Um Diagnóstico e uma Previsão do Brasil

Com elementos de psicologia de massas, filoanálise e teoria mimética

Natanael Pedro Castoldi
5 min readAug 16, 2024

É evidente que há um clima de medo sutil infundido nos corações da maioria expressiva, decorrente daquilo que se sabe dos recentes e vigentes desmandos do Poder, assim como daquilo que se sente, como que num contágio mimético. Também está claro que os donos do Poder, reguladores que são da mídia mainstream, garantem a perpetuação da chamada “espiral do silêncio”, instrumento midiático e propagandístico velho conhecido, uma vez que se sabe que a exclusão de determinados fatos e tópicos do noticiário implica, nalguma medida, na sua virtual inexistência nas preocupações e nas conversações populares. Tudo isso ajuda a entender algo da atual “monotonia” política de nosso país, no que concerne aos interesses próprios da população. Mas há outros fatores, talvez mais fundamentais, em jogo.

… do sentimento heroico de plenipotência popular chegou-se a uma espécie de “ressaca política”…

O fato é que nossa nação se manteve presa em um vórtice politicista de alto apelo centrípeto desde a “messiânica” eleição do figurão nos idos de 2001 — um estranho ímpeto sebastianista, de tipo idílico, se alastrou massivamente pelo macro das massas civis. Desde então, a massa civil se arranjou e rearranjou recorrentemente em multidão militante, inflamada pelo discurso populista e ideológico, no sentido da escatologia imanentizada. Essa mobilização popular, sempre oscilatória, mas nunca extinta, progrediu e explodiu, como barril de pólvora, em 2013 — um fruto dos eventos de multidão que começaram a se avolumar em 2010. Uma onda de protestos e de causas politicamente interessadas, desde o substrato popular e, desta vez, correspondente ao negligenciado espectro da imensa maioria, daquele segmento da classe média, conservadora e evangélica, varreu e arrastou o país, determinando todos os eventos que se sucederam até o início de 2023. Pode-se dizer que o espírito que se instalou nos meandros de nossa nação em 2002, que se eletrificou na primeira década, até 2013, e que entrou em contínua erupção até 2023, retirou-se de nosso país — momentaneamente. E isto foi assim pelo simples fato de que a energeia mobilizada pelas multidões se exauriu e, dos sobressaltos eufóricos às frustrações, do sentimento heroico de plenipotência popular até a recaída melancólica na impressão geral de impotência, chegou-se a uma espécie de “ressaca política” — isso tudo se refere ao que assistimos e sentimos no nível dos e enquanto cidadãos médios.

Em termos de “cérebro coletivo” e tendo em vista os estressores adicionais da Pandemia, por exemplo, essa regressão de um estado geral de euforia para uma condição de melancolia relativamente desinteressada parece uma resposta natural da “sabedoria da espécie” a um tipo de toxina que esteve exaurindo, adoecendo e enlouquecendo um sem-número de pessoas e que acabou representando uma ameaça de colapso geral. Em nada disso estou considerando o elemento estratégico do cálculo político, correto? Era necessário um freio e o filossoma, dotado de certos “instintos” relativos à vida comum, muito mais no ser humano, que congrega em verdadeiras colmeias, parece-me ter respondido adequadamente ao ambiente hostil — daí a tendência comum de simplesmente ignorar, evitar ou desconhecer certos incômodos relacionados ao “bioma” social mais amplo, isto é: ao que irradia do Estado.

Era necessário um freio e o filossoma parece-me ter respondido adequadamente a certos incômodos relacionados ao “bioma” social mais amplo…

Talvez essa esmorecimento seja também um indício de que a absoluta maioria dos votantes do governo de Ocasião realmente o fez à contragosto — isto é: não o fez animadamente ou com largas implicações ideológicas e idílicas. A essa hipótese, se acrescente o fator da culpa coletiva, do sentimento difuso de vergonha compartilhada após excessos públicos que redundaram, da cegueira relativa aos primitivos comandos da manada, em óbvias consequências negativas para a vida comum — econômicas, sociais, políticas, ambientais… em franco desacordo com a propaganda política e suas promessas (é comum o homem defender-se, pelas vias disponíveis, do sentimento degradante e depreciativo de ter sido enganado ao nível do ridículo — dentre essas vias estão a da negação e a da esquiva). Será, pois, um silêncio de certa maneira constrangedor, uma timidez envergonhada relativa ao cometimento de um verdadeiro crime contra o organismo societário, em vista do inicialmente discursado e das inúmeras evidências de crasso erro, erro altamente danoso a todos — porque o instinto societário, que solicita contribuições positivas à existência compartilhada, pede por severas retribuições, no caso do dano público ser maior do que o benefício (donde a alternativa de sequer tocar no assunto ou de amenizá-lo).

Tudo isso procurará ser compensado por investimentos societários vigorosos e por uma crescente repulsa e ojeriza pelo que corresponda ao espectro do Poder. Daí a mobilização nacional e, de certa maneira, rebelde ao Estado frente à questão da tragédia climática gaúcha — que, querendo ou não, veio em boa hora, no sentido de se disponibilizar a canalizar a boa vontade geral do “povo pelo povo”, como uma espécie, também, de retificação pela culpa sigilosa do erro político e eleitoral e como uma maneira de protesto contra o Estamento Burocrático em suas várias formas. Igualmente, pois, o afeto e a alegria gerais pelas atletas olímpicas que foram medalhistas na ginástica, assumidas como símbolos da identidade nacional, no sentido direto e imediato de uma identificação étnica, cultural e de valores com o povo brasileiro — figuras consoladoras, portanto! Tudo isso se relaciona com o alívio da ressaca política, em termos de uma compensação societária e empática, de nível massivo, alheia e até mesmo contrária ao Estado, que se mostrou o grande enganador e que foi identificado pelo “cérebro coletivo” como uma fonte de ameaça à sobrevivência coletiva.

… não tendo havido, para a resolução do conflito mimético de proporções nacionais […] temos nada mais do que o lento represamento de um montante titânico de afetos negativos.

Pode-se mesmo apregoar como positivo esse distanciamento do cidadão médio com relação aos temas políticos, ideológicos e de envergadura estatal, em favor de um reinvestimento nas individualidades, na existência própria e local, comunitária, e na identificação empática e mimética com os pares populares, com os irmãos, com os iguais, em detrimento da idolatria por personalidades públicas, sempre vinculadas à burocracia — e que tenderão a ser, agora, mais objetos de chacota e de escárnio, em um sentido generalista mesmo, do que de louvor. Esse movimento, esse retorno da maré, é importante como freio à massificação revolucionária que nos assaltou e nos modificou por cerca de vinte anos.

O ponto é que, não tendo havido, para a resolução do conflito mimético de proporções nacionais, uma verdadeira expiação, mas muito mais um retrocesso por exaustão, e havendo muita vergonha e muita culpa que pedem por retificação, assim como muitos ressentimentos e frustrações que pedem por revanche, e também porque a inteireza da população civil não está simplesmente deixando de perceber como sua vida tem piorado em todos os sentidos, isso em contraste com uma série de hipocrisias e desmandos da parte do Poder, e, acrescente-se, como não tem havido nenhum movimento massivo substancial para canalizar e dispersar essas angústias e tensões, temos nada mais do que o lento represamento de um montante titânico de afetos negativos. Esse silêncio, por conseguinte, parece mais a preparação para uma ebulição geral e virulenta, do que um sinal da omissão e da domesticação completa da massa.

Fiquemos atentos. Há algo no ar.

Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 16 de agosto de 2024.

--

--

Natanael Pedro Castoldi
Natanael Pedro Castoldi

Written by Natanael Pedro Castoldi

Psicoterapeuta com formação em teologia básica e leituras em história das religiões e simbolismo. Casado com Gabrielle Castoldi.

Responses (1)