Theos, Zeus, Deus To Zôon

Sobre teofanias

Natanael Pedro Castoldi
6 min readJan 25, 2024

O quanto surpreendi-me com o estudo de Kerényi sobre o sentido grego de ‘Théos’ não é fácil de descrever. Porque é problemática a mera transposição de ‘Theos’ como ‘Deus’ no habitual sentido judeu e cristão — é apenas no grego tardio, utilizado por cristãos e judeus, que ‘Theos’ aparece como vocativo, dados os imperativos de um uso cúltico, o que quer dizer que o grego arcaico desconhece qualquer uso de ‘Theos’ como vocativo, sendo originalmente um termo de uso predicativo, de maneira que, nesse tempo, nada se afirmava sobre ‘Theos’, embora se afirmasse das coisas que ‘eram Theos’. Até mesmo o nominativo, sobre o qual falaremos a seguir, é, quando em sentido de invocação, tardio e posterior ao predicativo.

Sobretudo eventos especialmente marcantes eram ditos como ‘Theos’, e o mesmo se dizia daquilo que era desejável. Sempre, todavia, se tratava de um acontecimento — o acontecimento mesmo era ‘Theos’, portanto. Quando se diz das coisas que eram ‘Theos’, entenda-se por ‘coisas’ os objetos aos quais o termo se aplicava: acontecimentos. Na literatura clássica vê-se que é ‘Theos’ o reconhecimento dos entes queridos, assim como é ‘Theos’ que um mortal auxilie outro mortal. Essa natureza do ‘Theos’ como não vocativo é, diz Kerényi, uma peculiaridade primitiva e inicial da mentalidade grega, não posterior. Em suma: “Um evento divino provavelmente será saudado como ‘Ecce deus! Theós!’, no nominativo, mas não invocado no vocativo.” — Religião Antiga, p. 213

É apenas no plural, ‘theoí’, que ‘Theos’ se dirige a uma categoria de seres imortais, os deuses, “eternos e de vida leve”. A exclamação ‘Ecce deus (theós)’, por seu turno, é o que se dá quando da irrupção DO ‘divino’ (Theîon), nunca de UM ‘divino’. “Irrompe o ‘vento divino’: ‘theós’ acontece, temporalmente neste mundo e está completamente nesse acontecer” (p. 214). Deus “acontece”, portanto. O ‘divino’ será a precondição dos ‘deuses’ (theoí), ou a qualidade que os imortais compartilham — eles são ‘deuses’ porque são o ‘divino’, ou a sua manifestação aos homens, assim como a categoria da realidade que operam, quando nela operam, é a manifestação ou a operação do ‘divino’, donde, como diria W. F. Otto, são os deuses aspectos do Ser, da totalidade do Divino, simbolizado pelo Olimpo, o Céu. Dessa maneira, o ‘divino’, indivisível, se manifesta de todo na hierofania ou teofania, no advento de seu acontecer entre os homens.

… o que se dá por ‘Theos’ será, também, a experiência de Visão, que sempre se dirige ao Divino…

A palavra grega, que está no masculino, aproxima-se, pois, do ato de nomear e do ato de aparecer, que são o mesmo evento em duas esferas de percepção — a da fixação linguística do percebido e a que é o visionariamente sensível. Por conseguinte, o que se dá por ‘Theos’ será, também, a experiência de Visão, que sempre se dirige ao Divino, como o evidencia Bonaventure. Enquanto categoria do plural dos deuses, ‘theoí’, sintetizados no Olimpo (Zeùs Ouránios), o Divino pode ser igualmente chamado ‘Zeus’, cujo nome aparece diversas vezes como o equivalente de ‘theoí’, ‘os deuses’. É ele quem está por trás dos deuses individuais, sendo a sua fonte ontológica. Quando um grandioso evento acontece é chamado ‘Zeus’ — como ‘acontecia’ Theos, ‘acontecia’ Zeus. Isso deve ter uma relação com o Deywos indo-europeu, o Dyaus-Pitar indiano, donde Júpiter, e o Ziu germano, donde Zeus. Essa divindade uraniana era a própria Luz do Dia, e Zeus dela herdou a qualidade de ser um “acontecimento como a luz do dia”.

Enquanto substantivo masculino, Zeus está mais perto da coisa concreta do que ‘Theos’, possuindo um conteúdo concreto desconhecido por este, de maneira que esta forma, ‘Zeus’, deve ser, ainda quando um acontecer, anterior à forma ‘Theos’, que é um ato de um agente. Em termos de sentido primevo, ‘Zeus’ é o próprio Resplendor, significando linguisticamente Iluminador, e não só o resplendor do Céu e do Dia, mas aquele resplendor em geral, que alegra.

Quando um pescador avistou de longe a dádiva do mar [Perseu com sua mãe] — suspeitou haver um tesouro na caixa -, invocou além de Poseidon, o senhor do mar, outro deus: ‘Zeus no mar’. Porque no mar ‘resplandeceu para ele’ (p. 216)

Donde Zeus participar do chamado O Concreto Primitivo, que é o concreto em si, destituído de todo o material, na medida em que esse resplendor, enquanto acontecer, é sentido como realidade objetiva e substancial, com qualidade universal — todo o resplendor que acontece e que ilumina, como o resplendor do pensamento. Zeus é, pois, aquele resplendor sem distinção, a qualidade mesma do brilho, do Divino, a epifania geral e genérica que se manifesta em hierofania ou teofania antes da fixação do Mito. É imprevisível, o Numinoso per se, a aparição de uma revelação no mundo “não efetuada”, nem pictórica — é o Divino Concreto, manifesto autonomamente, e pode brilhar em toda a parte, em qualquer coisa, como evento próprio da Realidade ou manifestação do Ser. Seu resplendor brilha nas estações e fases da lua, nas idades do homem e nas idades do mundo, nos âmbitos todos da vida, sobretudo no nascimento das crianças, porque todo o resplendor de um novo ser é análogo ao resplendor do sol nascente e do Filho Divino.

… Ele era o Fogo, era o Espinheiro e era a Nuvem…

Apesar de sua ligeira similaridade com o ‘Mana’ dos polinésios, ‘Theos’, de Zeus, é a manifestação, em acontecimento, da Divindade em si, total e concretamente, e não uma generalidade de tipo panteístico. Esse acontecer do Divino é uma característica também do judaísmo antigo, quando El se comunica com Abrão através dos resplendores do Céu Estrelado, ou na hierofania da Sarça Ardente no Sinai. ‘El’ será análogo a ‘Theos’ enquanto qualidade do Divino, por isso será termo aplicado aos espíritos menores, ‘elim’, e terá o seu plural, como a totalidade da potência divina, ‘Elohim’. ‘El’, o Céu, também fora assimilado, muito precocemente, como o nome de uma divindade específica, no que se fez similar a ‘Zeus’. Tornado ‘deus otiosus’, porém, El deverá ser reencontrado em YHWH-El, de qualidades tempestuosas compartilhadas com Zeus, além da paternidade divina e da condição de Divino em sentido único — no caso de YHWH, por revelação; no caso de Zeus, por espanto e de modo cosmoteísta. Convém notar que as teofanias da Sarça e do Sinai, enquanto teofanias e manifestações do Divino, não poderiam ser menos do que a manifestação do Divino Total, O Concreto Primitivo, e de Deus mesmo, literalmente presente, porque o Divino é indivisível. Assim, Deus estava na Sarça e estava no Sinai como acontecimento, e não era Ele, então, apenas uma presença no fogo, no espinheiro e na nuvem, mas, no momento hierofânico, Ele era o Fogo, era o Espinheiro e era a Nuvem, na medida em que esses elementos perderam suas qualidades naturais e transfiguraram no ato mesmo do acontecimento do Divino e enquanto este aconteceu.

Isso me remete a uma das qualidades mais primitivas de YHWH, do Senhor: Deus To Zôon, ou Deus, O Vivo.

Mas o Senhor Deus é a verdade; ele mesmo é o Deus vivo e o Rei eterno; ao seu furor treme a terra, e as nações não podem suportar a sua indignação.
Assim lhes direis: Os deuses que não fizeram os céus e a terra desaparecerão da terra e de debaixo deste céu.
Ele fez a terra com o seu poder; ele estabeleceu o mundo com a sua sabedoria, e com a sua inteligência estendeu os céus.
Fazendo ele soar a sua voz, logo há rumor de águas no céu, e faz subir os vapores da extremidade da terra; faz os relâmpagos para a chuva, e dos seus tesouros faz sair o vento.
Todo o homem é embrutecido no seu conhecimento; envergonha-se todo o fundidor da sua imagem de escultura; porque sua imagem fundida é mentira, e nelas não há espírito.
- Jeremias 10:10–14

Textos de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicados em meu perfil pessoal do facebook em 25 de janeiro de 2024.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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