Uma Teoria do Mito e da Cultura
Com acréscimos à Psicologia Complexa
A mente primitiva, não descompactada na miríade ascensional, ou racionalizada, dos símbolos, e desconhecedora da natureza, porque esta não havia sido ainda determinada em face da Transcendência e do Divino enquanto categoria abstrata, estava cativa de uma numinosidade vitalista universal, absorvida por inteiro pelas hierofanias naturais. Engana-se, todavia, quem pensa que o homem primitivo estava sempre sendo arremessado pelos fenômenos, idolatrando arbitrária e aleatoriamente a tudo quanto o impressionasse, vivendo sem um nexo e num não-Cosmos. Igualmente se enganará aquele que, por outro lado, ver a raiz do Mito na dúvida e na necessidade de explicação.
Ele era fascinado pelo aspecto da realidade que melhor lhe arrebatasse o espírito…
Nem todas as coisas despertavam o mesmo fascínio no primitivo e ele não se relacionava com o Mundo a partir da consciência dos diferentes reinos naturais — pois ele não tinha conhecimento da natureza enquanto objeto. Ele era fascinado pelo aspecto da realidade que melhor lhe arrebatasse o espírito — esse aspecto arrebatador se manifestava enquanto uma totalidade, um todo radicado em um fundamento indivisível, do qual o próprio homem sentia-se parte, donde ele não era exatamente um observador, mas um participante. A visão da Floresta Primitiva, da profusão vegetal e de todos os fenômenos vegetais deve ter magnetizado a mente primitiva em primeiro lugar, inundando-a com um princípio fitomórfico através do qual tudo quanto existe é uma expressão herbácea — o Mundo é ele mesmo a grande Árvore Cósmica, donde toda a estrutura da realidade é integrada por motivos arbóreos, como rizomas e raízes, caules, galhos, folhas, flores e frutos, com a sua força vital e produtiva análoga à seiva. O homem terá ele mesmo brotado da terra e todos os animais são conformes as suas analogias com a vegetação. Não há, no primitivíssimo Mundo, o dirá Campbell, uma percepção clara da Morte e dos processos reprodutivos naturais — tudo quanto há, portanto, é sentido como eclodindo gratuitamente enquanto frutificação e amadurecimento, até o retorno ao solo. A Floresta Primitiva, com a sua numinosidade fascinadora, arrastará a mente ancestral para o seu o próprio Mundo e tudo se estruturará organicamente segundo a riqueza de suas possibilidades intrínsecas. Isso será de tal maneira que, o demonstra Robert Graves (A Deusa Branca), certos povos pré-históricos assumiram as formas vegetais como modelos para a arquitetura de suas casas e das portas de suas casas, para a confecção de suas armas e das pontas de suas flechas e para o ulterior estabelecimento de seus ideogramas rúnicos, os quais repercutem uma divisão espaço-temporal toda baseada no conhecimento das árvores.
Os episódios da cena vegetal constituíam a melodia contínua do seu viver, sendo o próprio mundo de essência vegetal. Os homens-planta eram plantas antes de serem homens. A transcendência da vida vegetal enchia os espaços do mundo-planta, com suas ramificações infinitas de galhos, folhas, flores e frutos. Tudo estava em continuidade com esse ir além gerados e, na dimensão fítica, cumpria-se o rito supremo do real e o encontro com a substância última das coisas.
- V. F. da Silva, Transcendência do Mundo, p. 92
O totemismo animal descreverá uma segunda ou uma outra maneira de o homem primitivo estar no Mundo, desta vez fascinado pelo drama da animália. Mas não eram todos os animais os que exerciam o verdadeiro fascínio, que se mostravam hierofânicos per se. Se leve em conta, primeiro, que o primitivo não encarava os animais intelectualmente, segundo categorias de tipo biológico, mas como totalidades. Em cada animal habitava, em potência, todo um Mundo, este conformado pelo conjunto das manifestações cênicas ou comportamentais da criatura — numerosas, sim, mas rígidas o suficiente para serem vistos, os animais, como encarnações de um princípio interno, o qual se repetia em regimes cíclicos ou com recorrência e exatidão das mais graves e severas. A cena bestial deve ter exercido, nas palavras de da Silva, um “extraordinário fascínio, a ponto de atrair o diverso da operação humana” (p. 93), isto é: geradora de uma impressão tal, que os desempenhos de alguns animais magnetizaram os homens, e tribos inteiras, impelindo-os à imitação, chegando mesmo a dar a forma infraestrutural das culturas.
Daí a sentença inicial: a matriz do Mito não está exatamente na necessidade explicativa, baseada na dúvida. A matriz do Mito é a compulsão mimética do homem, como bem asseverou René Alleau (A Ciência dos Símbolos), que naturalmente espelhará as formas ambientais em sua expressão comportamental — e mesmo em sua expressão fisionômica. A mente cativa da “essência ofídica ou felina” (da Silva, p. 93) se organizará internamente após o arrebatamento fascinador das serpentes ou dos jaguares, e o fará com a força de legítimas obsessões, as quais clamam por compulsões imitativas. Por esse motivo, na psique totêmica proliferam todos os tipos de imaginações teriomórficas, sobretudo nos sonhos e nas experiências visionárias, impondo ritos e mitos, de maneira que aquilo que se inicia como uma repentina fascinação e que quererá dar a forma da mente, dentro em pouco já estará a formar a cultura e a performar a vida em comum. Quando a fascinação inaugural se torna “objeto” da cultura, pela própria mimese social e pelo metabolismo das trocas internas da sociedade tribal, o “objeto” da fascinação se impõe de uma maneira ainda mais fixa e profunda na mente individual, porque estrutura a própria paisagem humana — por isso é capaz de perdurar, pelo seu valor comunal, contra novas hierofanias, absorvendo-as dentro dos motivos já cristalizados.
A mente se organizará internamente, após o arrebatamento das serpentes ou dos jaguares, com a força de legítimas obsessões…
Este é um ponto de altíssimo valor nesta argumentação: o caminho natural para a “formatação” da psique e da personalidade humanas é a busca instintiva por modelos disponíveis no ambiente — os outros, em primeiro lugar e para o bebê, mas, em escala de maior intensidade, o Fascinador — seja ele vegetal, seja ele animal, seja ele climático e esteja ele nos processos cultos, como a dionisíaca superação do vegetal na produção do vinho ou do pão. Isto é devido à necessidade visceral de o homem se posicionar no Mundo, de encontrar um norte, um princípio existencial forte o suficiente para integrar as estruturas de seu pensamento, de seu sentimento e de seu movimento — pois é própria do homem uma qualidade sobremaneira plástica, menos fortemente determinada por pulsões instintivas de envergadura animalesca, porque consciente de si.
No interior da essência ofídica ou felina da cena mundanal é que o agente humano em potência vislumbra o seu papel. As paixões animais abrem caminho para os impulsos que são consignados ao protagonista histórico a partir da peça (‘Schau-Schück’) teriomórfica.
- da Silva, p. 93
Neste campo, no qual não há uma clara distinção entre o homem e o vegetal, ou entre o homem e o animal, os homens ainda sendo animais e os animais podendo ser homens, vislumbramos o espetacular e surrealista trânsito mítico de xamãs e deuses que se metamorfoseiam em feras e de feras que se transubstanciam em outros animais ou que se fazem homens, seja por traços antropomórficos, desde a fala até algumas partes do corpo, seja por inteiro. Tal fluidez de formas ainda persiste na psique onírica, na qual segue transcorrendo com uma naturalidade surpreendente, e nas imaginações infantis, nas quais a realidade e seus fenômenos ainda não foram claramente circunscritos e estabilizados pela linguagem.
… se conservam as formas mentais dos patriarcas da humanidade profunda nas bases filogenéticas da nossa própria mente…
Não deve nos surpreender de maneira alguma a aparição de motivos fitomórficos e teriomórificos primordiais em nossos sonhos, em vista da proporção da dominação da mente primitiva, às raias da sua totalidade, obsessiva que estivera pelos motivos vegetais e animais e pela extensão de tempo transcorrida enquanto estivera absorvida por tais Fascinadores, implicando em estruturas de personalidade, de comportamento e de sociedade de todo comovidas por eles.
A maneira desses predomínios, o alcance da mimese por eles mobilizada, o fato de darem a forma ou o modelo das psiques e das culturas ancestrais, justificam muito bem a qualidade arquetípica de suas imagens, do fascínio que suscitam e das compulsões que impõem, porque se conservam as formas mentais dos patriarcas da humanidade profunda nas bases filogenéticas da nossa própria mente — isto é: o Inconsciente Coletivo. É sempre e invariavelmente a partir deste substrato primitivo que a nossa psique se desenvolve ao ponto de se adequar às maneiras atuais de nossa civilização, e é sempre ao lócus pré-histórico dos imperativos vegetais e animais totalizantes que os símbolos mais sofisticados de nossa cultura acabam remetendo, pois é lá que lançam as suas raízes genealógicas e energéticas, mesmo que ora estejam sobremaneira depurados e transcendentalizados, superado o Ponto Quiasmático, ou a meia-vida da Civilização.
Texto de minha autoria (como os demais deste canal) originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 12 de outubro de 2024.