Sobre Instintos, Arquétipos, Mitologia e Processo Histórico
Um insight e uma redação livres
Em seu estudo sobre os fundamentos do comportamento humano, Campbell recorre ao conceito de “estampagem”, cujo grande exemplo no reino animal insta nas primeiras ações dos patinhos, com a clássica opção do recém-nascido pela primeira referência ambiental que possa ser identificada como sendo sua mãe — diferentemente das tartarugas, que sabem ir diretamente para o mar assim que saem de seus ovos, sendo comandadas por um instinto maximamente rígido e fechado, os patos, no caso supracitado, têm o instinto, mas ele é relativamente aberto a uma espécie de aprendizado, que é baseado nos dados do ambiente imediato. Assim ocorre com a maior parte de nossas disposições inatas, ou instintos: atuam como comandos ou diretrizes, com uma espécie de lógica interna, e demandam referenciais exteriores adequados para que se encarnem, se formatem segundo esses referenciais.
Ao supracitado e num sentido relativamente específico, Edward Wilson (A Conquista Cultural da Terra) chamará “aprendizado preparado”, porque nascemos predispostos a assimilar muitíssimo bem uma certa variedade de conteúdos disponíveis no ambiente, porque esses conteúdos estão estruturados de tal maneira que correspondem bem o suficiente às predisposições nativas do filossoma, ou da espécie — o que implica, evidentemente, em na imposição de certo “artefato” interior à forma exterior, que é conhecida também a partir de um “a priori”. Não importa qual a língua, nascemos preparados para o aprendizado da linguagem e nos desenvolveremos com imensa facilidade dentro da língua que nos for apresentada por primeiro; não importam, em sentido estrito, quais as normas morais, nascemos preparados para a moralidade e nos adequaremos perfeitamente bem à infraestrutura dos valores que nos forem ensinados desde o berço; não importa a religião, em sentido estrito, nascemos dotados de um apetite religioso que se suprirá com máxima naturalidade da fé familiar. Participa aqui o conceito de “estampagem”, pois as primeiras impressões sólidas e satisfatórias do ambiente serão assumidas como referências básicas e de vigor indelével para as categorias nativas, que existem primitivamente como instintos. O aprendizado humano é tão completo, que até mesmo os modos de expressão emocional lançam raízes no mimetismo primevo, no espelhamento do ambiente. Pode-se, por conseguinte, afirmar que o ser humano, conquanto possuidor de uma gama de instintos ou de predisposições, demanda muito mais dos recursos exteriores para estruturá-los do que as demais criaturas.
… até mesmo os modos de expressão emocional lançam raízes no mimetismo primevo…
Em certa medida, e com o perdão da parcialidade, os arquétipos do Inconsciente Coletivo são instintos nesse sentido. Categorias apriorísticas, carregam as disposições nativas do filossoma na inteireza de sua variedade de inatismos, demandando todo o referencial disponível, sobretudo na primeira infância, para encontrar as primeiras conformações gestálticas capazes de estruturá-los. O arquétipo da Anima é, no homem, a referência nativa do feminino, podendo ser divisado, ainda que não completamente, como a inclinação do masculino ao feminino, sendo responsável, em sua expressão mais básica, pela orientação visceral que o homem sente eclodir desde dentro de si para a aproximação quase irresistível de uma mulher, a ser desejada e procurada, para além dos fatores racionais, principalmente por uma espécie de impressão geral de qualidades intrínsecas apreciáveis — há aqui uma espécie de conhecimento e de sabedoria pré-racional, altamente vital e toda dotada de uma lógica que, uma vez inflamado o interesse pelo feminino exterior, se impõe, regulando as emoções, os pensamentos e os comportamentos. A qualidade da Anima dependerá de como esse arquétipo pôde ser estruturado já no início da vida, segundo as referências fundamentais colhidas no lar e nas suas imediações, sobretudo na figura da mãe, que é a protagonista na boa conformação da arquitetura emocional do menino.
Outrora elaboramos muito delongadamente, com uma ênfase na psicossomática e na habitação corporal dos instintos, como os arquétipos foram sendo impregnados de informações adquiridas ao longo da experiência cultural multimilenária da humanidade pré-histórica, acompanhando as transformações na estrutura do corpo e dos órgãos conforme as mudanças de comportamento, sempre alinhadas a uma série de imagens mentais, de maneira que não convém nos determos aqui na formação do Inconsciente Coletivo. Importa que há, tão plástico que é o homem, uma coleção infinitesimal de referenciais imagéticos e ambientais mais ou menos adequados aos arquétipos, donde a estruturação dos instintos, que são arquetipizados, se valerá do acúmulo de experiências e do contato com o sem-número de marcos exteriores que forem emergindo ao longo da vida — daí a importância da educação formal e da formação cultural. Se as experiências primitivas da infância dão a moldura mais sólida para a estruturação elementar dos arquétipos mais básicos, não se deve ignorar a margem elástica de aprendizado humano substancial ao longo da vida, capaz de enriquecer e de desenvolver as primeiras impressões de maneira virtualmente ilimitada, dando-as estruturas expressivas mais adaptadas e adequadas a cada etapa do desenvolvimento da personalidade.
Os instintos são como que absolutos e podem reduzir toda a existência ao seu imperativo…
Uma outra qualidade dos arquétipos, como a Anima, e que está relacionada à natureza dos instintos, é a sua vocação ao Absoluto, buscando para si toda a energia psíquica disponível, ou até onde for possível. Os instintos, quando inflamados por ocasião de necessidade singular ou de um estímulo sobremodo apelativo e que se alinhe a uma predisposição interna extraordinariamente compatível, tendem a dominar momentaneamente todo o comportamento dos animais, e, no homem, também seus pensamentos e suas emoções. Os instintos são como que absolutos, no sentido de carregarem em si uma lógica limitante e que assume o ambiente de maneira unilateral e monolítica, segundo o objeto de seu interesse, e podem reduzir toda a existência, no ato de sua eclosão, ao seu imperativo — atraindo para si, tanto quanto puder, um máximo de recursos internos. É dessa maneira que os arquétipos condensam verdadeiros mundos, na medida em que buscam se estruturar no sentido de uma parcialização do ambiente para que ele, o ambiente, redunde as suas formas internas — as dos arquétipos. Doutro modo: o arquétipo, ao buscar um referencial exterior para se estruturar, tenderá sempre a estruturar todo o mundo segundo a sua norma interna. Por isso a Anima, por exemplo, é vista como lançando raízes no Si-Mesmo, o próprio centro da psique ou a “imagem de Deus” — o Absoluto. Quer-se com isso dizer, dentre outras coisas, que este arquétipo tem o potencial intrínseco de puxar para si a energia de um Absoluto, ou da totalidade da psique, impondo-se, por um momento, como a tônica geral da vida mental e do comportamento. Isso será mais forte, tanto mais fraca a consciência individual e quanto menos bem estruturada e especializada for a vida interior.
A mitologia apresenta essas qualidades. Como dirá W. F. Otto a respeito dos deuses gregos, são as divindades antigas imagens que condensam o Absoluto, ou o Ser, configurando unidades totais de seus diferentes aspectos ou qualidades — elas têm a natureza ou apelo numinoso do Absoluto, pois se referem ao e se nutrem do Centro da Divindade, mas são representações da Divindade, ou da Realidade, no sentido unilateral de cada uma de suas características, como as cores da luz branca. Por isso, cada divindade pagã é um mundo inteiro e porta em si o potencial de atrair toda a “energeia” cósmica e de estruturar o Mundo segundo a sua própria natureza — Afrodite É o “eros” selvagem, a fertilidade telúrica, É a primavera e É o Mundo na ocasião de sua hierofania primaveril. Evidentemente, essas divindades se desenvolvem e se complexibilizam, pois adquirem mais estrutura na medida em que são enriquecidas pelo processo cultural e pelo desenvolvimento da psique coletiva — isto é: são educadas como verdadeiros “instintos coletivos” ou “culturais”, tal como são culturalmente educados os instintos do homem individual.
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A natureza fundamental dos arquétipos Anima e Animus, com base no curso do que foi dito acima, se divisará no fato de que há no homem uma inclinação natural e inveterada para o feminino, uma inclinação tal que não existe na mulher — e vice-versa. A depender da maneira de esses instintos se estruturarem, ou da impossibilidade de se desenvolverem na direção de objetos exteriores verdadeiramente adequados, eles deverão se “realizar” internamente e em um sentido mais primitivo e eminentemente emocional — eis aqui, portanto, como um homem pode ser dominado pela Anima nos termos de uma possessão interior do ego: é uma realização instintual “invertida”, por assim dizer, e ele passa a assumir para si e em sua vida emocional aquilo que deveria ter sido procurado e encontrado exteriormente. Ou seja: o referencial ou a direção instintual é refluída para dentro e ele passa a operar com um “comportamento regressivo e infantil”, “choroso e ressentido” (Edinger — Ciência da Alma).
Textos de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook em 28 de janeiro de 2025.