Tolkien: Símbolo x Alegoria

Em defesa de uma leitura iniciática

Natanael Pedro Castoldi
6 min readJul 3, 2023

Quando Tolkien foi questionado sobre o uso de alegorias em sua obra, o que negou veementemente, ele estava rejeitando a impregnação de uma mentalidade materialista no uso de seu trabalho. Porque o sentido de “alegoria” implícito nesse tipo de questionamento é aquele que busca referências à realidade concreta e comum dentro do texto — o “Um” seria uma “alegoria do pecado” no sentido de representar um aspecto do Mundo Primário nos termos do entendimento cotidiano e habitual, o que significa alegorizar o “pecado” tal como compreendido e vivido pelas pessoas leitoras, não o Pecado ontologicamente (neste caso, não faria referência a algo externo, na realidade concreta, mas mais interno, dentro e na infraestrutura da Realidade [o que significa pensá-lo {o Um} em termos simbólicos]). Similarmente, ao procurarem Jesus em Frodo, Gandalf e Aragorn, queriam ver o Jesus dos ícones e das históricas bíblicas, conhecido por eles enquanto realidade objetiva, cultural, na experiência cotidiana, não ao Cristo Cosmocrator enquanto Logos Divino, cuja Encarnação é do Mistério da Salvação (neste caso, a leitura seria ontológica, simbólica, não alegórica [porque a personagem participaria do drama eucatastrófico do Salvador enquanto realização literária, no âmbito do Mito, de um universal infraestrutural, perene e fundamental da Realidade em si]). A questão da “alegoria” no sentido supracitado vai na linha de uma positivação do conteúdo do Mito, tomado apenas no âmbito da superficialidade que possa se associar a imagens ou fatos concretos conhecidos e compartilhados enquanto exterioridade — ele seria, então, um mero espelho ou uma mera replicação da vida material e dos objetos de interesse comum, de gosto e de conhecimento compartilhados no terreno da horizontalidade. É o mesmo que dizer que a tragédia de Édipo é uma analogia ao complexo psicológico que leva o seu nome e um espelho da realidade exterior e de eventos empiricamente observáveis; tal como dizer que Actéon, o jovem caçador, é análogo ao jovem temerário de nosso tempo — com suas certezas e incertezas, com suas implicações psicológicas, com seus múltiplos desejos… Mas se assim for, o Mito não significa nada e não serve para nada, já que todo o seu potencial dialético e iniciático se perde quando visto enquanto uma mera cópia ou caixa de ressonância das coisas que nós já sabemos e que nos já vivemos.

… se assim for, o Mito não significa nada e não serve para nada

Pelo contrário, a experiência no Mito é a experiência do arrebatamento pela Noção: um ímpeto profundo magnetiza a alma do gênio, que sofre uma compulsão quase incontrolável de expressá-lo por inteiro, ao longo de sua obra. Nalguns casos, vai-se à filosofia — esta já é a sistematização de uma compulsão interior e anterior. Na maioria, como a Noção sobe nos termos de uma experiência total no Ser, procurará se desdobrar por meio de imagens, que serão símbolos, em diferentes formas artísticas. Tolkien repetidamente afirmas nas Cartas que sua obra foi toda desdobrada de um profundo ímpeto, que o perseguiu desde a infância e que o impelia à escrita como forma de catarse — era imperativo que ele se aliviasse dessa compulsão da Noção por meio de sua manifestação literária -, de maneira que algumas das principais personagens emergiram na escrita de modo espontâneo, como revelações — Aragorn e Faramir são os mais notáveis -, e que vastos trechos foram escritos como que por “outra pessoa”, uma vez que Tolkien era arrebatado pela Noção e se deslocava do tempo e do espaço habituais, e até se dissociava de seu ego convencional, no advento de determinados pontos da obra — esse é o caso do capítulo Barbárvore, d’As Duas Torres. Uma vez dominado por um símbolo, um arquétipo nocional, constelou toda uma rede de manifestações simbólicas e imagéticas, inteiramente regulada e calibrada segundo a lógica do símbolo principal, ou da Noção, de maneira que todas as tramas só podem ser bem compreendidas enquanto partícipes do todo que, n’última instância, é um só fenômeno e uma só coisa — a obra toda, portanto, é um mesmo símbolo, um único desdobrado prolificamente nas suas potencialidades internas, mas não à exaustão, porque todo o símbolo, radicado no Mito, é por definição inabarcável.

O símbolo, diferente da alegoria (no sentido que consideramos), não se encerra ou se satisfaz com uma busca exterior, com a localização de uma referência concreta, que supostamente descreve e ajuda a “entender melhor”. O símbolo não é símbolo de algo material e exterior, mas de algo transcendente e último, interior e substancial. Por isso, o símbolo não é uma replicação imagética do mundo da positividade horizontal, mas o veículo da positividade (que é a parte que o faz parecido com entidades do mundo sensível) para a negatividade lógica da realidade a qual se refere e, ao fim e ao cabo, da Realidade em si (seu movimento é, por conseguinte, verticalizante). Tomam-se formas do sensível não para ressoar o sensível literal, mas para conduzir o intelecto ao invisível, ao que não está dado nas particularidades e nos habituais, mas que os permeia do ponto de vista dos universais. O que significa que a experiência no Mito, no Símbolo, é uma experiência que pede por intensificação e interiorização — é contido no e dentro do Símbolo que o leitor poderá replicar internamente a experiência espiritual do autor, sendo também arrebatado pela Noção que o arrebatou. Assim, ele assumirá uma compreensão, digamos, mística, mais profunda e a partir de sua própria experiência, da realidade simbolizada — entenderá que o Um, enquanto símbolo do Mal, encapsula, na estrutura inteira da Noção ou do Mito que irradia pela obra total, uma intuição profunda e terrível do engenhoso titanismo prometeico, contrário ao Logo, ou à Palavra (que é a Noção que arrebatou Tolkien), pela intenção de falar/cantar um “discurso próprio e autoral”, uma intuição que tanto revela algo não habitual ou convencional a respeito do Pecado, quanto conduz o leitor a uma jornada verdadeiramente iniciática, que o faz saber do que se trata por meio da “visão interior” e do atingimento, ainda que parcial, da substância própria da Maldade.

Um dos problemas que Tolkien criticou em Lewis é esse: o de ele ter feito uso proposital de alegorias. De fato, esse é um problema sério, que impede a realização do Mito ou da Noção no espírito do leitor, porque inviabiliza de antemão toda a necessidade de interiorização e de verticalização na medida em que deixa às claras que as personagens de livros como Nárnia são espelhos de aspectos conhecidos e habituais do mundo exterior — Aslam mesmo diz que ele deve ser reconhecido “no mundo real”, porque ele é uma alegoria de Jesus. Não há mal nisso, de maneira alguma, mas uma obra assim não pode se prestar ao mesmo que o Legendarium, já que o próprio autor inicia e arquiteta todo o trabalho a partir da consciência lúcida de seu significado final — ele já conhece exatamente tudo o que quer dizer, apenas precisa encontrar os meios de expressá-lo literariamente, o que significa que ele está trabalhando dentro dos limites da razão comum. Tolkien deixa evidente que não sabia de antemão para onde iria com sua obra, porque ela aconteceu nele na medida em que ele experimentava, desde suas profundezas, o desdobramento da Noção de Logos, que é, ao fim e ao cabo, a Noção de Alma, ou de Centro — para isso, ele precisou intensificar-se no Mito e ir sempre mais fundo dentro de si mesmo, fechando os canais conectivos com o Mundo Primário, exceto naquilo que os símbolos têm de sensível, e é a mesmíssima jornada que o leitor deve empreender. Por isso, também, o próprio Tolkien nunca soube dizer exatamente qual era o significado último e a justificativa racional de sua obra — exceto que se tratou de uma experiência estética de máxima grandeza. É dessa maneira que ela deve ser encarada, por recomendação do próprio autor, para que possa ser vivida enquanto o Símbolo que é, em si mesma — se lhe for dada uma significação exterior, no âmbito do mundo sensível, o que significa “alegórica”, se tornará um objeto mental manipulável e descritivo da vida habitual do leitor, de seu mundo positivado e de suas vontades e desejos particulares. Não servirá para nada, exceto para dar-lhe mais motivos de ser o que já é.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 3 de julho de 2023.

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Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

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