Sobre o Papel do Primitivo no Amor

E da importância de fazer-se competitivo neste quesito

Natanael Pedro Castoldi
10 min readAug 25, 2024

Como disse Konrad Lorenz (A Demolição do Homem), a seleção natural não se planeja prevendo resultados futuros, mas reage ao momentâneo e imediato, porque a grande preocupação do genoma da espécie é a sua sobrevivência e a sua replicação. A sobrevivência do espécime dependerá de sua adaptação ao ambiente e da sua competitividade extraespecífica — sobrevivência que lhe dá mais chances reprodutivas -, mas a sua capacidade de replicação dependerá mais fortemente de sua competitividade intraespecífica — do quanto, por exemplo, uma ave macho é capaz de magnetizar o olhar da fêmea e, assim, superar os concorrentes. Esse tipo de competição pode redundar na hiperênfase naqueles órgãos reprodutivamente apelativos, que tanto atraiam as fêmeas, quanto façam recuar outros machos. Uma tal hiperênfase não raramente impõe dificuldades imensas ao macho, que chega no limite da não sobrevivência — como é o caso do faisão argusiano, que ostenta asas longuíssimas cravejadas de “olhos” hipnóticos, mas que praticamente o impedem de voar (sua capacidade de voo está na fronteira da incapacidade de fugir de predadores).

Perduram, portanto, nas mais diversas espécies características do mais elevado custo e que existem exclusivamente “em benefício do genoma” (p. 42), quase ou sem função específica para a sobrevivência em seu sentido mais amplo. Entre os cervos, a presença de ostensivas galhadas ósseas nos machos aí está para cumprir um papel eminentemente reprodutivo, servindo nos combates entre competidores e atuando como chamariz, ou disparador ótico para as fêmeas — foi observado que é possível atrair todo o harém com uma galhada artificial de dimensões titânicas, sobrepujando facilmente mesmo o macho mais viril. Em todo o restante do ano, o cervo deverá gastar quantidades enormes de energia para construir a galhada nova, porque ele descarta um par todo o ano, a qual estará altamente vulnerável e será bastante sensível enquanto não estiver madura, e deverá carregá-la, com seus vários quilos, por muitos meses, com todo o ônus implicado em sua locomoção nos bosques. Como dito, isto é assim em benefício do genoma, mas não tem “sentido algum para a preservação da espécie” (p. 42). A maior parte do supracitado, convém observar, não depende de uma aderência necessária ao darwinismo ou a alguma doutrina evolucionária.

… se desdobra culturalmente através da hipertrofia dessas mesmas características…

O homem também apresenta essas características em um determinado nível. Como disse Nesturque (As Raças Humanas), há muito tempo a necessidade de adaptação do espécime ao ambiente natural é reduzida, substituída que está pela cultura e pela tecnologia, donde a conservação de traços fenotípicos vinculados às raças, embora tenham sido originados principalmente em função de necessidades climáticas, estar muito mais ligada às preferências de tipo cultural — ao que se considera bonito e ao que se conserva como reprodutivamente apelativo. Podemos aproximar Nesturque de Lorenz e supor que as qualidades fenotípicas conservadas pela cultura foram preferencialmente aquelas que outrora estiveram vinculadas às melhores evidências de saúde genética e, portanto, de capacidade reprodutiva e de geração de boa descendência. A raiz, por conseguinte, se mantém primordialmente como aquela ligada a uma melhor adaptabilidade para um mundo primitivo e se desdobra culturalmente através da hipertrofia dessas mesmas características, sem nenhuma relação imediata e direta com a previsão de sobrevivência da espécie a longo prazo — isso, no ser humano, acontecerá mediatamente, por meio da aplicação da inteligência, mas, via de regra, a posteriori e para corroborar a compulsão instintiva primeira.

No caso da humanidade, diferentemente daquilo que acontece com os cervos, por exemplo, há uma dupla via de conquista e um duplo território de competição reprodutiva, pois as mulheres concorrem, assim como os homens, para superarem rivais e atraírem o interesse dos pretendentes ou daqueles em específico que lhes suscitaram ímpeto. É claro que existem muitíssimos outros fatores, pois somos tremendamente complexos, mas não devemos ignorar a importância desses elementos primevos, que estão estritamente ligados à geração de uma descendência numerosa e saudável. Em geral, de todo o modo, se mantém a infraestrutura do que se vê nos mamíferos superiores: a mulher instigará o desejo e tenderá a permitir que o homem tente conquistá-la. Mantém-se, aqui, algo daquele magnetismo suscitado pela presença do homem, com os qualificadores que servem como disparadores ópticos, tão aproximados que são de todo o emaranhado de processos ligados aos rituais de conquista — porque esses disparadores se vinculam a “órgãos” especializados, os quais incluem determinado desempenho comportamental.

… servem como disparadores ópticos, tão aproximados que são de todo do emaranhado de processos ligados aos rituais de conquista…

São quase incontáveis os motivos disparadores de interesse mútuo entre mulheres e homens, variáveis segundo a formação pessoal, certos modismos e determinadas qualidades estáveis, estas mais restritas à subcultura da qual o indivíduo faça parte. Todavia, esses motivos devem remeter, em maior ou menor grau, a uma quantidade relativamente pequena de imperativos instintuais — devem sinalizar algo das qualidades primitivas que uma vez foram selecionadas pela espécie como evidência de superioridade genética e reprodutiva. Isto é assim, pois, dirá Lorenz, os caminhos uma vez selecionados pela espécie ao longo de sua extensa jornada biológica, não podem ser simplesmente revertidos no mesmo momento em que se mostrarem inadequados ao ambiente e às necessidades gerais de sobrevivência — as determinações e alterações adaptativas são, via de regra, apenas ressignificadas, isto é: funcionalmente alteradas, quando não continuarem se impondo, mesmo defasadas, simplesmente por não poderem ser desfeitas e principalmente por já participarem do jogo reprodutivo intraespecífico, o qual as mantém, de alguma maneira, pertinentes. Daí comportamentos hoje considerados patológicos, como o “infanticídio” entre os leões — o macho vencedor elimina toda a prole do macho vencido -, poderem perdurar indefinidamente, disseminados como padrão genérico da espécie.

Sendo orgânicos, biológicos, e movidos por toda a sorte de imperativos instintuais relativos ao filossoma, na medida em que compartilhamos estruturas corporais que possuem diversas analogias com aquelas de animais de todos os níveis de complexidade, o que impõe uma miríade de compulsões selvagens relativas a essas estruturas, e que somos parcialmente reféns do imperativo reprodutivo de perpetuação do genoma, que atua sobre nós no nível individual, mas, sobretudo, impondo-nos compromissos da espécie como um todo, não podemos nos eximir completamente de dar algum objeto minimamente satisfatório aos apetites que nos são basilares. A inter-relação gene-cultura, apontada por Wilson (A Conquista Cultural da Terra), na medida em que o ecossistema mais determinante, permanente e duradouro no homem é aquele da cultura, implica na alteração funcional de diversos órgãos e comportamentos, para que correspondam ao ambiente cultural, já sobremaneira superado o “natural” (daí a perpetuação de aspectos fenotípicos, primeiramente adaptados ao ambiente hostil, na condição de disparadores ópticos de interesse reprodutivo, tendo sido há muito transcendido o seu lócus originário). Donde, pois, a formação dos chamados arquétipos, que são verdadeiros instintos alterados culturalmente, pelos quais resquícios arcaicos foram preservados sob novas roupagens, relativas ao societário mais do que ao “natural”, razão pela qual impõem forte impressão afetiva, aliada a um correlato comportamental, e pedem por uma sofisticada assimilação simbólica e estruturada, uma vez que há neles algo de “nonsense”, isto é: de absolutamente selvagem. Pavores irracionais de baratas e ratos são tão desproporcionais e aparentemente tão contraproducentes, porque guardam o gérmen de terríveis medos que fizeram sentido nos primórdios — e que ainda fazem algum sentido apenas na primeira infância.

… os arquétipos são verdadeiros instintos alterados culturalmente…

A preservação de resquícios arcaicos no contexto da competição intraespecífica, alterados funcionalmente como disparadores ópticos na conquista amorosa — função que sobrepõe seu defasado uso na sobrevivência ao clima (o que certamente já os tornava reprodutivamente interessantes, embora não apenas isso) -, é o que conserva a aura de “nonsense” nesse território. Mesmo o homem mais civilizado, mais culto e mais bem-sucedido pode pôr tudo a perder em um comportamento subitamente alucinado, arrastado para paixões das mais incoerentes e do mais elevado custo. Toda a loucura dos enamorados, ou dos apaixonados que não são correspondidos, ou daqueles que ingressam em incansáveis jornadas de conquista, não pode redundar noutra coisa que não em desconfiança da comunidade mais ampla — a tendência restritiva, reguladora, punitiva e persecutória da comunidade local frente à insanidade dos jovens apaixonados, tão bem descrita por Aldo Coratenuto (Eros e Pathos), tem uma razão de ser.

É evidente, como já disse noutras vezes durante este texto, que não se pode reduzir tudo a esses elementos instituais, já que falamos do homem — todavia, nada desqualifica a ênfase que ora damos a tais aspectos. O fato é que, no quesito da conquista amorosa, nos encontramos revolvidos por pulsões verdadeiramente irracionais, hipnotizados por impressões puramente estéticas e comportamentais que puxam sua energia de um “código” de sinais de valor reprodutivo fossilizado e extraordinariamente defasado, que, via de regra, não faz quase nenhum sentido em nosso tipo de sociedade (sendo-lhe até contrário) e que, ao fim e ao cabo, não justifica a intensidade dos afetos que desperta.

… puxam sua energia de um “código” de sinais de valor reprodutivo fossilizado e extraordinariamente defasado…

Como já dito, a grande preocupação do genoma é a sua própria sobrevivência imediata, ou seja: garantir o quanto antes a sua replicação — uma preocupação que é da espécie mais do que do sujeito. Não está em questão, nisso, nenhuma inquietação com um futuro que não seja de curto prazo e com qualquer qualidade que não seja aquela que mais facilmente viabilize a reprodução. Disso usualmente não participam as grandes conquistas de nossa civilização e de nossa sofisticada cultura — se estão envolvidos bens de consumo de alto valor social, eles participarão do jogo como indicativos da superioridade física do pretendente, ou pouco mais do que isso. Motivo pelo qual figuras de menor prestígio social poderão acabar também atraindo o interesse aventureiro de pretendentes, porque se fazem competitivas especificamente no terreno da disputa intraespecífica de tipo reprodutivo, uma vez que também transparecem superioridade física, mas através de um estilo de vida subversivo e de uma hipertrofia nos “órgãos” disparadores do interesse — nisso estão inclusas as vestes, o modo de falar… A inteligência, se participar desse jogo, igualmente virá como um indicativo de superioridade física, sugerida pela capacidade de obter bens de alto valor social ou pela astúcia envolvida em um estilo de vida ardiloso.

Note-se como a competição reprodutiva intraespecífica pode facilmente recair em distorções da realidade — até porque ela será eminentemente lúdica. Note-se, pois, como é fácil obter vantagens por meio de ilusões apelativas, baseadas no bom desempenho pontual e na resposta imediata. Todos os valores fundantes de nossa civilização altamente sofisticada estão, neste campo, reduzidos a categorias excessivamente elementares, donde indivíduos que não desenvolveram suficientemente bem as qualidades consideradas úteis para a participação efetiva na cultura, detentores, pois, de baixo prestígio social, poderem superar incontáveis concorrentes através de sua capacidade de bem emular aquelas qualidades primitivas, altamente arcaicas, que dão vantagens instantâneas na conquista amorosa — todas aquelas que indiquem algum nível de superioridade física, o que incluirá a astúcia travestida de inteligência.

… daí o imediatismo reprodutivo incorrer em tendências que são altamente onerosas para o macro da sociedade…

Por essas razões, é quase lei que as melhores qualidades civilizacionais, dentre as quais a erudição e o comportamento pró-social, não tendo sido codificadas como basilares dentre os sinais disparadores, porque mui menos arcaicas, não sejam as preferidas no âmbito da competição reprodutiva intraespecífica — daí o imediatismo reprodutivo incorrer em tendências que são altamente onerosas para o macro da sociedade, preservando características disparadoras que têm valor eminentemente momentâneo, especificamente dirigidas à conquista, mas que pouco podem oferecer, na medida em que são replicadas, para o conjunto da sociedade em sua vida mais ampla e em toda a esfera de atuação que não esteja ligada diretamente à reprodutividade pura e simples. Donde, reitero, a desconfiança comunal aos enamorados fazer sentido, assim como o conflito transgeracional, que aqui é lugar comum, pois os observadores, estando indiretamente envolvidos, darão ênfase a qualidades mais substanciais e perenes na aprovação ou rejeição do pretendente, enquanto o jovem tenderá a ser arrastado por fatores mais elementares. Só com muito custo, principalmente conseguindo se manter afastado geográfica e temporalmente, conseguirá fazer valer critérios mais razoáveis do que aqueles que despertaram a paixão.

Não são incomuns, e não por outras razões, as queixas de bons rapazes e de boas moças, cheios de virtudes, que vivem perdendo para rivais mais primitivos, dotados de qualidades físicas e movidos por comportamentos apelativos hipertrofiados, mas que pouco e nada têm a oferecer além disso. Ocorre que, no quesito da conquista, não se pode desprezar a importância de se estar munido dos disparadores do interesse — como sabemos, eles são altamente arcaicos e, gostando ou não, precisam encontrar lugar caso se queira chamar a atenção em um primeiro momento (depois disso, uma vez cativado o interesse, todas as nobres virtudes poderão ter valor e lugar). Por conseguinte, se a questão é conseguir chamar a atenção do pretendente ao menos uma primeira vez, é imperativo que não se resista à natureza das coisas e que se consiga, de alguma maneira, emular na aparência e na conduta, dentro das próprias possibilidades, aquelas qualidades primitivas que anunciam as virtudes físicas universalmente almejadas pela espécie, porque codificadas instintivamente. E que se consiga, através do discurso e do comportamento, conservar aquele elemento lúdico que torna a maioria das palavras e das ações, no âmbito da conquista, competitivas — doutro modo: que se saiba atribuir, pelas vias verbal e não verbal, às virtudes e aos interesses uma importância concreta, que transpareça o vigor físico supracitado.

Não são incomuns as queixas de bons rapazes e de boas moças que vivem perdendo para rivais…

Mesmo a pessoa mais virtuosa, quando está sendo desejada, será mais facilmente conquistada se for encontrada nestes termos, para que se possa, dela, despertar o interesse para si. Que ninguém exija ser correspondido simplesmente porque sabe de si que sobeja qualidades, pois estamos falando, neste campo que se abre quando é disparado o interesse, de algo diferente de uma mera amizade ou de uma mera admiração. Não se espere, pois, o predomínio da racionalidade, seja de si, seja da contraparte, em ocasiões tais — que os critérios sejam pressupostos e resgatados posteriormente, sem que haja a ilusão de que é possível simplesmente desejar alguém por motivos racionais ou forçar a própria desejabilidade pelas mesmas razões. Há operações e imperativos próprios e apropriados a um instinto inflamado, o qual deve ser domado, mas sem o qual não há espaço para o aventuresco da conquista e da paixão.

Não se desconsidere tantas exceções ao supracitado. Não se ignore, contudo, o papel do primitivo junto da base do amor erótico, isto é: conjugal, mais amadurecido.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 25 de agosto de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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