progressiva das categorias psíquicas elementares e inicialmente brutas.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 17 de maio de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em antropologia e crítica literária. Casado com Gabrielle Castoldi.