Sobre o Sentido Espiritual das Escrituras

O Mistério de Deus em Cristo

Natanael Pedro Castoldi
6 min readJan 28, 2025

Uma das maiores lições sobre a leitura do Antigo Testamento eu aprendi com Enih Gil’ead, que diz numa nota de sua tradução ao Gênesis, noutras palavras: a Verdade de Deus é Jesus, de maneira que o entendimento profundo de toda a Escritura está Cristo. A ninguém que conheça algo da relação histórica do povo judeu com a Bíblia passa despercebida a compreensão primitiva de que na Escritura há um sentido profundo e espiritual, acessível apenas aos Sábios e sob uma especialíssima condição de iluminação divina, e um sentido superficial e literal, acessível ao vulgo e facilmente compreendido numa leitura ingênua. Essa atitude começa a ser gestada entre os israelitas no tempo dos profetas, quando o retorno às Origens, sobretudo ao Êxodo, é assimilado em termos tipológicos e os relatos antigos começam a ser espiritualizados — mais primitivamente, o próprio Davi defendeu uma visão ética, portanto simbólica, dos holocaustos no Templo, os quais de fato têm valor se acompanhados de uma boa disposição interior (Sl 51:16–17), enquanto Salomão, seu filho, soube ter no Templo um éctipo da realidade arquetípica do Santuário Celestial do Criador (2 Cr 6:18). Vê-se, portanto, como a edificação do Santuário em Jerusalém, feito de pedras talhadas e perenemente estabelecido sobre o Monte, tensionou com o cerne da Fé primeva de Israel, ligada ao Deserto e ao carisma de YHWH no meio do Povo (Nm 11:25–29), solicitando um “terceiro transcendente”, que é de fato uma transcendentalização ou vertical espiritualização dos símbolos da Fé: a liberdade de YHWH em Suas manifestações proféticas é conservada, e não destruída pela cristalização do culto formal no Santuário, com uma consideração mais esclarecida de Sua habitação,em primeiro lugar, no Céu dos Céus e de Sua habitação no Templo em segundo lugar, e não absoluta e definitivamente. Dessa garantia se valeu a instituição do profetismo, de modo que muitos profetas nos são apresentados como encontrados pelo Senhor nos ermos e nas aldeias, e aqueles que são vocacionados no Templo, como Isaías, têm visões do Trono de Deus posicionado muito acima do Santuário e rodeado das formas ideais ou arquetípicas de todos os itens da mobília do Santuário Salomônico.

… solicitando um “terceiro transcendente”, que é de fato uma transcendentalização dos símbolos da Fé…

Posteriormente, sobretudo com a severa catástrofe na “psique judaica” que foi a destruição do Templo pelos babilônios, o “terceiro transcendente” forneceu a tônica da ressignificação pública da Fé, viabilizando o estabelecimento da instituição da sinagoga e de uma culto quase que inteiramente ético de tipo rabínico e farisaico, acompanhado do desenvolvimento da mística judaica, eminentemente escatológica e apocalipsista, que é a estrapolação universal do sentimento ético primitivo da Fé, porque o Senhor julgará severamente todos os algozes de Israel, os quais utilizara como vetores do Seu Juízo disciplinar contra uma Israel rebelde, para santificá-la — e depois dessa debacle cósmica estabelecer, na “Eretz”, a Israel Restaurada, uma Nova Jerusalém e o Trono do Filho de Davi, o Salvador e Rei Messiânico. Com a tensão da alma israelita com o Templo e, sobretudo, desde a crise institucional da Realeza e do Santuário, destruído este e derrubada aquela, a mística pôde dar um outro sentido, espiritualizado, às liturgias, aos ofícios e a todos os elementos estruturais do Templo, retraduzindo-as em termos éticos, verticalizados e altamente pessoais — portanto totais -, de maneira que tudo quanto se pudesse divisar em termos escatológicos e apocalípticos, do Juízo e da Restauração universais, por estar fundado em um modelo celestial, possuía uma contraparte subjetiva e individual, isto é: um modo de se desvelar no coração do homem e em suas atitudes particulares para com a vida, e desde o seu cerne mais íntimo, donde a “Guerra Santa” literal, aguardada para os Últimos Dias, era antecipada na alma individual como uma luta ética contra o Pecado, sendo esta uma partícula exemplar da “Grande Guerra Santa”, de tipo espiritual, em vigor desde então.

Neste ínterim, a influência grega forneceu aos mestres os melhores recursos analógicos e tipológicos, além de termos e de conceitos precisos. Porque os sábios pagãos já haviam desenvolvido, quando do retorno dos judeus ao seu berço nacional, o instrumental teológico para uma reabsorção dos seus deuses e de suas histórias nos termos mais adequados às sensibilidades da razão. As primitivas histórias de origem folclórica e aproveitadas pelos poetas como parte da história primitiva dos reinos aqueus seguiam os humores da natureza primeva e das emoções e impulsos mais elementares, e acompanhavam as necessidades espirituais e políticas dos conquistadores indo-europeus e dos pelasgos, ou dos nativos conquistados, além de fornecerem os símbolos adequados — imediatamente disponíveis por seu apelo afetivo e por sua abundância — para certas doutrinas e para certos ofícios sagrados, de maneira que continham relatos cruentos, dotados de toda a espécie de obscenidade. Como, contudo, o sentido originário, “esotérico”, desses relatos em seus usos sagrados não era de conhecimento geral, uma vez em vigor a nova instituição da filosofia e desenvolvida a fé ao nível de pureza e de esclarecimento teológicos de um monoteísmo cosmológico, a face “exotérica” dos mitos, repleta de monstruosidades ciclópicas, se tornou indigesta e demandou um processo de reformulação ética e de abstração lógica, já iniciado com os poetas trágicos — no sentido ético, mais especificamente. Em termos de abstração, os mitos foram vertidos pelos filósofos como ilustrações alegóricas dos princípios eternos, destrinchando em termos filosóficos a sabedoria que os acompanhava desde o início, mas dentro do espectro hieroglífico das religiões tradicionais da bacia do Mediterrâneo. Importa que os judeus helenistas, principalmente os de Alexandria, assumiram e adaptaram o método alegórico em sua exegese do Antigo Testamento, pelo qual buscaram o sentido espiritual subjacente às Escrituras, impingindo na sua tradução veterotestamentária, a Septuaginta, um claro tempero escatológico e messiânico. Foi essa a versão do Antigo Testamento de uso comum pelos apóstolos e a base textual de suas leituras, consultas e aplicações na redação do Novo Testamento, donde a reação judaica pós-cristã e anticristã ter redundado na rejeição da Septuaginta e em uma revisão do texto hebraico das Escrituras na direção de um afastamento maior das sugestões messiânicas e escatológicas de maior interesse cristão.

… o Antigo Testamento inteiro carrega um sentido espiritual subjacente…

De toda a maneira, desse amálgama de supracitações brotaram todos os documentos consagrados da tradição rabínica e da mística judaica dedicados à apreensão do sentido espiritual imanente ao texto escriturístico, mas inacessível ao entendimento ingênuo. O apóstolo Paulo aplica recorrentemente o método alegórico rabínico, impondo o Sod ao Velho Testamento, como é o caso de Gálatas 4, implicando no inequívoco entendimento de que o Antigo Testamento inteiro carrega um sentido espiritual subjacente, que é a base espiritual e arquetípica dos fatos literais ou das descrições neles presentes, de maneira que atuam todos como verdadeiros símbolos, como indicativos da Verdade substancial e fundamental da Criação e do processo histórico, para além da verdade circunstancial e literal concernente à factualidade material dos registros narrados. E o apóstolo Paulo, assim como os evangelistas e demais apóstolos, veem esse sentido espiritual como alocado na Revelação do Mistério de Deus em Cristo Jesus, Mistério outrora oculto. É dessa vereda que Enih Gil’ead divisa o Cristo como a realização total da Sabedoria do Senhor e da Sua Verdade. E é com base nisso que Enih Gil’ead considera inúteis todas as tradições de mística judaica posteriores, as quais, desconhecendo o Cristo, encontram sentidos espirituais diversos em cada minúsculo fragmento do Antigo Testamento, acumulando montantes everésticos de interpretações alegóricas que, no final das contas, não têm qualquer valor que vá além de um uso sapiencial de tipo ético e pragmático, servindo, no máximo, para um entendimento mediano de aspectos da vida e do mundo. Se há um significado espiritual último e derradeiro para a Escritura, este significado é Jesus e nada mais.

O significado é Jesus! Ele é o Logos de Deus, a Sabedoria Divina, o Princípio da Criação e, Salvador Ressurreto, o Fundamento da Nova Criação. É Jesus em todas as dimensões, do íntimo do coração ao Universo; do mais breve pensar até para além do Fim da História.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 27 de janeiro de 2025.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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