Sobre Guerra, Escatologia e Martírio
Do simbolismo beligerante
Apenas muito recentemente a Guerra passou a simbolizar completo caos e destruição sem propósito. Isso tem relação direta com a sua “racionalização” renascentista, conforme demonstrado por Burckhardt, mas principalmente com a sua posterior mecanização industrial, que a retirou do Sagrado, transformando-a em um mecanismo impessoal que varre cidades inteiras, assoladas por predadores vorazes. É impossível não evocar, aqui, o imaginário apocalíptico e o Cavalo Vermelho, todavia a Guerra Escatológica é cósmica, de maneira que a ruína global cumpre uma função cosmogônica, já que antecede a eclosão da Nova Criação. Se assemelha, nesse sentido e de algum modo, ao Ragnarok, ao Mahabharata e à Guerra de Troia.
A Guerra sempre se referiu à destruição do Mal, à restauração da Paz e da Justiça, e isso em todos os âmbitos — cósmico, social e espiritual. Por meio dela, no Campo de Sangue, há uma recapitulação do Caos Primevo e um retorno à Ordem Auroral. O Campo de Sangue é, de fato, um Campo Santo, porque os que nele morrem, na realidade não morrem, e os que matam, na realidade não matam (Bagavadeguitá), o que quer dizer que aquele que cai na batalha é morto numa condição especial, genesíaca, e é rapidamente acolhido no Divino, enquanto aquele que o mata não é assassino, mas um imolador do sacrifício. De fato, a Guerra está imersa no Sagrado. O Ramáiana diz, a respeito dela, que um dos exércitos é o combustível, enquanto o outro é o animal sacrificado. Associe isso ao bramanismo e ao sacrifício sob o fogo do altar. O ardor guerreiro, sua cólera e seu calor, são sempre vinculados ao Fogo, chamado, em Indra, Kratu, que é a energia guerreira da divindade, mas também a sua potência espiritual. A Paz (shanti), que sucede a cólera guerreira, significa precisamente a extinção do Fogo, decorrente da consumação do sacrifício. Dessa maneira, conforme Chevalier e Gheerbrandt (Dicionário de Símbolos), o sacrifício ritual é um tipo do rito da Guerra. Se passarmos por Girard nesse ponto, entenderemos como o apaziguamento total, absoluto, que vem após a tempestade da Batalha, é mesmo impregnado de um senso cosmogônico.
… o sacrifício guerreiro do cristão é aquele de sua própria carne…
Vê-se que a Guerra, sagrada, demanda de seus partícipes uma disposição que não é sobretudo beligerante, e nada predatória, mas mística. Por isso as culturas tradicionais, como o Islã, pensam a Guerra Santa em dois níveis: a Pequena Guerra Santa, que é aquela que acontece no nível local e visa o equilíbrio cósmico a partir da batalha literal, e a Grande Guerra Santa, que é de escala total, e justamente por isso é menos literal e mais moral — acontece dentro do coração de cada fiel. A transposição da ideia cósmica de luta contra o Demônio para uma via mística, que transcorre na luta contra os logismoi, ou as paixões interiores, é intuitiva. Foi essa a trajetória de Buda, da Casta dos Guerreiros, que transpôs todo simbolismo marcial para uma vereda ascética, imiscuída do cabedal de instrumentos bélicos para o empreendimento de uma Guerra Interior — que é o sentido mais apropriado para Guerra Santa. A utilização do instrumental guerreiro para a luta interna é útil para a vitória mental sobre a dispersão e a ilusão dos sentidos, porque favorece a capacidade de concentração e de canalização da potência num único ponto, num único eixo, ao redor do qual todo o mais se ordena — trata-se de uma intensificação de si, de uma impregnação de potência espiritual baseada na autocontenção e na contemplação, para o golpeio incisivo e total dos “demônios” que habitam as funduras da alma, o que nos aproxima do que já falamos sobre o éthos do caçador. O melhor exemplo disso está na descrição da Guerra entre os indígenas ojibwas, trazida por Chevalier e Gheerbrandt:
[A Guerra] é uma introdução à vida mística pela ascese. Os voluntários, durante um ano, praticam o jejum, o isolamento na floresta, pedem e obtém visões, porque a guerra é considerada antes de tudo uma libação de sangue, um ato sagrado — Servier, J., O Homem e o Invisível
E, citando Soustelle:
… o destino normal de um guerreiro é oferecer vítimas aos deuses, antes de tombar, ele também, sobre a ara dos sacrifícios. — O Pensamento Cosmológico dos Mexicanos Ancestrais
É esse o sentido pelo qual se deve ler Mateus 11:12: “Desde os dias de João Batista até agora, o reino dos céus é tomado por esforço [com violência], e os que se esforçam [os violentos] se apoderam dele.” No contexto da Guerra Escatológica inaugurada em Cristo, vai-se da Pequena Guerra Santa, combatida pelos zelotas com espadas e lanças, para a Grande Guerra Santa, que é aquela combatida por todos aqueles que ingressam no Reino de Deus: a violência contra si mesmos, vencendo o Velho Homem pela mortificação dos membros da carne. Assim, o sacrifício guerreiro do cristão é aquele de sua própria carne — mas ele mesmo pode ser sacrificado, ou martirizado, pelos inimigos de Deus.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 15 de junho de 2023.