Sobre Caça, Conquista e Colecionismo
A presença do Eros na busca humana
Na sua análise do mito de Actaion, Giegerich discorre com maestria a respeito de uma “filosofia da caça”, pela qual inaugura a sua leitura: o que faz o homem preferir sair à Selva Primal, ao Desconhecido, à cata de um Outro livre desconhecido, que se autorrevele, ao invés de sempre ceder à máxima eficiência técnica e abater o boi ou o porco que já está dominado, domesticado, guardado em cercas?
Mesmo nos contextos mais primitivos, quando a caça era o meio de sobrevivência por excelência, ela jazia associada ao Numinoso — os animais que emergiam no bosque eram presentes dos Senhores das Bestas, e o derramamento do sangue na terra virgem, conquanto um presente, era também uma espécie de sacrifício que demandava compensação. A sensação era a de uma invasão, uma intrusão no Reino dos Espíritos (essa crença é perene e acompanhou o homem ocidental até poucos séculos atrás, aparente nos portais, nos marcos em encruzilhadas e nos marcos fronteiriços). Caçar o animal selvagem soava como ato sagrado, portanto no limite do sacrilégio. Actaion é guiado por um daemon para além dos limites do Mundo dos Homens e da Cultura, e se move, por conseguinte, com um certo nível de insolência. Não é sem razão que a caça aparecerá no Antigo Testamento como muito próxima da hybris titânica — Ninrode e Esaú são os exemplos máximos.
… é a culminação de um compromisso absoluto com ela enquanto Outro e do anseio de transmitir-se a ela em um momento total
O que importa ao caçador, na ocasião do avanço na Selva Primal, símbolo do Caos — “infinitude, no mundo anterior à sua positivação, definição e compartimentalização” (p. 359) -, é o ingresso na Aventura, no sentido de Advento. Ele busca um verdadeiro encontro, uma aparição, a resposta autônoma de um outro animado à sua presença. Para isso, ele não pode sair de casa com tudo previsto, com certezas absolutas sobre o que ocorrerá, sobre o que encontrará — isso o manteria preso ao Mundo dos Homens. Ele precisa sentir-se carente de direção, sentir-se exposto ao imprevisível, sentir-se também sob a mira da presa, ou mesmo de um outro predador. De certa maneira, ele não está apenas procurando a presa, mas algo de si mesmo através de um encontro genuíno e verdadeiro, ao nível da absolutidade, com um Outro, e por isso a busca caçadora é também uma paixão — tudo nele está mobilizado para o encontro. E quando o encontro acontece, o Mundo inteiro some e só sobra ele, a presa e a distância, além da indomável vontade de matar. Atira, então, a sua seta. Investe-se na presa, que já o notou, através da arma perfurante, que é a culminação de um compromisso absoluto com ela enquanto Outro e do anseio de transmitir-se a ela em um momento total.
Não é sem motivo que os reis chineses, por exemplo, ainda que utilizassem grupos de batedores e técnicas de cercamento em suas caçadas, nunca fechavam o animal pelos quatro lados — eles sempre mantinham aberta uma rota de fuga, para que a presa tivesse uma chance, uma possibilidade de escape. Assim, conservavam na caçada o imperativo da imprevisibilidade, ainda que mínima, e, portanto, conservavam a possibilidade de um encontro verdadeiro. Uma vez que o animal estivesse inteiramente cercado, ele já não mais pertencia à Selva Primal e já não mais haveria caçada no sentido supracitado.
Não é necessário muito esforço para identificar nisso a atuação do Eros, aquele que conecta as partes e alimenta o desejo de fusão. Isso nos remete a um velho estudo, aqui publicado, sobre as correlações entre a violência beligerante, o éthos carnívoro e a predação sexu4l, no sentido da insaciável busca juvenil, na Noite, por conquistas de teor venal. No que diz respeito à guerra, é evidente que os opostos polares, se seguirmos os termos da Teoria Mimética, são atraídos um ao outro por um impulso irrefreável — o desejo pelo encontro e a fixação quase obsessiva na existência do rival não deixam de carregar algo do Eros e, como na caçada, acabará terminando em matança, que será, além da destruição material de vidas, o resultado da compulsão por investir-se no Outro de uma maneira absoluta, num ato derradeiro e de máxima potência. O Campo de Batalha, o Campo de Sangue, por mais mecanizado que seja, é, de algum modo, como a Selva Primal, e os terrores da batalha são, de alguma forma, compensados por um estranho senso de aventura — potencializado pela irmanação dos companheiros de armas, que passam a atuar como um só corpo.
Em um nível mais brando, esse páthos aparecerá no colecionismo — quem não se sentiu movido por um certo ímpeto aventuresco, de busca, quando saiu para catar conchas na praia? E a própria praia não se transfigura nesse momento, se tornando uma vastidão de pequenas conchas, que atraem a inteireza da atenção? Há algo como a caça aqui, visível na satisfação recompensadora do achado de uma peça multicolorida, que pede para ser recolhida, tocada e guardada, ou absorvida como nossa. Vivi algo similar quando, alguns meses atrás, adentrei num território que me era inteiramente desconhecido para procurar resquícios arqueológicos pré-históricos — o ímpeto da busca me mobilizou por cerca de cinco horas, subindo e descendo trilhas, adentrando em fendas e saltando pedregulhos. Talvez tenha sido esse impulso aventuresco o grande motivador das explorações arqueológicas do tempo áureo, sobretudo no Séc. XIX e até meados do Séc. XX. E não deve ter um pouco disso, também, nas buscas incansáveis entre as estrelas e na profundeza da matéria?
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 1º de junho de 2023.