Ver o Reino é Ver o Trono
a Nova Jerusalém e as medidas da vida cristã
A Nova Jerusalém é a cidade por excelência nas Escrituras. Está descrita em termos de uma cidade-cosmos, ou de uma cidade univérsica, pois engloba simbolicamente a inteireza da Criação. É a máxima expressão do Éden, ou daquilo que o Éden deveria ter sido: um Jardim a ser expandido pelo cultivo por toda a Terra, levando a fauna e a flora ao maior esplendor, ao máximo de seu potencial estético e produtivo, num todo ordenado. Evidência da vocação universal do Éden é a sua forma quadrada, sinalizada pelos Quatro Rio que apontam para os Quatro Cantos da Terra — supunha-se uma forma, também, porque o Jardim aparece na tradição como murado, o que é sugerido em Gênesis pelo fato de ele ter uma entrada, que é também uma saída. A tridimensionalidade do Éden insta na tradição pelas sugestões de que ele seria o Umbigo do Mundo, a Axis Mundi, uma região altíssima ligada à imagética do “Éden Mineral” da Montanha de Deus, de onde Lúcifer foi lançado, vindo a cair no “Éden Vegetal”. A Nova Jerusalém é praticamente toda descrita em termos minerais, à semelhança do Templo, embora possua elementos de fauna e flora.
O termo hebraico para cidade é ‘Ir, que é como se descreve a cidade fundada por Caim. ‘Ir significa, propriamente, “recinto murado”, que parece ser também o caso do Éden: um lugar guarnecido por muros. A Cidade dos Homens e a Cidade de Deus são, pois, apresentadas já nos capítulos iniciais de Gênesis. Mas o Paraíso foi perdido e todos aqueles que confiam no Senhor esperam pela Cidade Santa, pela Jerusalém Celestial, que é um Novo Éden, em sua plenitude máxima. A Jerusalém palestina, tal como o seu Templo, são “tipos” do que virá a ser. Como diz Barker (2017), o Santíssimo Lugar, no Templo de Salomão, era uma representação do Cosmos, da Totalidade, pois feito na perfeita proporção de um cubo (os Quatro Cantos, a Terra e o Céu), e também da Eternidade, pois coberto de ouro, representativo do perene, além de símbolo do Fogo e da Luz. A Montanha de Deus, de onde Lúcifer caiu, é descrita por Ezequiel como permeada de pedras ardentes e chamas purificadoras, que cercavam o Trono de Deus tal como o ouro ao redor da Arca da Aliança no Santíssimo. Ainda segundo Barker, o revestimento de ouro do Santo dos Santos testemunhada do Um Dia, do tempo pré-criacional onde Deus evocou pura luz, matéria-prima da qual todo o resto da Criação se desdobrou.
Observa-se que o relato de Ezequiel sobre a Queda de Lúcifer traz elementos aquáticos da cosmogonia hebraica. No capítulo 28, v. 2, é dito que o rei de Tiro (um antitipo de Lúcifer) estava se vendo como Deus, assentado no Trono Divino sobre os mares, o que é uma descrição majestática ligada ao Gênesis 1, v.2: as palavras “e o espírito de Deus se movia sobre a face das águas”, segundo o rabino Rashi, “significam que o trono Divino movia-se por ordem de Deus e por meio de alento (Rúash) exalado por Sua boca, sobre a face das águas, aparentemente para dar o alento da vida à matéria inanimada” (Torá — Comentário, 2017). Noutros termos: tal como a ideia do Fogo e da Luz de Ez 28 carregam caracteres cosmogônicos, a alusão ao Trono dos Mares lembra o Espírito de Deus, o Sopro Divino, o Trono do Criador pairando nas águas para tirar forma e vida do Oceano Primordial. Talvez seja por isso que Apocalipse 21 diz que no império da Nova Jerusalém não haverá mar — a Criação, afinal, já estará na plenitude de seu desenvolvimento, não sobrando espaço para Caos e Vazio.
Parte da linguagem utilizada para pensar a Nova Jerusalém na Escritura grega é inspirada nas descrições helenistas das cidades, e também daquelas da Babilônia, conforme os geógrafos e os oradores gregos. Nesses textos, temos um plano tetragonal, uma rua central, um rio flanqueado por avenidas e/ou permeado de ilhotas com bosques e muitas árvores em estado natural. Contudo, conquanto nas cidades gregas havia vários templos, na Nova Jerusalém não haverá templo algum, já que ela mesma é Santa. Como já apontado, características do Éden Vegetal aparecem no Éden Mineral da Nova Jerusalém: dos dois lados do rio encontra-se a Árvore da Vida, geradora de doze de frutos, um para cada mês do ano, representando a totalidade do Tempo e reproduzindo a tradicional imagem do Jardim, com suas águas e suas árvores. Esse arranjo entre flora, águas e monumentos líticos e metálicos lembra bem o antigo ideal persa para os jardins, pensados inclusive para uso noturno, como ponto de observação das estrelas.
A Nova Jerusalém também é descrita como um cubo dourado, mas de proporções assombrosas. É o Santíssimo em escala cósmica, e nela a luz não é apenas representada pelo ouro — ela realmente emana no Trono, por isso não há necessidade do Sol. A visão de Ezequiel do Trono de Deus é bastante elucidativa nesse sentido (GRAVES, 1994): dele sai, junto de muitos raios em meio às nuvens, uma luz brilhante — em hebraico, Chashmal. Vertido para o grego, “brilhante” é Electrum, e tanto Chashmal quanto Electrum fazem referência ao âmbar, uma liga metálica cuja fricção produz eletricidade. Elector, ligado a Electrum, é um dos nomes do Sol, donde a emanação de uma ofuscante luz dourada do Trono. Segundo a tradição rabínica, o Chashmal é um tipo de substância divina que enche o Trono de Deus, situado no Sétimo Céu, Aravot, de resplendor. O próprio Trono, na Nova Jerusalém, é Elector, o Sol. No centro da Nova Jerusalém há, pois, o Trono, como o Sol no centro do nosso sistema planetário.
A simbologia cósmica, astronômica e astrológica da Nova Jerusalém é inequívoca. As descrições dela em Apocalipse 21 e 22 são indiscutíveis: as doze pedras preciosas de seu alicerce fazem referência aos doze signos do Zodíaco — as pedras e pérolas representam o céu estelar e a rua e o ribeiro representam a Via Láctea. Segundo o Novo Dicionário da Bíblia (DOUGLAS, 2006), “as dimensões cúbicas da cidade e suas vastas dimensões são padronizadas segundo a vastidão do espaço. Até mesmo os muros celestes têm sua origem nas colunas do céu.” Conforme Barker (2019), a indumentária do Sumo Sacerdote, dos mesmos tecidos do Véu, representava o mundo material. Essa roupa, que também contava com um colete incrustado de doze pedras preciosas, alusão às Doze Tribos de Israel, mas compatível os materiais da Nova Jerusalém e seu significado estelar, era utilizada apenas no ambiente externo, diante do Povo. Após o Véu, no Santíssimo, o Sumo Sacerdote precisava vestir uma túnica de linho branca, à semelhança dos anjos, visto que dentro do Santíssimo ele se tornava um deles — aquele que entrava na Glória se fazia um com ela, um com o Um Dia. Ao sair do Santíssimo, o Sumo Sacerdote trocava a túnica branca pela veste colorida, ocultando a Glória por uma “casca” de matéria.
Os anjos eram tradicionalmente descritos como estrelas, conforme fica claro no livro de Jó. A tradição apócrifa conta que Enoque teve uma experiência mística no Templo, onde viu o teto preenchido pela senda das estrelas, perfazendo um mapa celeste — se lá ele esteve na companhia dos anjos, também esteve cercado de estrelas. A tradição rabínica posterior dirá que Enoque de fato se transformara num anjo, Metatron, tornado um igual na medida em que imergiu na Glória. A superabundância de anjos no Templo está clara na visão espiritual de Isaías, que viu o Senhor no Templo e rodeado de serafins, de modo que o Santuário encheu-se de glória. João 12:41, segundo Barker (2019), faz entender que Isaías, de fato, vira o Cristo pré-encarnado entronizado no Templo. Era Deus Filho quem Isaías vislumbrou no Santuário, rodeado de serafins. Os primeiros cristãos, ao narrarem o nascimento de Jesus, realmente o descreviam como Javé, o Senhor e Filho do Altíssimo.
Era Deus Filho quem Isaías vislumbrou no Santuário, rodeado de serafins
Um poema de cerca de 200 a.C. descreve o Sumo Sacerdote Simão como a Estrela da Manhã: “Quando punha seu manto glorioso, vestindo-se com magnífica perfeição […] tornava glorioso o pátio do santuário”. Quando saía do santo dos santos, assemelhava-se “à estrela da manhã entre as nuvens […] tal qual o sol a brilhar sobre o Templo do Altíssimo.” Isso significa que o Sumo Sacerdote, descrito como a estrela matutina a subir das névoas da aurora, era de fato, enquanto trajado de branco e antes de ser revestido dos tecidos coloridos, contado entre os anjos, pois esteve na companhia deles e diante de Deus, no Trono — “seres humanos podiam tornar-se anjos, e ainda assim continuar a viver no mundo material” (BARKER, 2019). Isso reforça o significado cósmico, univérsico do Templo, assim como da Nova Jerusalém, prefigurada nele.
Segundo Barker (2019), tal como Cristo é Um com o Pai, pois Ele veio do Pai, os discípulos, tendo visto a Cristo, a glória do Pai e o verdadeiro Templo, tornavam-se Um n’Ele. Eram, doutro modo, feitos “anjos”, ou anunciadores do Evangelho, por estarem em comunhão com Jesus. Posteriormente, essa passagem do mundo natural para o mundo celestial era sinalizada pelo batismo — da morte do Velho Homem para o nascimento do Homem Novo (lembre-se da já indicada conexão cosmogônica entre o Trono e a Água do Oceano Primordial). Cristo disse em João 3:3, que quem não nascesse de novo e do Alto, não poderia ver o Reino de Deus — acompanhando Barker (2019), Ver o Reino implicava ver o Trono, que é o mesmo que tornar-se capaz de enxergar aquilo que está além do Véu, a realidade substancial da Criação (“A realidade é Cristo.” Colossenses 2:17 [NTLH]). Se naquela época se entendia que quem via um anjo juntava-se momentaneamente com ele e que quem vislumbrasse a Glória se fazia partícipe dela, as teofanias e a larga movimentação angelical do início dos evangelhos sinalizaram um “vazamento” da presença de Deus por toda a Terra — Seu Trono, na Estrela de Belém, na Estrela da Manhã, anunciadora do nascimento de Cristo, estava se tornando visível, e o foi de modo explícito na Transfiguração e nos eventos da Ressurreição, com os anjos e o próprio Jesus glorificado subindo aos Céus em direção ao Pai.
A ideia de Ver a Deus, de Ver o Trono, era bastante literal nos inícios da fé hebraica. O próprio monte Moriá é testemunha disso: “O nome de mor’iah é comparado ao termo re’iyyah, que designa visão. O monte Moriá é, portanto, o monte da visão. Comentando as palavras ‘ele [Abraão] avistou de longe o lugar’, o Midrash Rabba especifica: ‘Ele viu uma nuvem pairando sobre a montanha’. Assim, é o símbolo por excelência da presença divina que permite a Abraão identificar a montanha sobre a qual deverá sacrificar o seu filho”, Michel Remaud (2007). Estêvão, quando de sua fatídica pregação, falou que o Deus da glória apareceu a Abraão na Mesopotâmia, comissionando-o. Ao empregar o termo “apareceu” (ōphthē — ὤφθη [horaó]), está querendo dizer, literalmente, que Deus “foi visto”. O termo é um aoristo passivo: Abraão foi encontrado pelo Senhor, que se fez ver por ele. Não sabemos como foi essa visão, mas está implícito que ela aconteceu.
Antes do clímax do quase sacrifício de Isaque em Moriá, no versículo 14 de Gênesis 22, o verbo “ver” aparece três vezes: no Dia Três, Abraão “vê” o lugar (v. 4); quando questionado por Isaque, Abraão diz que Deus “verá” o cordeiro (v. 8); depois de proibido de imolar o filho pelo Anjo, Abraão “vê” um cordeiro (v. 13). Enfim, o versículo 14 dirá que Deus viu e foi visto. É assim que o Targum Neofiti o parafraseia: “sobre a montanha do santuário de YHWH onde Abraão ofereceu seu filho Isaque, sobre essa montanha apareceu-lhe a glória da Shekinah de YHWH.” A nuvem de glória é, no Antigo Testamento, o sinal mais claro da presença divina e é por isso que Abraão soube identificar o lugar do holocausto — “O Lugar” acabou se tornando uma fórmula rabínica para designar Deus sem usar o Nome. Duma leitura amparada pela tradição, fica entendido que Abraão viu Deus. O Dr. Graham (BELMONTE, 2015) consolida essa leitura ao afirmar que o Anjo surgido acima de Isaque e de Abraão seria uma teofania, uma manifestação do próprio Cristo como Anjo do Senhor e indicador do cordeiro substituto de Isaque, prenunciando a Si mesmo como o Cordeiro por excelência.
É com base nisso que se desenvolveu a posterior tradição que permitia apenas aos homens “que veem” o acesso ao Templo. A ordem do Patriarca para o retorno dos criados e do jumento (v. 5), conforme Remaud e partindo do Midrash, enfatiza a questão de que apenas aqueles “que veem”, Abraão e Isaque, podem subir ao Lugar — os cegos, os criados e o jumento, ficam excluídos. Segundo Ex 34:23, assim como outras passagens da Lei, todos os homens israelitas deveriam subir ao Templo três vezes por ano na ocasião das festas da Páscoa, das Semanas e das Tendas, onde apresentar-se-iam diante do Senhor. Para Remaud, contudo, há ampla dificuldade com a tradução “aparecerão perante o Senhor DEUS”, Êx 34:23, de tal modo que temos versões, como a Tradução Ecumênica, que fazem entender que os homens iam “ver a face” do Senhor. Segundo o autor, o original hebraico do texto contém uma construção gramatical que, se traduzida literalmente, dirá, noutras palavras: três vezes ao ano, os homens de Israel serão vistos diante da face do Senhor. Dt 16:16 deixa mais específico: serão vistos no monte do Templo. Em consonância com a explicação mais plausível para esses textos e com o reforço da tradição oral mais antiga, segue Remaud, originalmente era dito que os homens iam ver Deus no Templo. Para escapar das dificuldades de se pensar num Deus espiritual, mas visível, os massoretas fixaram o entendimento vigente, de que os homens iam à Jerusalém para se apresentarem diante do Senhor, contrariando a estrutura gramatical da frase.
Na Mekhilta de Rabi Ishmael, que segue o sentido de que o Senhor era objeto de visão dos homens que iam ao Templo, comenta-se a passagem de Êxodo justificando a exclusão dos cegos, que consta em 2 Sm 5:6–8, visto serem incapazes de ver. O mesmo entendimento está na Mekhilta de Rabi Shimon Bar Yohai. Ampliando esse entendimento, o Midrash Sifre, ao discorrer acerca do Deuteronômio, conclui que a visão é recíproca: o homem vê Deus e Deus vê o homem. Tais comentários fundamentaram-se no termo hebraico “re’iyyah”, que é “visão”. Há um paralelo entre a passagem de 2 Samuel e Mateus 21:14: cegos e coxos subiram ao monte do Templo para encontrar a Deus, o Cristo, e ali foram curados, podendo ver o Senhor e andar — após isso, se tornaram capazes de subir o Monte para Ver.
Se, retomando Barker (2019), entendermos que os primeiros cristãos tomavam os símbolos, as proporções e as liturgias do Primeiro Templo como base de sua cosmovisão, e se aceitarmos, junto de Remaud, que a ideia de Ver a Deus, no judaísmo mais primitivo, era bastante literal, conduzindo à literal coparticipação na glória divina (donde Moisés teve que cobrir o rosto ao descer o Sinai [como o Sumo Sacerdote cobria o corpo]), Ver o Reino pode, de fato, significar Ver o Trono, ou Ver a Deus por meio de Cristo — afinal, os cegos e os coxos viram a Deus em Cristo no Templo. E se o Trono é visto, se o Reino é visto, a Nova Jerusalém é prenunciada, sua vindoura descida dos Céus, tapando o Sol, pois ela porta o Elector, e trazendo consigo todas as estrela, é proclamada.
BARKER, Margaret. Introdução ao Misticismo do Templo. São Paulo: É Realizações, 2017.
BARKER, Margaret. Natal. São Paulo: É Realizações, 2019.
BELMONTE, Kevin. O Livro dos Milagres. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2015.
DOUGLAS, J. D. (Org.). O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2006.
GRAVES, Robert; PATAI, Raphael. O Livro do Gênese. Rio de Janeiro: Xenon, 1994.
REMAUD, Michel. Evangelho e Tradição Rabínica. São Paulo: Loyola, 2007.
TORÁ. São Paulo: Sêfer, 2017.
Texto originalmente publicado em meu perfil pessoal do facebook em 21 de abril de 2021.