Sobre os Homens Grandes

Elementos da personalidade exemplar

Natanael Pedro Castoldi
4 min readMay 5, 2023

Uma das mais impressionantes observações empíricas da psicologia analítica é a de que o processo de amadurecimento, chamado de individuação, não torna a vida mais leve, nem mais fácil, nem necessariamente mais satisfatória. Von Franz distingue-o dos resultados decorrentes dos exercícios espirituais e das promessas da alquimia, que visam uma elevação fantasmagórica capaz de colocar o homem um nível acima de todos os problemas do mundo.

… na prática constata-se que quanto mais as pessoas trabalham neste caminho, mais sutis vão se tornando as indicações do inconsciente, e mais rigorosamente a pessoa é punida ou desviada de seu curso se cometer o mais leve engano. Nos estágios iniciais, a pessoa pode cometer os mais horríveis pecados de inconsciência e de estupidez sem ter de pagar muito por isso. A natureza não se vinga. Mas à medida que o trabalho progride ao longo dos anos, até mesmo um pequeno desvio, uma sugestão induzida por uma palavra inadequada, ou um fugaz pensamento errado podem ter as piores consequências psicossomáticas. É como se a pessoa se tornasse cada vez mais sutil, andando no fio da navalha. Qualquer faux-pas é uma catástrofe abissal, enquanto anteriormente podia-se afastar quilômetros do caminho certo sem que o inconsciente desfechasse uma bofetada ou se vingasse de alguma forma. — Alquimia e a Imaginação Ativa, pp. 185–186

Noutros termos: a ampliação da consciência sobre quem se é, as próprias misérias interiores e o lugar que se ocupa no mundo, com seu corrente senso de missão, tornam mais dolorosas as lutas consigo mesmo e as questões abertas com a realidade. Como Lewis disse a respeito de Cristo, sofre mais severamente a tentação quem melhor compreende a magnitude do Mal e o significado ontológico dos menores desvios. O homem amadurecido, pneumático e, portanto, de inteligência abrasada, é inevitavelmente um solitário, no sentido de encontrar-se seguidamente sob a nuvem de Deus — e é ali, na viração do dia, no Jardim, na hora da visitação divina, que todas as questões de seu coração refluem e inflamam, e não há pensamento que possa ser encoberto. Tudo, por conseguinte, se torna mais grave, porque o combate espiritual ocorre frontalmente, com extrema lucidez, e não há sombras nas quais quais se ocultar.

Todo o ato de vandalismo, que destrói a memória e a beleza, é uma vitória das hostes do Inferno

Esse homem também é posto diante da crueza do mundo derredor. Ele não pode mais se refugiar em fantasias apaziguadoras de perenidade e de progresso infindável. Escatológico, percebe a tensão de sua alma, esmagada entre o Vazio e o Divino, na natureza, e sofre as suas dores na mesma medida em que exulta com sua beleza, permitindo-se elevar à visão da diminuta borboleta, assim como ao sublime dos transtornos atmosféricos. Igualmente, percebe com máxima sensibilidade a desgraça e a glória dos homens, porque conhece o seu próprio coração, e se lamenta com a barbárie, e se alegra e emociona com a bela sinfonia. Mediante o Nada e o Eterno, conquanto saiba lidar com máximas abstrações, vê a teodisseia transcorrendo na frente dos seus olhos, o Mal é-lhe ontológico e, por isso, concreto — o encontra a cada esquina da Cidade e nas travessias de seus próprios pensamentos. A ocasião da caridade assume proporções cósmicas, cada ato de bondade é uma seta lançada no Abismo e todo o ato de vandalismo, que destrói a memória e a beleza, é uma vitória das hostes do Inferno.

Temos bons exemplos de personalidades magnânimas que o ilustram muito bem. Tolkien, por exemplo, se condoía e se angustiava intensamente quando descobria que mais uma parte da rústica paisagem do interior inglês havia sido destruída para a abertura de uma nova estrada asfaltada, assim como muito lamentou o corte da majestosa árvore do seu vizinho. Scruton, sob o peso do mesmo fardo, tomou o cuidado de sempre alimentar os animais sobreviventes dos bosques ingleses, aqueles que habitavam e cruzavam sua propriedade. Dalrymple soube lamentar com ardor a tragédia do lixo que viu espalhado ao largo das rodovias de seu país! E a desolação de Chesterton quando um restaurante lhe serviu queijo com biscoitos, não com pão, com isso quebrando a tão antiga e sagrada união cristã entre pão e queijo? Foi, em parte, a sina da luta pela preservação do patrimônio arquitetônico da Inglaterra que levou ao assassinato da reputação de Scruton e ao seu martírio. E foi o mesmo Scruton que, livro por livro, jovem por jovem, soube combater a ditadura soviética na Hungria.

Vê-se como esses homens, tendo sentido o peso e a densidade da vida e desse mundo, e tendo sido esclarecidos sobre o seu lugar na ordem das coisas, assumiram, à luz do apóstolo Paulo, suas vocações até o fim. Souberam chorar e se rejubilar pelas coisas certas. Foram como o rei Davi! Por isso, conseguiram amar sem reservas suas esposas e seus filhos, e viver o kairós, sabendo estar em conformidade com a realidade e com os tempos — na festa, máxima alegria; com os amigos, plena entrega; na hora do ocaso rubro, sepulcral silêncio; diante dos filisteus, severidade implacável.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 05 de maio de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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