Sobre as Personalidades Prototípicas e as Crises Civilizacionais

Natanael Pedro Castoldi
3 min readJan 22, 2025

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Todo o período de crise civilizacional é também um período de crise no homem típico da cultura prevalente. Em pontos críticos da história das sociedades, certos homens, os que são dotados de alguns traços de singularidade mais notórios, começam a se desligar mais ativa e radicalmente das amarras societárias, da “economia dos homens”, pela ênfase que dão para o conflito que vivem em si mesmos e “contra o mundo”. A “energeia” que sobra após o recolhimento das muitas projeções extrovertidas, para o âmbito da vida comunal, é reinvestida internamente, e como o mito coletivo, em crise, vive sua falência antecipadamente nesses homens, eles estarão suscetíveis à eclosão, em sonho, visão ou intelecção, de símbolos mais arcaicos, ou primitivos, e menos diferenciados e especializados. Essa presença mais “crua” do homem diante do Numinosum, da presença massiva do Ser, conduz a uma diferenciação criativa da vida interior, da vida do espírito e da personalidade. Esses pioneiros estabelecem, por conseguinte, a estrutura prototípica da personalidade ou da psique do novo homem, daquele que se tornará o tipo do próximo Éon ou da nova sociedade. Quando essa estrutura almática se torna típica, ela já não é mais vivida segundo o drama que a gerou, naquele tipo de consciência inflamada e de percepção metódica das operações interiores, mas de modo sobremaneira inconsciente e extrovertido, o qual acompanha a cristalização do novo mito coletivo e entra em declínio no mesmo momento em que atinge a maturidade, ou a meia-vida, que é a ocasião do zênite de sua objetificação.

… conduz a uma diferenciação criativa da vida interior, da vida do espírito e da personalidade.

As “personalidades prototípicas” podem ser percebidas naquelas estranhas eclosões e manifestações de um modo de ser minoritário, mas coincidente em diversas pessoas que se desconhecem, mas que passam a se reconhecer nos ínferos da sociedade decadente como um remanescente. O arquétipo aqui é Abraão, que foi forjado num tipo novo após ter sido afastado de Ur e enviado ao ermo — o tipo Patriarcal, portanto. Os profetas israelitas são um segundo exemplo e os cristãos primitivos, imersos no apocalipsismo, são um terceiro. Os filósofos gregos são um notório exemplo pagão. Os alquimistas da Europa de fins da Idade Média aqui se encaixam, pois dão a tônica do tipo “científico” e erudito moderno, contrastado de modo complementar pelos místicos e teólogos protestantes. Dentro da Modernidade, pois, e do espírito da Contrarreforma, aparece o tipo de santo e de místico que lhe é característico, com o melhor exemplo, talvez, sendo o de Santa Teresa de Ávila. Em todos os casos, vê-se nesse reinvestimento sobre a vida interior uma reação introvertida a uma crise ou a um severo conflito civilizacional, com a civilização vista em um sentido vulgar e excessivamente extrovertido e horizontal — as ruínas de Babilônia, onde dançam os sátiros.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 22 de janeiro de 2025.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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